sábado, 26 de setembro de 2020

Depois de seis meses Mané finalmente resolveu lavar o carro e foi surpreendido com o fechamento de três lavajatos das redondezas. Acabou encontrando um aberto lá longe, em Perdizes. Pra matar o tempo enquanto esperavam, foi com Anuar passear no Parque da Água Branca. Depois de andar ao sol naquele lugar bucólico, sentaram-se numa área onde tem uns coretos de leitura e um cara vendendo aqueles sorvetes de máquina de antigamente, bem perto de um grande e incompreensível criadouro de galinhas. Estavam tomando sorvete quando atrás deles um homem começou a gritar: “vai que é sua”, insistentemente. Mané virou e viu que havia uma disputa entre dois galos para ver qual conseguia cobrir uma galinha. Cada vez que um conseguia subir na candidata o cara gritava: “vai que é sua”, mas o fato é que a tal galinha não se entregava e os galos ficavam rondando com cara de bobos. Incomodado com a gritaria, Mané falou pro cara que ele estava assustando as aves, que elas precisavam de silêncio para procriar. O cara disse que estava só incentivando os galos e que a galinha estava agindo como uma vagabunda, atiçando os dois galináceos e caindo fora na hora H, e com essa atitude ele tinha descoberto porque a última namorada dele era chamada de galinha. Mané começou então a explicar que galinha era como se costuma chamar a mulher que atiçava e chegava às vias de fato com muitos e não as que caiam fora, mas, nesse momento, Anuar disse que queria mais um sorvete antigo, o que foi bom porque o homem já olhava com cara de poucos amigos. Quando se afastavam, o sujeito voltou à carga e eles ainda escutavam “vai que é sua”, quando saíram do parque rumo à Rua Turiassú. 26/9/2020
Desde pequeno Mané se lembra da agitação nessa época do ano, o intervalo entre Rosh Ha-Shana e Yom Kipur, época em que os judeus homenageiam os mortos, a mãe e os tios de Mané se organizavam para visitar os seus. Eram dias de combinações e acertos, quem ia seguir quem, quem levava quem, enfim, Mané sentia inveja, queria visitar o avô, seu único morto mas os pequenos ficavam em casa, nada de cemitério pra eles. Décadas se passaram. Ontem Mané foi visitar seus mortos. Gastou dois pacotes de velas e andou sob um sol implacável feito um mouro. Pelo meio do percurso os joelhos de Mané gritavam de dor pelas flexões para acender as velas e lutar contra o vento para mantê-las acesas. No fim até dava uma sentadinha ao rés do túmulo para descansar. Visitou todos os 14 membros da família que moram agora no Butantã e saiu de lá se sentindo sozinho, cansado e contrariado com a quantidade dos que foram. Enquanto cumpria na saída o ritual do lava-mão, com o telefone pendurado na orelha, reclamou para a mãe pela trabalheira e ela lhe disse que tinha feito uma coisa boa. Mané, que não acredita em muita coisa, nem boa, nem ruim, aprecia ter um endereço pra visitar seu velho e, aqui entre nós, nunca na vida conversou tanto com ele. 25/9/2020
O telefone tocou nessa hora e por uma fração de segundo Mané pensou, “será possível”? Mas, como podem imaginar, era apenas uma ligação do trabalho, Mané pediu uns minutos e continuou a conversar com seu pai por outro canal que não o celular.
