quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Mané levantou da cama às 5:40 quando percebeu um halo da luz da manhã se infiltrando por debaixo da porta e por entre as frestas da persiana. Milu lançou-lhe um olhar inquisitivo quando chegou à sala tendo se levantado logo depois de ter recebido um cafuné, dirigindo-se pesadamente para o quarto de Anuar. Mané observou a cidade que ainda dormia e perguntou-se o que ia fazer até as 8:00, quando os outros iriam acordar, menos Samira que acorda bem mais tarde. Mané então deitou no sofá e tentou organizar a semana que entra. Oculista logo cedo na segunda, olhos ardem no fim do dia, pingue uma gota de colírio, um encontro com os colegas do ginásio na terça, olá quem é você, olhos idênticos nos rostos envelhecidos, estranhezas do passado, pequenos amores, grandes distâncias. No dia seguinte outro jantar, uma semana de engorda, o emprego novo de Anuar, o presente para o amigo secreto da firma, o dinheiro para o pagamento do 13o, Mané suspira quando escuta as patinhas de Milu saindo do quarto e pouco depois uma fungada e uma lambida na mão que pendia do lado, Mané consulta o WhatsApp e o Facebook, depois pega Milu no colo que rosna baixinho e enrosca-se com ele no sofá. Já são 8:25 quando Mané escuta Salma dizendo: «outra vez dormindo com o cachorro no sofá? A casa inteira vai ficar cheirando a canil». 08/12/2019
Com dores no pé esquerdo, Mané desembarca no consultório de uma doutora ortopedista e fica muito bem impressionado com a figura alta e morena que o recebe com um sorriso cheio de lindos dentes. Enquanto Mané discorre suas reminiscências da dor, a doutora presta muita atenção e faz que sim com a cabeça. Em dado momento ela fala pra Mané tirar o sapato e pede para que ele sente numa cadeira em frente a ela. Já sem os sapatos e meias Mané tenta ver se está com xulé quando a moça lhe diz para por os pés "aqui". Mané levanta a cabeça para ver onde era o "aqui" e percebe que a moça, ainda sorrindo aponta para o próprio colo. Ao ver Mané hesitar, ela o encoraja e se abaixa para levantar-lhe o pé esquerdo, coloca-o no próprio colo e diz: "ponha o outro pé também". E assim Mané se viu com os pés no colo da beldade que de pronto começou a manuseá-los. Depois de uma pequena cócega, Mané começou a curtir o momento. E a doutora: "se fizer assim dói? E assim? E se eu apertar aqui? Dobrando assim dói? E assim? Aqui no calcanhar? E na pontinha dos dedos"? E depois no outro pé, e no calcanhar, na panturrilha, enfim, Mané estava viajando nas carícias quando ela disse: "e nesse ponto o que você sente"? Tesão, Mané quis dizer mas, segurando-se a tempo, falou qualquer coisa sobre uma dorzinha. Fascite plantar, decretou, mas vou prescrever uma ressonância e você volta com o exame para fazermos o diagnóstico. Mané mal pode esperar pelo retorno. 04/12/2019
Certas pessoas têm a capacidade de levantar no meio de uma discussão acalorada, dizer que precisa sair para fumar e só voltar depois que os ânimos se acalmaram. Outras podem, ao fim de um dia escroto sair para tomar um porre e só acordar no dia seguinte com o espírito renovado, sem sequer saber como chegou em casa. Outras ainda resolvem seus problemas mandando todo mundo à merda e depois, se viram para lidar com as consequências. Uma certa quantidade de sortudos acreditam em Deus e depositam no colo dele a responsabilidade por tudo de bom e de mau que lhes acontece, como se Ele tivesse tempo para se preocupar com as suas ninharias. Mané queria possuir todas esses poderes relatados acima, mas não. Mané é um homem probo, sem vícios nem crenças. Não fuma nem toma porre e o tratado de não agressão que ele tem com Deus não esta funcionando. Certa vez, Mané estando ao pé do Muro Ocidental, o famigerado Muro das Lamentações, observava as pessoas se prostrarem diante dele e depois, com grande liturgia os via enfiar um papelzinho com algum pedido entre as frestas das portentosas pedras. Mané também teve vontade de colocar um papelzinho e ao invés de pedir bênçãos, dinheiro, saúde ou qualquer outra coisa para o Todo Poderoso escreveu em letras bem grandes para que ele conseguisse ler mesmo sem óculos uma só frase que responderia a todos os seus anseios. Mané escreveu: “surpreenda-me”. Não obteve resposta, nenhuma luz, nada. Meses depois, Mané assistiu uma reportagem na TV onde via pessoas preparando a grande esplanada do Muro para alguma festividade e uma das coisas que eles faziam era retirar diligentemente todos os papeis enfiados nas frestas do muro, jogá-las ao chão e depois varrê-las para dentro de grandes sacos. Mané não viu qual o destino dos papeis e nem quer ver. Além de ter se revoltado com o embuste! 27/11/2019
