domingo, 22 de março de 2020

O domingo amanheceu modorrento na casa de Mané. Às 6:15 nada acontecia na rua, nenhum carro ou pessoa, nenhum passarinho a pipilar. Não seria estranho se o sábado não tivesse sido igual, a sexta, a quinta e como será também a segunda. Mané deu uma cuspida pra baixo e ficou escutando pra ouvir o barulho. Depois se arrependeu mas já estava feito e nem ao menos o barulhinho ele conseguiu ouvir. Lá pelas 9:00 a família começou a acordar, a bateria do iPhone que estava a 100% ao acordar, já estava a 58%. Tomaram café, leite, queijo e pãozinho de ontem torrado com manteiga. E foram pro dia, levar o cão pras necessidades, lavar a louça, arrumar as camas, ordenar armários e gavetas pela segunda vez na semana, ler um livro. Lá pelas 16:00, tendo já almoçado, lavado a louça, limpado o cantinho do xixi, ido à janela, lido um livro, deitado, levantado e desinfetado alguns sapatos, Samira teve vontade de tomar sorvete. Mané trocou de roupa e foram todos pra cozinha onde no congelador tinha o último sorvete comprado na stuzzi dois dias atrás: chocolate belga e outro de torta de limão com mascarpone. Mané preferiu um pêssego o que deixou a todos boquiabertos e, quando acabara, Salma perguntou: “mas porque você trocou de roupa”? Lá de dentro Anuar gritou: “vamos pedir pizza pra jantar”? 22/03/2020
Nesses tempos de ficar em casa, Mané encontrou esse vestido que Samira usou no casamento da tia, um quarto de século atrás. Todos aqui preocupados com o futuro e vem o passado lhe dar um refresco. Samira puxou o pai, “da um sorriso menina”, mas não, a mulher brava já estava presente na menininha. Mané não sabe o que vai acontecer nem se vai aguentar esse confinamento mas um mergulho no passado é melhor que um mergulho da janela.20/03/2020
Samira, por favor, tire esses cactus daí pra gente poder montar esse quebra cabeça pandêmico, disse Mané. Mas pai, não tenho onde colocar, o jardim cresceu nesses dias covidianos e até arranjei dois pirocactus, um maior e um menor. E o que são pirocactus, minha filha? São cactus com formato de....bem, formato fálico. Mané olhou as plantas e desistiu do quebra cabeças, não vão ser fáceis esse dias de quarentena. 19/03/2020
Agora há pouco uma amiga de Mané comentou que deverá faltar matéria prima para fabricar remédios e que um médico “esperto” no assunto tinha lhe dito para fazer um estoque para 4 meses dos remédios para uso contínuo, só por garantia. Mané pensou que desse jeito ia acabar faltando remédios de qualquer jeito mas mesmo assim, como ele não tem tireoide e precisava comprar o remédio que usa, foi até a farmácia para adquirir uma, apenas uma, caixa de Puran T4. Chegando à drogaria lotada, esperou impacientemente pela sua vez e fez o pedido. A morena bonita voltou com 4 caixas e disse: “uma caixa custa 34, se levar 4 sai por 17 cada”. Mané hesitou e perguntou quantas caixas tinha na farmácia e ela disse, tem 8, quer todas? E se outra pessoa precisar? Ela sorriu pra ele e disse: o sr chegou primeiro. Mané ficou lá pensando no que fazer e por ganância disse que ia levar “apenas 4”. Ela insistiu, “em abril os remédios vão subir, leve 8, o sr garante esse preço até o fim do ano”. Mané levou quatro pra ele, quatro de outra dosagem pra Salma e três outras ainda pra sua mãe mas a moça fez o preço reduzido porque eram as três últimas, algum idiota só tinha comprado uma e desestabilizou a promoção. Comprou também um monte de outros remédios que precisavam, luvas de borracha para a mãe, álcool 70, já que o gel estava esgotado, tintura para cabelo e etc, tudo na promoção. Gastou 400 paus mas poderia ter gastado 650, sem o desconto da promoção. Ficou orgulhoso de si mesmo por três segundos e, quando pos o pé pra fora, olhou para Anuar que a tudo assistiu, sentiu vergonha e, enquanto ligava o motor, pensou que a humanidade merece o Corona. 14/03/2020
Hoje a auxiliar de serviços gerais que trabalha no Mané mandou um extenso WhatsApp para Salma avisando que a filha tinha vomitado, estava com pintas pelo corpo e que, portanto, ela iria faltar. Não bastasse o dia carrancudo que se mostrava do lado de fora, o covid19 aqui no quintal, as trapalhadas presidenciais, as contratrapalhadas dos inimigos presidenciais, a bolsa, o dólar, a Disney, Mané poderia ficar perorando infinitamente, havia um monte de louça de ontem pra lavar, havia o banho do Milu e ah, Mané precisava ir trabalhar. Diante do quadro, Salma manteve-se calma mas tensa e Mané, começou a dar chiliques por e-mail, WhatsApp e ao vivo. Mané saiu pra levar o Anuar e Salma foi fazer exames. De volta pra casa Mané obrigou-se a pensar e como o dia teria que ser enfrentado, pôs-se de pronto a lavar a louça enquanto Milu o observava apreensivo. Ao fim da lavagem, Mané recolheu o jornal do xixi, passou um pano com desinfetante no chão e quando viu tudo limpinho, foi imediatamente tomado por uma sensação de paz. Depois, esticou a cama, vestiu-se e saiu como se tudo estivesse bem. 27/02/2020