24/9/2020

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Mané acorda, o dia está frio e com garoa. Ele devaneia sobre os mais de 180 dias que esta na mesma, mas, mentira, tudo está muito pior. Ele fica estatelado na sala, diante de si, apenas o olhar do Milu para quem, além da casa mais cheia, nada mudou. Mané, Salma e Anuar tomam café em silêncio. O tempo do pão fresco pela manhã acabou, Mané não vai mais todo dia à padaria. Ele joga fora três pães de leite embolorados, Salma o questiona, não comem queijo embolorado, porque não comer também o pão? Samira não está e parece também se sentir só. Ontem a noite passou um WhatsApp: “o que vocês estão fazendo aí?” Mané termina de lavar a louça do café, limpa o banheiro do cachorro e depois sente um vazio. Depois de trabalhar por 45 minutos pergunta pra si mesmo o que vai fazer do resto do dia, será que alguém vai telefonar com algum problema pra resolver? Ele vai ao quarto e mexe na pilha de livros mas nada o anima. Terminou um livro bom e quando isso acontece ele fica enlutado, é difícil escolher outro. Ele deita na cama que ainda está desfeita e cobre-se até às orelhas. O joelho ralado repuxa e dói, ele sente sono, Salma fala alguma coisa sobre itens de consumo faltantes, Anuar pergunta se Samira vem almoçar. De repente, Mané se anima, levanta, arruma sua cama e a de Anuar, põe uma bermuda, passa desodorante antialérgico, veste camiseta, moletom, pega a máscara de ontem pra jogar fora, vai até a porta do quarto e grita: “Onde está o mertiolate que eu tinha deixado no criado mudo? Hoje é dia de trocar os pijamas? O que vai ter de almoço?” 22/09/2020
Samira está de mudança. Isso todos já sabem. Nos últimos dois meses sai todo dia de casa levando uma caixa, mala, pacotes, enfim, esvaziando seu quarto e enchendo a sua casa que, como todos também sabem, fica a 60/65 metros ladeira abaixo, Mané já mediu. Também encomendou o recheio do apto pela internet e, para surpresa de Mané, montou tudo sozinha, móveis, estante, varal, filtro de água, etc. Até furadeira a danada comprou. Pelo que consta, não que Mané esteja controlando, falta máquina de lavar porque anteontem veio o cara instalar o principal, a primordial e fundamental internet. Máquina de lavar, que ninguém nos ouça, nem é tão importante pois ela pode, afinal, trazer a trouxinha de roupas pra lavar na casa de Mané, levar uma marmitinha, enfim, quem sabe, né? Nos últimos dias ela esteve montando esse quebra cabeça na mesa da sala. Duas mil peças, Mané achou que ia demorar bastante tempo. Ontem, muito antes do que ele imaginou, ela terminou a obra. Quando ela foi pra casa depois de jantar, ele foi dar uma olhada no quarto dela e viu que o local já está bem vazio. Enfim, ainda terão a roupa dela pra lavar, as marmitinhas, se bem que com essa coisa de delivery...deve até ter delivery de lavanderia. 21/09/2020
Mané chega na casa da mãe e percebe que ela está caidinha, com uma cara desanimada. “Que foi mãe, tá com uma carinha de cansada, o que você tem”? Ah, nessa idade...tenho tudo mas hoje não dormi direito, fiquei rolando na cama a comida não desceu bem. “Tomou o omeprazol e o remédio pra dormir”? O -meprazol- esqueci e o de dormir eu não tomei porque não quero ficar viciada. “Que viciada mãe, qual o problema de ficar viciada se você dormir direito”? Ah, não, depois vai ter que aumentar a dose e a caixinha vai acabar. “Mãe, eu trouxe três caixinhas, tem bolinhas pra três meses mais aquilo que você já tinha, acho que você, se for pra dormir, deve ficar viciada”! Sara riu e disse que ia tomar o remédio de noite. Mané, preocupado com o bem estar da mãe, emendou: “quer que eu traga alguma coisa pra vc fumar ou cheirar pra vc ficar numa boa”? Tá querendo viciar sua mãe? No Egito tinha haxixe, aqui não sei! E depois, se me pegam vou presa! “Mãe, nessa idade usuário não vai preso, eu que posso ser preso como traficante”! Ah, então, não! “Não tem problema, mãe, nós já estamos todos em prisão domiciliar”! Ah, chega de besteira, agora cala a boca senão te dou uma surra como antigamente. “Mãe, também não pode mais bater em criança, vai preso”! Você disse que não prendem velhos, te dou umas palmadas, vai, onde estão os remédios que você trouxe? 20/09/2020