Mané, que deveria ter saído do inferno astral há dias, vê-se envolvido numa maré de contratempos, coisas dando errado mais por sua culpa do que por culpa dos outros, o que é um fato muito raro. Num momento de reflexão começou a pensar nessa coisa de fazer coisas erradas enquanto se tenta fazer a coisa certa e lembrou-se de uma conversa que teve com o sogro que adorava recitar máximas e conselhos e que Mané fingia escutar diligentemente tentando às vezes extrair daí algum ensinamento porque Mané, que esta ficando velho, sabe que os velhos sempre têm alguma carta na manga. Naquela ocasião, alguém próximo tinha feito uma coisa muito errada que iria trazer dissabores e prejuízos para todos e o sogro divagava sobre o ser humano ser um fraco que sempre cedia às tentações que o rodeavam e como ele achava isso inevitável, ele era partidário de que as pessoas fizessem coisas erradas, mas que ao fazê-las, fizessem direito, com o mínimo de rastros e com o mínimo de prejuízo para outras pessoas. Mas só se fosse inevitável, insistia. E discorreu como ele cometeria aquele erro sobre o qual estávamos falando. Mané querendo provocá-lo quis concluir então que ele não achava errado fazer coisas erradas e ele respondeu então que, se fosse para proteger os seus, se fosse inevitável, com o mínimo prejuízo para terceiros, não via problema em fazer coisas erradas, era inevitável, “todo mundo faz, todo mundo tem um segredo inconfessável”. Olhando para o sorriso amarelo de Mané emendou: “o único problema de fazer alguma coisa errada é quando descobrem”! 26/11/2019
O Sobel morreu e nós vamos ficar algum tempo lendo sobre as muitas coisas boas que ele fez por nós jovens na Chazit, pela comunidade judaica brasileira e pelo Brasil. São tantas que da até enjoo de ouvir, ele participou praticamente de tudo no tempo em que esteve ativo. Claro que ninguém vai falar do vazio que lhe foi dedicado no episódio das gravatas mas, tudo bem, já passou. Ele tem mais é que ser reverenciado. Todo mundo tem uma história pra contar, uma predica inspiradora ou alguma tirada genial. Também tenho minhas histórias com o Rabino Sobel mas não vou contar nenhuma porque não foram exatamente histórias entre um devoto e um rabino. Antes de ser rabino ele foi um ser humano, se é que me entendem. Dos bons em ambos os casos. Em tempo, nas fotos abaixo no ano de 2007 logo depois do nó das gravatas, nós não chegamos a nos beijar. Boa viagem Sobel, chegue em paz aonde quer que tenha ido. 23/11/2019
Mané fez aniversário. Muitos anos de vida. Sempre que isso acontece é inevitável que, depois de passada a efeméride, Mané faça um balanço da sua vida. Nascer, estudar, atazanar a vida dos pais, namorar, trabalhar, ler livros, casar, montar uma casa, ter filhos, cuidar deles, ficar bravo porque os ingratos cresceram, ser legal com os pais, envelhecer. Mané acredita que vem cumprindo todo o roteiro. Além das coisas que deram errado, outras tantas deram certo, mas, ao final da reflexão, só ficam evidentes as cagadas. Por isso Mané não gosta de aniversários. 18/11/2019
Hoje Mané foi abandonado à própria sorte, a troco de uma desculpa esfarrapada qualquer, e foi andar sozinho no parque. Chegou quase a tempo de abrir os portões e andou pelas alamedas temendo ser assaltado. Encontrou alguns outros aloprados que corriam as 6:15 da manhã, no mais era só frio e solidão. Mané não fofocou, nem falou mal de ninguém, não contou as cagadas da última semana e nem rememorou nenhuma lembrança do passado. No fim do percurso Mané começou a ver mais frequentadores a passar por ele e enquanto se dirigia para a saída, apesar da sensação de abandono, sentiu também uma certa paz. 12/11/2019