sábado, 2 de novembro de 2019

Se Mané apagasse do Facebook seus desafetos políticos teria que eliminar quase todo mundo. Na sua linha tem donos da verdade de todas as cores, o mundo sendo revelado de acordo com o filtro de cada um, o mesmo fato produz posicionamentos diversos e incongruentes. Mané está com saudade de fotos de comida, de viagens, das coisas boas e dos inúmeros e ininterruptos sucessos que acontecem na vida das pessoas. Ontem à noite, em pleno shabat, que Deus o perdoe, Mané foi a uma igreja para a missa de sétimo dia de um amigo. Além de estar se sentindo um caramujo fora da concha, agia como se houvesse uma seta vermelha acima de sua cabeça denunciando-o. Atrás dele dois caras discutiam o vídeo das hienas, um contra e outro a favor, lógico. Pararam quando o padre começou a oferecer a hóstia e os dois rumaram comportados para a fila. Mané perguntou pra Anuar se ele preferia igreja ou sinagoga. Anuar respondeu que era quase a mesma coisa, senta, levanta, mas, pensando bem "aqui na igreja eles falam em português, pelo menos a gente entende alguma coisa", ao que Mané respondeu: "shhh, fala baixo, alguém pode escutar." Mané é um exemplo de tolerância, casou com uma mulher católica, nenhum dos dois é lá muito aferrado a estes temas religiosos, talvez tenham causado alguma confusão na cabeça dos filhos com essas duas identidades mas enfim, quais pais não confundem a cabeça dos filhos? Sendo assim, Mané pode suportar seus amigos à direita, assim como os da esquerda, seja lá o que isso queria dizer, ele sabe que ambos estão errados. Diante dessa epifania, Mané que teve uma semana de merda, quer que tudo vá para o inferno. 02/11/2019
Sábado um amigo de Salma morreu. Você não vai acreditar, ela disse a Mané. Mané não era assim tão chegado, mas era. Mané encontrou com ele, o que, umas 30/40 vezes na vida. Viajaram uma ou duas vezes, muitas festas de aniversário. Mané nunca sentiu sua falta nos lapsos, Salma sim. Mané se dava bem com ele, era sempre um desafio manter uma conversação, era uma pessoa que estava sempre alerta e sempre provocativa. Contava ano após ano os mesmos causos, mas toda vez tratava de acrescentar algum detalhe e assim, sempre surpreendia a todos. E como não eram tão íntimos assim, sempre que se viam só tinham tempo de gargalhar sobre momentos passados e gargalhar sobre as gargalhadas dos momentos passados. Os amigos estão falando dele, que vão sentir saudades, que ele era ferino mas também afetivo, ou seja, ninguém vai sair ileso. Mané não era assim tão chegado, mas era. Mané fica olhando para a tristeza de Salma e acaba ficando triste. Mané presta atenção nas coisas que ela fala dele e fica querendo que ela não falasse, ou pelo menos que tudo lhe fosse mais leve. Não vai ser. Mané se pega pensando na viúva, no filho da idade dos seus e se atormenta, como vão tapar esse buraco? Desde sábado os pequenos entreveros do dia a dia se tornaram grandes, os grandes se tornaram insuportáveis. O velório foi num lugar longe e, no longo caminho, Mané desejou que ele estivesse brincando, seria típico dele acordar ali e fazer chacota de todos. Não estava.29/10/2019
Mané é indiferente ao futebol. Poucas coisas o mobilizam a acompanhar ou comentar este esporte, talvez o time do São Paulo chegando a alguma final ou a seleção brasileira de antigamente, não essa de hoje. No mais, nada o emociona nesse esporte. Mané tem pena da garotada de hoje que é obrigada a torcer e comentar os feitos de times estrangeiros já que por aqui nada acontece. No entanto, Mané tem grande antipatia por dois times muito populares, o Corinthians e o Flamengo, mas Mané não vai falar do Corinthians. Nesta manhã, durante suas abluções, Mané leu no jornal que o Flamengo, com um técnico português, quer se tornar um time global. Mané já viu isso acontecer outras vezes. Os caras ganham cinco jogos em seguida e já acham que podem se tornar donos do mundo. Então. O Flamengo vai ser esmagado pelo River Plate nessa final de Libertadores e o técnico português vai ser demitido. Se ganhar a Libertadores, pode acontecer porque o futebol é uma caixinha de surpresas ou porque a Argentina também esta no fundo do poço, o time acaba já no ano que vem porque todos os seus jogadores serão vendidos para os times da Espanha, Inglaterra e França. Aliás, de qualquer jeito o time acaba em breve, aproveitem torcedores, nesta final o Flamengo é o Brasil, vejam só que merda. O Flamengo não é aquele time que imolou não sei quantos jovens num alojamento improvisado e que não quer pagar indenizações? Acho que é! Preferia que o Grêmio estivesse na final da Libertadores. É um time tricolor, todos têm um sotaque simpático quando dão entrevistas, ao contrário dos chiados cariocas, o Renato Gaúcho é um técnico bonito e fanfarrão, nem ele próprio se leva a sério, o que só o faz melhor e também porque Mané é amigo de uma família gaúcha que deve estar sofrendo nesse momento. A verdade é que o Flamengo é a pior opção para representar o Brasil e vai ser terraplanado pelo River Plate. Estamos todos mixados. 25/10/2019