Hoje Mané foi buscar Samira na casa dela pela primeira vez. Uma amiga dela ia casar, Mané choferou. Lindinha a Samira, não é? Pena que tenha um gênio do cão, do pai, dizem alguns. Até o cão tem melhor gênio. 19/09/2020
Os cachorros, ah os cachorros. Milu é uma pessoa de suma importância na casa de Mané. Com suas necessidades sempre prementes, bota ordem na casa e educa as outras pessoas. Laly, a cachorra de sua mãe, morta em maio passado, era mais importante ainda na casa dela. Por tudo isso e também pela companhia que fazia a ela. Ainda hoje quando Mané chega à casa de sua mãe, estranha o vazio que ela deixou. Laly foi tão importante que quase fez Mané acreditar em Deus. Não esse Deus invisível de hoje mas, sim, o Deus de antigamente que interagia e dava instruções pessoalmente para as pessoas, se é que me entendem. Quando o pai de Mané morreu o Rabino deu todas aquelas explicações sobre a elevação da alma dos mortos, o ciclo das rezas e como era importante rezar na primeira semana para que a alma encontrasse o seu caminho que, recém desencarnada, ficava perdida sem saber para onde ir. Mané provocativo perguntou ao Rabino “e onde ela fica”? O Rabino disse que não sabia mas que seria provável que ela rondasse seus últimos locais conhecidos e instintivamente Mané olhou para o quarto que seu pai ocupou no fim da vida que fica lá no fim do corredor. Distraidamente, olhou para Laly e percebeu que ela olhava para a mesma direção. Mané esteve na casa da mãe todo dia duas vezes por dia naquela semana e encontrava Laly sentada na ponta do corredor olhando em direção ao quarto. Quando Mané sentava ela levantava, ia até o meio do corredor e ficava latindo pro quarto. A mãe dizia: “ela pegou essa mania”! Mané pensava, estará latindo pro meu pai que está rondando sua última morada? Mané ficou na dele, chamava a cadela com um petisco, às vezes ela se acalmava, às vezes rosnava baixo ao invés de latir. Em uma semana tudo passou, o alívio foi geral. Pra mãe de Mané Laly finalmente parou de perturbar, já Mané achou que a alma do pai tinha finalmente encontrado o seu caminho. 15/09/2020
A Vila Madalena está em reforma. As calçadas da maioria das ruas estão quebradas ou sendo. Quando um pedaço fica pronto, eles começam a quebrar outro. No outro dia Mané falou para Anuar, olha, esse pedaço está pronto. E realmente tinha lá um quarteirão com o cimento branquinho reluzindo. O entorno porém, era só entulho e pedregulhos, porque não terminam o serviço? Lá na frente passaram por uma calçada novinha que estava sendo perfurada. Mané, estarrecido, foi perguntar a razão para o trabalhador e este lhe respondeu que era para por aquelas lajotinhas amarelas para cegos. E porque não puseram antes de ficar pronto e quebrar de novo? Ah, disse o rapaz, daí precisava ter planejado, né? E porque não planejaram, grunhiu Mané. Bom, disse o moço, daí é melhor falar com o mestre, e apontou o queixo para um senhor gordo de barriga pra fora que estava encostado numa caçamba de entulho. Mané virou-se indignado e já se dirigia ao gordo quando sentiu o chão lhe fugir e caiu estatelado no meio daquelas pedras e da poeira reinante. Humilhado no chão, desistiu de dar qualquer bronca e, enquanto analisava se não tinha se quebrado pensou, que se fodam as ruas, o mestre, os engenheiros, secretários e o prefeito. Voltou pra casa triste e cabisbaixo, Salma fez pouco caso da raladura mas a dor que Mané sentiu nos três primeiros dias lhe fez pensar que as crianças, que volta e meia ralam os joelhos, são seus verdadeiros heróis. Já faz uma semana do ocorrido, as ruas estão do mesmo jeito, o joelho dói menos mas Mané ainda encontra material exsudativo todo dia nos lençóis e é precisamente isso que está incomodando a desumana Salma. 13/09/2020
