quinta-feira, 26 de julho de 2018

Salma tem um sebo virtual, vende livros usados pela internet. Começou há seis anos quando morreu o pai do Mané e eles se viram às voltas com aquele acervo grande, “vamos dar, vamos doar, chama alguém aqui pra ver, leva naquele sebo”, quando prevaleceu o tino comercial de Salma e ela decretou: “vamos vender”! E assim, Salma se transformou numa encantadora de livros, desenvolveu suas habilidades em latência, aprendeu onde os caçar e reconhece aqueles que têm valor e, claro, às vezes também comete [poucos] erros. De toda forma, livros tem sido assunto recorrente. Todos ajudam, Salma os embrulha, Anuar escreve o remetente e, muitas vezes, quando o comprador esta por perto, Mané faz as entregas. A curtição é fantasiar na venda, eles sempre ficam curiosos em saber por que alguém comprou tal livro e como é que aquela pessoa com um nome estranho do interior do Brasil se interessou por aquele outro, enfim, uma viagem. Hoje pela manhã Mané levantou-se pesadamente da mesa do café e declarou que não estava com vontade de trabalhar. Salma fez aquele ar de 35 anos de casados e perguntou se ele gostaria de entregar um livro na Liberdade, pelo menos adiaria a ida ao escritório. Mané topou e pegou o metrô até o Paraíso onde baldeou para a Linha Azul rumo à estação Liberdade. Chegando ao prédio comercial, dirigiu-se ao balcão e disse que precisava fazer uma entrega. A moça perguntou se ele queria entregar em mãos ou deixar ali mesmo e, nesse caso, a correspondência seria entregue daqui a 24 horas, teria que ser classificada, separada, etc. Mané olhou para o nome da pessoa e disse a si mesmo que se tinha vindo até ali, melhor entregar em mãos, pra que fazer a Celia esperar 24 horas? Fez o cadastro e se dirigiu ao 1º andar onde se viu numa agência de turismo, perguntou à recepcionista pela Celia e esta lhe apontou para um lugar onde Mané se deparou com, dez, talvez quinze pares femininos de olhos amendoados que o observavam com curiosidade. Mané se aproximou e disse em voz alta: “Celia”? Aquela que parecia ser a supervisora de todas levantou-se assustada e Mané, constrangido, perguntou se ela tinha comprado um livro e ela disse “sim, ontem” e ele disse “vim entregar” e ela, olhando para os outros quatorze pares de olhos amendoados, corou e respondeu, “mas já”? e Mané, gracejando, “se preferir posso ir por no correio agora” e todos os quinze pares de olhos amendoados mais Mané caíram numa gargalhada contida e eis que Celia se aproxima para pegar o livro com uma mão e com a outra pega na mão de Mané e crava os olhos amendoados nos olhos de Mané e lhe diz, “muito obrigado, o senhor não tem ideia de como iluminou meu dia hoje” e Mané viu os olhos dela marejarem e sem que ele pudesse fazer mais nada viu Celia lhe sapecar um beijo na mão que agarrava e, mais vermelha que um suco de tomate apimentado, ofereceu-lhe um chá acompanhado de uns biscoitinhos japoneses, que Mané aceitou com gosto. Todos então se dirigiram à pequena cozinha onde confraternizaram inclusive com a recepcionista e um senhor japonês que saiu de uma sala ao fundo quando viu que se avizinhava a hora do chá. Mané teve a oportunidade de confirmar que eram quinze mesmo, o número de olhos amendoados, mais os da recepcionista e mais o do senhor que se juntou a nós, que sorria o tempo todo e não proferiu uma palavra. E como Celia ao fim frisou, “o senhor entregador é o único aqui que tem olhos verdes” e Mané emendou: “e não são puxados”. E todos gargalharam novamente. Bem, só resta dizer que Celia comprou um livro chamado “A arte de correr na chuva” de Garth Stein, narrado pelo ponto de vista de um cachorro que está prestes a morrer e que Celia vai chorar de novo quando começar a ler o livro. 18/7/2018

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