Mané está sentado na mesa de exames do ortopedista especialista em ombros. O ombro dói, já tinha passado por isso com o esquerdo, agora foi a vez do direito. O doutor manuseia o braço de Mané: "aí, assim dói, assim não, aaaaai, assim dói muito". O médico vai fazendo muxoxos e depois respira fundo: "quantos anos você tem mesmo? Sabe como é, né? O esqueleto vai se degenerando, mas nada grave". E Mané responde que está difícil dormir, dói muito quando deita deste lado. E o médico: Ah sim, quando se dorme de lado o ombro se transforma numa excrescência, algo fora do contexto, um pedaço do corpo que não deveria existir. Como assim, pergunta Mané, meu ombro não é uma excrescência. E o médico: naaaaaao, só quando dorme de lado, melhor seria de barriga pra cima. Mané insistiu que não dormia de barriga pra cima e então o médico disse que ia lhe dar uma injeção de Diprospan para tirá-lo da crise e que Mané devia voltar em três semanas para ver o que sobrava da dor e receber sua prescrição para a fisioterapia. É só uma artrosesinha degenerativa, nada grave, hahahahah. Vamos cuidar da sua excrescência e ela vai ficar nova, isto é, quase nova, como um carro de segunda mão, usado mas em estado de novo. Na hora de pagar Mané perguntou à moça se podia dividir o recibo e ela se negou peremptoriamente. Mané voltou pra casa e resolveu tentar dormir sem esmagar a excrecência, mas está achando que não vai dar certo. A dor praticamente desapareceu. 23/10/2019
Falafel é uma street food muito popular em Israel e é montado num pão sírio recheado do falafel propriamente dito, que é um bolinho frito de grão de bico com especiarias, além de diversos acompanhamentos tais como pepino azedo, repolho marinado, vinagrete, picles diversos e molho de gergelim entre outros. Além disso, se o freguês quiser, ainda pode levar umas pinceladas de uma pimenta que costuma ser bem forte. Certa feita, estando em frente a um quiosque desses, Mané resolveu comer o acepipe. O vendedor rapidamente atirou as bolinhas pra dentro do pão e foi perguntado a Mané quais dos acompanhamentos iria querer. Quando chegou na pimenta, Mané hesitou e perguntou ao rapaz se era muito ardida e, diante da confirmação, pediu só um pouquinho. Com o sanduba na mão entregou o dinheiro a ele e este, rapidamente fez o troco entregando um punhado de moedas a Mané que esticou a mão para pegá-las mas nisso, o vendedor já tinha aberto a mão e as moedas caíram todas dentro da pimenta. Nesse momento os dois ficaram parados olhando para o molho. O sujeito meio sem jeito começou a tentar pescar as moedas dentro do recipiente, usou uma colher, depois uma escumadeira, uma faca, canudinhos, sem lograr sucesso. Bufando, separou outro troco e o entregou com cuidado para Mané que guardou as moedas mas manteve o olhar fixo no recipiente de pimenta, agora cheio de moedas. O vendedor, constrangido pela falta de higiene, pediu que Mané não se preocupasse e disse: pior seria se tivesse caído no repolho, ainda bem que foi na pimenta, nada sobrevive aqui dentro. O falafel estava ótimo. 16/10/2019 (foto de falafel)
Durante a faculdade e um pouco depois, Mané teve uma namorada que foi importante. Eram dois gênios fortes e por isso a relação foi intensa tanto no afeto quanto nas brigas. Aliás, foi um namoro repleto de idas e vindas, terminava com promessas de nunca mais e voltava com a sensação do agora é para sempre. Era como se tivessem um acordo: vamos sempre brigar, mas a gente retoma daqui a pouco, e assim foi durante quase 6 anos. Num desses rompimentos, que foi mais demorado que o normal, Mané conheceu Salma e já a namorava há quase um ano quando foram a um show do Eduardo Dusek – Barrados no Baile. Lá nas arquibancadas, enquanto aguardavam o início do show, Mané e Salma comiam guloseimas e se amassavam quando Mané se sentiu observado. Por cima do ombro de Salma, Mané revê a sua namorada da faculdade que o fulmina com um olhar de: “como assim, não tínhamos um acordo?” Aquela foi a última vez que Mané a viu e aquele olhar o assombraria para sempre. Pouco depois se casou com Salma e