Já é tarde não tem mais nada na padaria. Eu sei que queria um doce mas você devia ter tido vontade antes. Nem sonhos grandes nem pequenos. Olha eu não vou mais ficar entrando em todas as padarias da cidade. Sim, Perdizes, essa que estou fica na Homem de Mello. Já fui naquela estava fechando. Eu devia era comprar um pacote de bolacha e pronto. Se tem em casa porque você não come? Mas descobrisse antes então, não da pra ter vontade as 10 da noite. Sim, lógico que antes eu achava, você estava grávida. Não me sacaneia, você não teve muitas vontades na segunda gravidez. Ah, tá bom eu vou voltar pra casa, tem aqui um bolinho de chuva de ontem eu vou levar uns três pra você. Vai abrir uma lata de leite moça? Esquenta um pouco então, vira doce de leite. Não, peraí, o cara está voltando com um sorriso. Ele achou um troço aqui. Não sei, nunca tinha visto. É um doce português, deve ser bom. O que tem dentro? Espera...pão de ló bem úmido, ovos moles de Aveiro? Creme de ovos moles mas não são de Aveiro, são aqui de Perdizes mesmo, espera vou mandar uma fotinho, parecem bons. Eu não quero experimentar, Salma, vou levar, pronto. Coloca três pra viagem. Quatro? Não, só três, parece meio pesado. Como chama o doce? Oi? Guardanapo de Portugal? Não adianta, já está embalado, vou pagar. É, isso mesmo, Guardanapo, não de Aveiro, de Portugal. Portugal..Portugal. 12/09/2020
Num dia desse há 37 anos, estava Mane à porta da casa de Salma pois iam sair para comemorar seis meses de namoro. Enquanto esperava Mané se pôs a espanar o banco do carona que julgou estar empoeirado. Nas reentrâncias do assento ele encontrou quatro fios de cabelo da cor preta, lisos e grossos o que o remeteu à sua última namorada pré Salma com quem tinha tido uma relação tempestuosa e não foram poucas vezes, lembrou, que eles estiveram sentados nesse mesmo carro trocando beijos e carícias fervorosas. Mané gostava de enfiar os dedos na sua basta cabeleira negra, quando a pegava pela nuca e aproximava a sua boca da dele, deve ter sido num desses momentos que os cabelos se desprenderam e caíram ali no banco. Mané lembrou com saudade do último beijo, antes de levar um pé na bunda da morena pois ele não se decidia a tornar mais seria a relação. De repente Mané viu Salma assomar à porta e ficou agitado como se tivesse sido pego no flagra e tentou remover os fios de cabelo que tinham grudado entre seus dedos sem sucesso. Quando Salma chegou ele estava sacudindo a mão como se tivesse tocado uma água viva. Salma entrou cheirosa e radiante e estranhou o badanal e perguntou o que ocorria e Mané lhe disse que tinha um cabelo grudado na mão que não saia e, pedindo desculpas mentalmente à antiga namorada, falou: “que nojo”. Sem se abalar Salma pediu pra ver e, com dedos delicados pinçou os quatro fios da sua mão, olhou-os de perto e disse: “hmmmm, cabelos pretos e lisos, não são meus” e, sorrindo emendou: “então, onde vai ser a comemoração?” 11/09/2020
Mané e Salma provém de culturas distintas. São opostos que se atraíram apesar de que Salma também é um pouco diferente da família dela. Os de Salma são mais expansivos, falam ao mesmo tempo, as conversas quase sempre tem contato físico, sentam no colo um do outro, uma pegação geral. Já os de Mané são um pouco mais discretos, abraços e beijos sempre existiram mas por motivos específicos, sempre houve um certo distanciamento físico. Mané e Salma se adaptaram perfeitamente às peculiaridades da família um do outro. Quando Mané e Salma resolveram casar houve uma reunião dos sogros na casa de Mané. Sua mãe preparou alguns quitutes e quando Salma chegou com os pais, sentaram-se lado a lado num sofá as mães, no sofá da frente os pais e fechando o círculo em duas cadeiras, Salma e Mané observando tudo. Na parte das mães a coisa correu bem, já no lado dos pais, o de Mané, que tinha ativado o modo “mute”, levava uma verdadeira sova do pai de Salma que falava pelos cotovelos e a cada frase cutucava o pai de Mané, com o cotovelo, com a mão. O pai de Mané foi se encolhendo num canto até uma hora que achou que ia ter que resgatar o pai dali. Passou. Anos depois, já casados, Salma encarregou Mané de uma missão matutina na casa dos sogros. Mané tocou a campainha as 8:30, sua sogra o atendeu com um copo de café trajando um roupão semi aberto, Mané lembra