quinta-feira, 26 de julho de 2018

Houve época, há uns 45 anos, que Mané foi mau aluno, quando repetiu duas series do colegial, quando a avó queria que a mãe desistisse de fazê-lo estudar para se tornar vendedor, quando evitavam falar em futuro na presença dele, não houve quem cogitasse levá-lo a um psicólogo para ver se tinha algum bloqueio, nem a um neurologista para ver se tinha algum distúrbio mental, muito menos a um psiquiatra pra ganhar alguma receita revitalizante ou algo que o valha. Mané e sua família enfrentaram o problema de forma simplista, sem ser simples e quando Mané repetiu de ano pela segunda vez, Sara, sua mãe, informou-lhe que não pagaria mais seus estudos, que fosse para o ensino público ou que ganhasse bolsas se quisesse estudar, o que para Mané significava o fim da linha. Mané estranha que a escola onde estudava sequer cogitou uma conversa para saber o que ocorria, e não era uma porcaria de escola, e diante do cenário que se desenhava, Mané fez uma prova para ganhar bolsa num cursinho – e ganhou – e depois prestou vestibular e entrou numa boa faculdade particular, tendo fracassado na estadual por ter perdido a prova de...redação, acreditem. Diante do milagre, sua mãe condoeu-se e concordou em pagar a faculdade, com a condição que ele começasse a trabalhar para pagar a metade da conta. O resto é história que não importa aqui neste post que apenas quer refletir sobre a responsabilidade dos pais e escolas em observar os filhos/alunos e encorajá-los por caminhos onde possam dar certo. De alguma forma Mané superou {ou não} as suas dificuldades, mas e esse não tivesse tido forças? E se, por outro lado, entrasse numa roda-viva de médicos, terapeutas, remédios e nunca mais conseguisse andar por si só? Salma, a psicóloga, é taxativa, houve negligência também e principalmente da escola. Que não nos ouça Sara, que também foi taxativa à época, como foi...26/07/2018
Mané herdou essa excelente poltrona há algum tempo, quase dois anos, e logo preparou um cantinho nos seus aposentos para poder ler em paz. Usou a prerrogativa umas três vezes no início e desde então vem tentando reconquistar o espaço em vão, visto que a dita poltrona tornou-se um depósito de coisas e trecos. É certo que Mané tem sua parcela de culpa, na foto se podem observar um ou dois objetos de uso pessoal dele atirados à esmo no móvel, mas a maior culpada, na proporção de 97,8%, é Salma, uma vez que optou por colocar os cobertores sobressalentes mais à mão no inverno passado e os mesmos ali permaneceram para sempre. Somando-se às outras pequenas irritações cotidianas, Mané tem se controlado muito para que a poltrona não se transforme na gota que falta para o transbordamento do copo. Não é revoltante?25/7/2018
Salma tem um sebo virtual, vende livros usados pela internet. Começou há seis anos quando morreu o pai do Mané e eles se viram às voltas com aquele acervo grande, “vamos dar, vamos doar, chama alguém aqui pra ver, leva naquele sebo”, quando prevaleceu o tino comercial de Salma e ela decretou: “vamos vender”! E assim, Salma se transformou numa encantadora de livros, desenvolveu suas habilidades em latência, aprendeu onde os caçar e reconhece aqueles que têm valor e, claro, às vezes também comete [poucos] erros. De toda forma, livros tem sido assunto recorrente. Todos ajudam, Salma os embrulha, Anuar escreve o remetente e, muitas vezes, quando o comprador esta por perto, Mané faz as entregas. A curtição é fantasiar na venda, eles sempre ficam curiosos em saber por que alguém comprou tal livro e como é que aquela pessoa com um nome estranho do interior do Brasil se interessou por aquele outro, enfim, uma viagem. Hoje pela manhã Mané levantou-se pesadamente da mesa do café e declarou que não estava com vontade de trabalhar. Salma fez aquele ar de 35 anos de casados e perguntou se ele gostaria de entregar um livro na Liberdade, pelo menos adiaria a ida ao escritório. Mané topou e pegou o metrô até o Paraíso onde baldeou para a Linha Azul rumo à estação Liberdade. Chegando ao prédio comercial, dirigiu-se ao balcão e disse que precisava fazer uma entrega. A moça perguntou se ele queria entregar em mãos ou deixar ali mesmo e, nesse caso, a correspondência seria entregue daqui a 24 horas, teria que ser classificada, separada, etc. Mané olhou para o nome da pessoa e disse a si mesmo que se tinha vindo até ali, melhor entregar em mãos, pra que fazer a Celia esperar 24 horas? Fez o cadastro e se dirigiu ao 1º andar onde se viu numa agência de turismo, perguntou à recepcionista pela Celia e esta lhe apontou para um lugar onde Mané se deparou com, dez, talvez quinze pares femininos de olhos amendoados que o observavam com curiosidade. Mané se aproximou e disse em voz alta: “Celia”? Aquela que parecia ser a supervisora de todas levantou-se assustada e Mané, constrangido, perguntou se ela tinha comprado um livro e ela disse “sim, ontem” e ele disse “vim entregar” e ela, olhando para os outros quatorze pares de olhos amendoados, corou e respondeu, “mas já”? e Mané, gracejando, “se preferir posso ir por no correio agora” e todos os quinze pares de olhos amendoados mais Mané caíram numa gargalhada contida e eis que Celia se aproxima para pegar o livro com uma mão e com a outra pega na mão de Mané e crava os olhos amendoados nos olhos de Mané e lhe diz, “muito obrigado, o senhor não tem ideia de como iluminou meu dia hoje” e Mané viu os olhos dela marejarem e sem que ele pudesse fazer mais nada viu Celia lhe sapecar um beijo na mão que agarrava e, mais vermelha que um suco de tomate apimentado, ofereceu-lhe um chá acompanhado de uns biscoitinhos japoneses, que Mané aceitou com gosto. Todos então se dirigiram à pequena cozinha onde confraternizaram inclusive com a recepcionista e um senhor japonês que saiu de uma sala ao fundo quando viu que se avizinhava a hora do chá. Mané teve a oportunidade de confirmar que eram quinze mesmo, o número de olhos amendoados, mais os da recepcionista e mais o do senhor que se juntou a nós, que sorria o tempo todo e não proferiu uma palavra. E como Celia ao fim frisou, “o senhor entregador é o único aqui que tem olhos verdes” e Mané emendou: “e não são puxados”. E todos gargalharam novamente. Bem, só resta dizer que Celia comprou um livro chamado “A arte de correr na chuva” de Garth Stein, narrado pelo ponto de vista de um cachorro que está prestes a morrer e que Celia vai chorar de novo quando começar a ler o livro. 18/7/2018

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Mané trabalhou por quase 20 anos no Unibanco. Nesta empresa, Mané teve uma boa carreira, entrou num cargo subalterno e foi sendo promovido amiúde em períodos que nunca ultrapassaram dois anos. Quando saiu, Mané tinha um cargo de relativa importância, tendo sempre tido a sorte de se dar bem com seus (poucos) chefes, o que também deve ter contribuído para o bom andamento das coisas. Mané saiu do banco no rastro da compra do falido Banco Nacional, quando o Unibanco deixou de ser o que era e passou a ser o que viria a ser. Mané sofreu nesse período porque sempre trabalhou na área de leasing que era uma empresa à parte, e as outras áreas do banco, ou seja, o banco todo era um mistério para Mané, apesar da sua larga experiência. Isso foi fatal naquele momento de mudança, gente antiga saindo, gente nova chegando, eis que seu tempo acabou por ali, enfim, vida que segue. Mané pensou nisso ao ganhar um livro escrito pelo Israel Vainboim, ex presidente do Unibanco na época, pessoa com quem Mané manteve uma distante e boa relação e, por incrível que pareça, ao ler o capitulo do livro que versava sobre a Unibanco Leasing, Mané chegou a se emocionar, as lembranças daqueles anos vieram à tona e, o que significa essa lágrima que chegou a pingar no pijama? Relação estranha essa que temos com as empresas onde trabalhamos onde se misturam amor e ódio, quando tratamos uma S A enorme como se fosse o quintal da nossa casa, sobre o qual teríamos algum direito, que coisa esquisita. Mané não tem vergonha de dizer que sente saudades do Unibanco, apesar de que Salma sempre ressalta que Mané chegava todo dia em casa reclamando do banco, mas sabe como é, estamos ficando velhos, coisas ruins a memória apaga, senão, como sobreviveríamos? Isso suscitou outra pequena lembrança, um episódio ridículo vivido por Mané em plena Avenida Paulista. Num sábado à noite, Mané voltava para casa depois de um cinema e eis que passa por uma agência do Unibanco que tinha acabado de se fundir ao Itaú. Três pessoas instalavam o letreiro do Itaú na agencia tão conhecida de Mané enquanto ao lado, no chão, jazia o letreiro do Unibanco. Mané se irritou com aquilo e, apesar dos protestos de Salma, parou o carro numa reentrância da calçada e se dirigiu aos gritos aos operários, perguntando por que tinham deixado o letreiro do Unibanco ali jogado e um deles responde “calma tio, mudou o nome do banco” e Mané: “mas vocês não precisam atirar o letreiro assim no chão”. Depois, percebendo o absurdo, Mané retornou ao carro, mas ainda teve tempo de ouvir o rapaz dizer: “cada mané que aparece, essa merda vai pro lixo mesmo” e gritar “se quiser leva para casa esse lixo, mané”. Chateado no carro, sentindo saudades de sabe-se lá o que, Mané tentou voltar à razão e Salma, para desanuviar, falou: “não fica assim, é compreensível você se sentir pessoalmente atingido, foram tantos anos e, veja só, você também foi importante para o Unibanco, até esse operário sabia seu nome...”04/07/2018