num determinado dia de 1986 toca o telefone no recém formado lar de Mané, enquanto assistiam na TV a Tancredo Neves agonizando mas mantendo os sinais vitais. Um colega da faculdade, diz Salma. Uma breve conversa e o cara lhe informa que tem uma má notícia: a namorada da faculdade tinha morrido num acidente, missa de sétimo dia amanhã. Mané ficou em estado de choque, nem o apoio de Salma o tirou do catatonismo. Mané foi à missa, reencontrou os parentes, mas tudo lhe parecia distante e irreal, como assim ela morreu, não tinham um acordo? Passados mais de 30 anos, de tempos em tempos Mané se lembra dela e a coisa sempre fica assim, parada no ar, aquele último olhar sempre incomodando, como uma história sem fim. Nesses dias Mané resolveu visitá-la no cemitério e quando chegou lá se deparou com um gramado bonito e uma placa com seu nome. Mané não tinha trazido flores (nem as pedrinhas dos cemitérios judaicos) então ficou lá um tempinho remexendo nos bolsos a procura de alguma coisa, um sinal. Nada. Nada a não ser uma paçoca que Mané tinha comprado num farol por 2 reais. Então Mané tirou a paçoca do bolso e a depositou num vão destinado ao vaso de flores, e a cobriu com umas folhas secas. Mané pensou alguns segundos se aquilo fazia sentido, mas depois lembrou que paçoca é uma guloseima mineira e como ela era de origem mineira e gostava de guloseimas, talvez apreciasse. Então Mané se afastou rapidamente antes que alguém percebesse sua insanidade, entrou no carro e mergulhou na realidade. No carro Mané ficou pensando que ainda faltavam alguns detalhes para fechar essa página, mas ele desconfia que o livro vá permanecer aberto. Mané ligou o rádio na Kiss FM onde tocava, significativamente, uma musica do Guns and Roses, cujo refrão martela insistentemente: “yesterdays got nothing for me” 15/10/2019
Nessa época do ano os judeus costumam ir visitar seus mortos, agora entre o ano novo e o dia do perdão. Mané se animou, muniu-se de velas e foi ao périplo. Visitou primeiro a avó, sua companheira de infância, com quem sempre tem muitos assuntos a tratar e depois o avô que mal conheceu, lá não teve conversa. Depois foi ao pai, um cara com quem teve uma relação difícil, esse mesmo que lhe deixou o amor pelos livros, Mané caprichou no epitáfio, não se cansa de lê-lo. Depois fez um raide entre tios e primos, uns mais próximos outros mais distantes, com todos tem alguma história pra lembrar, coisas boas e também ruins, assim é a [morte] vida. Mané chegou ao cemitério com dois pacotes de velas, cada um com dez unidades. Sobraram seis, da geração de Mané pra cima, tem mais gente lá do que cá. Mané se sentiu confortado com o passeio mas ficou um pouco impressionado com a quantidade de mortos, além da dor no joelho por agachar tantas vezes para acender velas. Depois, fez um relatório para sua mãe que ficou triste. Ainda falando deste range familiar, ela, hoje, é a mais velha enquanto Mané, é o caçula. Fim da história. 06/10/2019
Hoje saindo do metrô Mané deparou-se com um prédio em construção. Passou na frente e, curioso, consultou o Google onde descobriu alguns detalhes sobre o empreendimento. Não falou nem perguntou nada para ninguém. Ao chegar em casa fez xixi, tirou os sapatos, fez um cafuné veemente no Milu e deu uma deitada. Nem bem tinha se aconchegado, o telefone fixo tocou. Mané praguejou imaginando que fosse a sogra ou a mãe e levantou para atender. Era uma moça da construtora cujo empreendimento Mané tinha acabado de consultar na internet oferecendo um dos inúmeros lançamentos da empresa na Vila Madalena. Para se vingar, Mané disse que estava interessado, sim mas que já tinha uma corretora. A moça desligou chorosa e Mané foi deitar novamente sentindo um grave desconforto de quem se sente vigiado. 27/09/2019
Quando a reunião começou Mané tinha uma folha vazia e uma caneta à sua frente. O assunto era chato e espinhoso, mais chato que espinhoso. E comprido. Então Mané começou a rabiscar furiosamente. Pelas tantas, alguém perguntou se estavam fazendo uma ata porque seria importante preservar a memória das fundamentais decisões que estavam sendo tomadas. Todos olharam para Mané que rabiscava furiosamente e este devolveu um olhar que lhes transmitiu segurança. Então a reunião continuou, assim como Mané, que continuou rabiscando. Ao final, Mané tinha uma folha de papel com o desenho de uma trama e uma caneta com alguns milímetros a menos de tinta. Na saída pediram para Mané enviar a ata, com o que ele alegremente concordou. Segue a ata em anexo. 26/09/2019 (foto da trama desenhada com caneta bic)