até hoje da cor da lingerie. Sem olhar muito Mané perguntou pelo sogro e descobriu que estava no banheiro. Mané disse, vou esperar, mas o sogro gritou do banheiro pra ele entrar e Mané olhou em dúvida para a sogra que o encorajou a ir em frente. O sogro estava sentado na privada lendo jornal e tomando café e eles ficaram conversando no banheiro onde concluíram com sucesso ao que tinham se proposto. Esta cena Mané também nunca mais esqueceu. Mané voltou pra casa e reclamou do ocorrido com Salma que lhe disse: “você não conseguiu o que queria? Na minha casa é assim, sempre que eu queria alguma coisa eu ia falar com ele no banheiro de manhã ou então entrava no quarto quando ele estava pelado se trocando, era a melhor hora pra conversar”. 10/09/2020
Salma disse a Mané certo dia, “essa pandemia vai acabar com você” e hoje, Mané pensou “que seja só comigo e não conosco”. Eis que Mané sempre foi afeito a dar apelidos a Salma. Todos carinhosos. Um deles, que Salma nunca gostou, era víbora, mais propriamente, viborazinha e Mané se referia a aquele jeito que Salma tinha de se enroscar nele nas demonstrações mais efusivas de afeto. “Minha viborazinha”, dizia Mané, e Salma se enroscava nele. Mas, enfim, não é disso que se trata. Noite dessa Mané sonhou que Salma se enroscava nele e, de manhã, com essa mania que pegou de jogar no bicho, foi até a banca da Taís, apostou na cobra e, para sua surpresa e satisfação, deu na cabeça a centena e o milhar. Mané agora está pensando num jeito de contar pra Salma. 08/9/2020
Da família do pai Mané pouco sabe. A avó paterna morreu quando o pai tinha seis meses, ele foi criado por tios. Tem dois meio irmãos, um Mané conheceu o outro não. Mantém um contato distante com esses primos. Como se fossem meio primos. Da parte da mãe, não. Até uma certa época foram criados todos juntos e misturados, claro que tinha aquele tio mais distante, aquele mais maluco e aquele que era a ovelha negra da família. Mas eram tios, pessoas com as quais se podia contar e os primos, eram amigos estratificados por idade, as primas mais velhas eram como irmãs, os primos objeto de temor e admiração e o da mesma idade cresceu junto com Mané, se entendem até hoje. Essa família quebrava o pau com a mesma facilidade com que fazia as pazes. Mané passava férias com a irmã da sua mãe e jogava bola com o marido dela, já que o pai não era afeito a esportes. Quando uma prima aprontava algum membro da família não perdia a chance de dizer que “elle a le mauvais caractère de sa tante...” e nesse espaço aparecia o nome da mãe de Mané e este, que causou muitas atribulações quando pequeno, cansou de ouvir: “tu as le mauvais caractère de ton oncle...” espaço para o nome de quem se quisesse falar mal. Os anos passaram, cada família se replicou em outras tantas, alguns netos de primos Mané nem conhece mas e daí? Ainda temos intimidade pra brigar e ficar em paz, nós sabemos com quem estamos falando. Tem um fio invisível e forte que nos une, mesmo que tenham ali os malucos, os que tem uma tendência ideológica inadmissível, não importa, ainda podemos também falar mal uns dos outros. 07/09/2020
Mané foi passear nesta manhã de pandemia na Paulista com Anuar. Pelas tantas encontraram um chargista e resolveram fazer uma caricatura. O cara falou que levava quinze minutos então Mané, que é impaciente, concordou. O cara foi desenhando até que a certa altura passou uma mulher que vendia café e o desenhista quis tomar um. Perguntou quanto era e a moça disse “dois reais”. Eles então iniciaram uma discussão sobre o preço, o desenhista dizendo que todos cobravam um real e a vendedora dizendo que o café dela não era de serragem. Mané, que estava posando, foi ficando nervoso enquanto os dois faziam digressões sobre preços e qualidade. A uma certa altura Mané interrompeu a discussão, deu 10 reais pra vendedora e disse pra ela fornecer cinco cafezinhos para o desenhista na hora que ele quisesse. O pintor, que parecia boliviano, disse “non pressissa”, mas Mané insistiu e pediu pra ele se apressar. Ele terminou o desenho, agradeceu e cobrou 20 reais pelos dois portraits e agradeceu pelos cafezinhos mas disse que aquela vendedora “era una ladrona” mas que “lo cafessinho de eja é muito bueno”. Despediram-se afavelmente enquanto ele degustava o primeiro dos cinco cafezinhos a que tinha direito. Supostamente esses são Anuar e Mané. 06/09/2020
Mané esteve no médico recentemente e após as considerações de praxe ele disse ao médico que sentia uma coceirinha num pontinho das costas impossível de alcançar tanto que, quando coçava muito, Mané tinha que se esfregar nas quinas de parede como fazem nas árvores da savana os elefantes. O médico riu e pediu que Mané virasse de bruços para que examinasse de depois de um tempo ele disse que não tinha nada visível ali e que, portanto não tinha nada pra fazer, que aquilo podia ser qualquer coisa e sugeriu que Mané procurasse um dermatologista. Mané ficou bravo e pediu a ele uma pomada, um ungüento ou loção como faziam os médicos de antigamente e o médico riu de novo, mas deu uma pomadinha e reforçou que caso continuasse seria recomendável procurar um dermatologista. Mané já ia saindo com a receita, mas, à porta, estacou e disse: ah que ótimo, se eu não consigo coçar a coceira como vou passar a pomada? O médico, já impaciente, perguntou se Mané tinha mulher e Mané respondeu feliz: sim, tenho minha Salma, por quê? E o médico fechando a porta respondeu: “pronto, já sabe pra o que ela serve”! 03/09/2020
Mané foi contatado por uma pessoa com quem trabalhou no banco e que não via há pelo menos 25 anos. A moça disse que se surpreendeu com suas postagens, que riu, chorou, se enterneceu e, nada como a sinceridade, algumas vezes sentiu tédio. Disse que nunca poderia imaginar que aquele jovem bancário sério e sisudo sequer pudesse escrever coisas assim, que no passado era um cara totalmente voltado para o trabalho, de poucas palavras e, desculpando-se mais uma vez, até meio cavalo, principalmente depois da sua promoção. Mané ficou lendo aquelas coisas sem acreditar e, pra falar a verdade, estava com certa dificuldade de lembrar dela e talvez tenha deixado isso transparecer nas conversas porque na última mensagem ela disse que estava mandando uma foto recente pra ele saber com quem estava falando. 02/09/2020
Na Fradique Coutinho, entre a banca do bicho e a sorveteria, tem esse sebo que é administrado por uma pessoa que Mané nunca viu, apesar de conversar com ele quase todo dia. Ele é japonês, como contou o vendedor da ótica em frente e tem, segundo ele próprio, 35 mil livros na loja. O cara fica sentado atrás dessa pilha à esquerda e de lá ele responde se tem ou não determinado livro. Se tem, ele informa a localização se for possível pegar, senão ele pede pra voltar amanhã que ele vai liberar o volume. No outro dia Mané recitou pra ele o nome de 10 livros que ele não tinha e Mané, sempre sem vê-lo, perguntou se ele sabia de cor ou se consultava um arquivo, ele respondeu “de cor”. Ainda sem vê-lo por trás da parede de livros, Mané duvidou que ele guardasse o nome de 35 mil livros e ele disse pra Mané não duvidar, só os mais antigos davam-lhe certo trabalho pra lembrar. Posso fazer um teste, perguntou Mané e, ele assentindo, Mané olhou pra um livro enfiado bem embaixo e deu o nome. Ainda sem aparecer ele disse: “terceira fileira à sua direita, na parte de baixo, tem que agachar pra pegar, vai levar”? Quanto custa, Mané perguntou. Quanto vc quiser pagar, ele respondeu. Mané pagou 10 reais por um livro que não vai ler e nunca mais vai desafiar o japonês invisível. 01/09/2020
Na sua caminhada diária pela Vila Madalena, Mané percebeu coisas que em vinte anos não tinha percebido pelo fato de que, antes da pandemia, só passava por ali de carro. Dentre as inúmeras curiosidades estão três bancas de jogo do bicho, estrategicamente localizadas em botecos pé sujíssimo. Toda vez que Mané passa pelos pontos sente vontade de jogar até que anteontem fez sua fezinha no cachorro com 10 reais. No dia seguinte voltou lá e a moça disse que tinha ganhado 100 reais. Mané e Anuar ficaram tão felizes que jogaram mais 10 reais e, passado mais um dia, voltaram à banca para descobrir que tinham feito dois duques, cachorro de novo (tks Milu) 200 reais no bolso. Quase explodindo de felicidade, Mané consultou Anuar e resolveram apostar 20 reais no cachorro de novo e no camelo, em homenagem às origens de Mané. Voltaram pra casa com o supermercado garantido e contaram a novidade pra Salma que torceu o bico. Não gostou de terem dobrado a aposta e vaticinou que é assim que começa a derrocada. Mané deu de ombros, sempre tem um pessimista incrédulo no seu caminho e amanhã, depois de pegar seu prêmio, vai jogar no burro e na raposa em homenagem aos nossos políticos. 30/8/2020
Quem pensa que lavar a louça é uma tarefa pouco nobre se engana. Ao longo de quase seis meses Mané, que já lavou centenas de louças, aprendeu que a função, além de ser um bom momento para isolamento e reflexão, é uma atividade que carrega em si um alto grau de tecnologia. Dia desses Mané saia pra caminhar e Salma lhe pediu que comprasse esponjas de louça da cor azul. Pensando que se tratava de uma questão de cor, Mané comprou uma roxa, que achou mais bonita. Ao voltar pra casa Mané teve que aturar o desagrado de Salma que lhe explicou que não é uma questão de eleger uma cor, mas sim de finalidade. Mané então aprendeu que a azul é pra limpeza leve e a roxa pra pesada, tipo queijo gratinado queimado e grudado numa travessa. E essa grossa da cor amarela? Essa serve pra lavar fundo de panelas, por exemplo, sem ter que enfiar a mão na gordura. Ah, ta! A coisa ia enveredar para a cor dos detergentes, mas Mané não quis abrir mão de sua primazia neste campo. Salma gosta dos transparentes que são neutros e não prejudicam as mãos. Mané sempre opta por cores fortes, independentemente da eficiência ou agressividade, verde, vermelho, laranja, amarelo ou outra cor berrante. Recentemente lançaram um roxo escuro, sabor framboesa, que é o seu preferido. 29/8/2020 --
O casulo arde. Mané tateia em busca do telefone. São 06h05min, Salma ainda ressona suavemente, pergunta que hora são e Mané lhe diz que são 12h10min, que ela precisa levantar para fazer o almoço. Faz você, ela responde, esquenta o que sobrou de ontem. Uma urgência primitiva faz Mané se levantar, a próstata cresceu e a bexiga diminuiu. Ele levanta para enfrentar a hostilidade gelada do mundo, não de todo mal nessa hora que a cama ficou muito quente. Depois do alívio Mané sente que ainda tem um pouco de sono e resolve voltar pra cama. Lá chegando encontra Salma deitada de través ocupando todo o espaço e abraçando todos os travesseiros. Ele senta na beirada e tenta empurrá-la de volta para a outra metade. Debalde. Salma parece pesar uma tonelada e Mané não consegue movê-la nem um milímetro. Mané esta descalço e sente seus pés congelarem, quer voltar pra debaixo das cobertas e tenta em vão empurrar Salma. Vem-lhe novamente a imagem do cavalo morto, Salma murmura explicações sobre a travessa que não pode ir ao microondas, pra ele transferir para a outra antes de esquentar. Mané diz que por enquanto só quer esquentar a si próprio, “volta pro seu lado, quero deitar”, ele dá a volta e tenta puxá-la pelo braço, mas lembra que no outro dia ela reclamou de uma dor no ombro e prefere não arriscar. Ele tenta então entrar pelo outro lado empurrando ao invés de puxar, sem sucesso. Mané começa a ficar puto da vida, Milu entra no quarto para averiguar a razão da movimentação, mas Salma, que está em outra dimensão, não se da conta de nada, ao contrario, abraça com mais fervor o travesseiro e puxa o acolchoado pra cima da orelha deixando de fora apenas o nariz. Mané pega um cobertor na poltrona, vai pra sala e deita no sofá. Uma nesga de sol já atravessa o ambiente e Mané anseia deitar e voltar a dormir. Milu raspa a pata no braço de Mané e Mané lhe da um repelão. Ele late e Mané sente que está ficando completamente acordado, os últimos resquícios de sono se perdem no olhar pedinte do cachorro. Mané senta no sofá e olha o cenário desolador à sua volta, casacos atirados a esmo, um par de chinelos, controle da TV no chão, um livro de borco. Mané volta pro quarto, são 07h10min. Ele diz pra Salma que são 09h25min, o café da manhã está pronto, que comprou pão quente e que a mãe dela tinha ligado. Salma se levanta de chofre e anda dez passos até o banheiro. Mané então ajeita a cama e os travesseiros, deita-se e puxa as cobertas até a orelha. E mais não sabe.28/8/2020
Mané vai dormir. Está frio, ele está vestindo um pijama grosso de flanela e uma camiseta quente por baixo. Por cima de tudo um roupão de fleece. Quando chega perto da cama ele tira o roupão para deitar. Ajeitando as cobertas ele vê que Salma pôs do lado dela um cobertor de lã. Mané acha ridículo, um exagero. Um lençol e um acolchoado gordo já e o suficiente, ninguém está na Lapônia. Mané deita e sente a temperatura glacial da cama. Ele pega o livro e tenta ler mas seus pés se transformam em cubos de gelo. Ele resolve colocar um cobertor extra. Fica então um lençol, um cobertor e um acolchoado. Ele deita. Mané sente que ainda falta algo, sente frio nas coxas, nos joelhos e na bunda. E vontade de fazer xixi. De soslaio ele vê a colcha que vai por cima de tudo atirada sobre a poltrona do papai e resolve estica-la de novo. Temos então, um lençol, um cobertor, um acolchoado e uma colcha. Mané fica satisfeito quando entra debaixo desse conjunto e se sente totalmente aconchegado e protegido do frio. Tenta ler mas o peso das cobertas o impede e então ele resolve simplesmente dormir. Ele ignora a vontade de fazer xixi. Pouco antes de adormecer ele se pergunta se Milu estaria com frio mas num último laivo de consciência ele pensa: “foda-se, ele tem pelos e aquela roupinha que Samira põe nele no frio” e logo adormece debaixo de todas aquelas camadas. No meio da madrugada Mané acorda se sentindo sufocado. Ele não acredita mas está suando e não consegue se mexer, tem a sensação de estar deitado debaixo de um cavalo morto. Ele tenta tirar tudo o que o cobre mas são muitas camadas e ele se enrosca. Salma pergunta se ele está surtando mas finalmente aquilo tudo sai de cima e ele por fim adormece. De manhã, acordou coberto apenas com o lençol, tiritando de frio, com o rosto e as extremidades arroxeadas e Salma a lhe dizer que essa pandemia ia acabar com ele.26/8/2020
Daqui a alguns anos, Mané tenta explicar aos descendentes como se vestiam as pessoas durante o dia, depois e antes de 2020. 22/8/2020
Hoje Anuar e Mané foram visitar Halim que vai mudar de vida em breve. Foi muito gostoso e, como podem ver, estavam todos muito à vontade. 21/8/2020
Mane adora maçãs Golden. Perto da casa dele só tem à venda num supermercado que fica na praça Panamericana, a uma distância de 3km. Então, num momento de estiagem, Mané pegou Anuar e foram comprar as tais maçãs, meia hora pra ir, outra pra voltar. Tudo pronto, vamos. No mercado Mané escolheu com cuidado e encheu um saquinho com 6 Goldens importadas, cotadas a 17,99 o kilo. No caixa a moça flertou com Mané e perguntou se só tinha vindo comprar maçãs e Mané respondeu: “sim, adoro as maçãs Golden”! A moça registrou a compra e Mané viu que apareceu no visor do caixa maçãs gala a 5,59 o kg e disse: você marcou errado, eu comprei as Golden. A moça estacou, abriu o saco e mostrou a Mané uma etiqueta na maçã que dizia gala. Então Mané retrucou que eram Golden, as galas são vermelhas, essa é verde. A moça bufou e foi falar com a supervisora e voltou depois de 10 minutos dizendo que ia cancelar e marcar como Golden, mas “o sr. vai pagar mais caro”. Ela ficou teclando e pedindo ajuda e senha por um longo tempo e Mané, impaciente, perguntou se ia demorar e a moça, mal educada, disse que a culpa era dele, se tivesse ficado quieto pagaria mais barato e já teria ido embora. Mané ficou contrariado e retrucou, quer saber: “pode ficar com essas maçãs”, largou as Golden no balcão e saiu pisando forte. Na rua Anuar protestou, mas pai, andamos uma hora e vamos voltar sem a maçã Golden? Mané então voltou ao mercado, foi à banca de maçãs Golden, pegou 10, escolheu outro caixa onde a moça pesou e disse: “ é só a maçã gala hoje”? Mané sorriu e respondeu: sim, adoro maçã gala, quanto é? E a moça: deu 1 kilo e meio: são 8,38, linda essa maçã gala verdinha, né?