domingo, 26 de novembro de 2017

Mané compareceu hoje ao cemitério para uma cerimônia fúnebre da mãe de uma amiga. Tudo bem, não é muito gostoso ir ao cemitério, mas Mané não desgosta completamente de estar lá, sempre tem a chance de visitar pessoas queridas que já se foram, seu pai e sua avó entre eles. Hoje não foi diferente, o sol se abriu naquele momento, estava tudo calmo e bonito e lá, durante a cerimônia, Mané percebeu que outra amiga que também estava lá, carregava um semblante bastante perturbado e Mané se achegou a ela e perguntou o que estava acontecendo, se ela precisava de alguma coisa ao que ela respondeu: “nunca mais coloco o waze para chegar aqui.” E Mané, sem entender nada, falou: “mas é bom, às vezes tem ruas fechadas no domingo e o waze avisa”. E ela, ainda perturbada, respondeu: “é, mas acontece que eu já to meio cheia de tanto cemitério, muita gente morrendo e hoje, quando estava chegando aqui, logo que embiquei na porta a moça do waze falou: você chegou ao seu destino”.26/11/2017

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Mané reviu nesses dias uma garota que não via há 50 anos. O encontro trouxe à memória de Mané a última vez que a viu e isso ocorreu num daqueles bailinhos de antigamente onde se dançava agarradinho, na semi escuridão, luz estroboscopica girando e na vitrola o Johnny Rivers cantando do you wanna dance. Era mais ou menos assim: as meninas ficavam de um lado, os meninos do outro. No meio, a pista de dança azulada vazia, a música romântica tocando pra ninguém. Ali ao lado tinha uma mesa com alguma comida e bebida, os grupos ficavam cochichando entre si e durante algum tempo, nada acontecia. Até que um menino mais atirado cruzava a pista e seguia em direção às meninas, a eletricidade pairava no ar, as meninas tremiam dentro de seus vestidos, os meninos a espreitar o resultado da ousadia. Aos poucos outros casais rodopiavam pela pista e, geralmente, quando Mané decidia tomar alguma atitude, a música romântica acabava. Os casais se dispersavam e cada um voltava para seu canto. Rolava uma fofoca e Mané até hoje não sabe dos comentários das meninas, mas os meninos trocam informações entre si, aquela garota é dura como uma cabo de vassoura, aquela encosta a bochecha no rosto enquanto dança, aquela só fica balançando pra lá e pra cá afastada, aquela não deixa por a mão nas costas e aquela, qual? aquela de vestido azul e uma blusa branca de banlon de gola olímpica, qual?, aquela, de cabelo curtinho, ah, eu vi...ela dança muito bem, ela te agarra e afasta as pernas assim um pouco, você consegue encostar a sua perna nas pernas dela, encaixado assim. E era para Mané que o menino falava e Mané já babava pela menina de blusa branca de banlon e na próxima dança Mané foi resoluto em direção à garota e a chamou pra dançar e ela veio, de mãos dadas até o centro da pista e Mané se aproximou, mão na mão e mão nas costas e ela se aconchegou, Mané ousou apertá-la mais um pouco e ela cedeu e eles ficaram ali no meio da pista, dois pra lá dois pra cá, Mané sentindo a respiração dela na orelha, pequenas gotas de suor ali onde os rostos se encontravam e as coxas de ambos quase que entrelaçadas, aquela esfregação de enlouquecer. Depois que a música acabou a garota foi embora, o pai já buzinava na porta, vieram avisar e, desde então, Mané nunca mais a viu, a não ser na semana passada ali nos baixos da Vila Madalena quando não tiveram muito sobre o que falar e, aliás, ela até perguntou se estava tudo bem porque Mané parecia um pouco avoado, mas com uma cara ótima, parece até estar pensando numa coisa boa, disse. 23/11/2017
Li um caso interessante, mas não sei onde, enfim, na década de 1990, acho, o governo de Israel organizou o resgate de um grupo de judeus negros da Etiópia no que foi considerado (mais) um dos grandes êxodos de judeus de seu país de origem. Enfim, os etíopes já estão lá em Israel (integrados?) e vivendo como cidadãos israelenses. Escrevi esse introito para contar que no final do século 19, um pesquisador judeu esteve na Etiópia para estudar esse grupo de judeus in loco que mantém as tradições judaicas desde a época da Rainha de Sabá, de quem são descendentes, filhos do rei Salomão, portanto. Consta que seguiam a religião ao pé da letra (qual das letras?) e que ao serem abordados pelo pesquisador judeu, duvidaram do fato dele estar também se declarando judeu, ao que o pesquisador, atônito, perguntou “porque vocês não acreditam que sou judeu?”, ao que os falashas responderam: “porque você é branco”. Bacana né? E levando-se em conta que os judeus são originários do oriente médio e que os povos do oriente médio são mesmo mais escuros, eu me pergunto quando foi que os judeus embranqueceram e ganharam olhos verdes e azuis (e narizes aduncos). Na diáspora europeia misturaram-se com bretões, germanos, godos, visigodos e nórdicos? Então será que nós os judeus, somos originalmente negros, pretos, sei lá como é o jeito certo de falar hoje em dia...23/11/2017

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Mané estaciona na frente da padaria ao lado de uma resplandescente Mercedes que tem uma gostosa encostada na porta. Nota também que ela está batendo o pezinho de um jeito impaciente da forma que só as gostosas conseguem demonstrar. A Mercedes é luxuosa, um modelo de numeração bem alta e a moça, que Mané vai parar de chamar de gostosa, está trajada com roupas de ginástica de grife, assim como o par de tênis fúcsia, e as numerações desses artefatos são adequadas ao corpo perfeito da menina que afasta metodicamente uma mecha de cabelo rebelde que teima em lhe cair sobre os olhos pretos como cupuaçu. Mané então se desliga da garota e entra na padaria pra comprar pão e queijo. No balcão tem um cara esperando o atendente moleirão e Mané, impaciente, começa a bater o pezinho demonstrando impaciência de uma forma que, bem, vamos deixar isso pra lá. O cliente mal ajambrado está indeciso quanto ao que vai comprar. Usa uma bermuda puída e uma havaiana gasta e Mané nem se da ao trabalho de olhar a camiseta. A compra demora e quando chega a vez de Mané ele pede rapidamente, um pão de gergelim, um multigrāo e um francês e corre para o caixa mas ali já está o mal ajambrado perguntando se o caixa aceita vale refeição e a moça diz que sim mas o saldo do cartão não é suficiente e ele passa outro vale refeição e ainda assim faltam 2 reais e o cara não tem um tostão no bolso e Mané se oferece pra pagar os 2 reais e o cara sem constrangimento aceita e agradece. Depois de pagar Mané volta pro carro e se depara com o cara dando um amasso na garota do Mercedes, depois os dois entram no carrão e vão embora enquanto Mané tenta abrir a porta do seu carro com as moedas do troco que o caixa tinha lhe dado. Mané então se da conta que perdeu a chave do carro e volta pra padaria e a encontra sobre o balcão, pega a chave, sai e chega a tempo de ver a Mercedes virar a esquina e desaparecer, a moça com a mão no pescoço do escroto, ambos a gargalhar. Estariam rindo de que? 14/11/2017

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Mané se apaixonou muitas vezes. Sempre achava que aquele seria o amor de sua vida, sempre ficava radiante quando conquistava a moça, sempre sofreu as maiores decepções quando aquilo tudo acabava. Certa vez Mané caiu de amores por uma garota, arrastava um caminhão por ela que correspondia, mas não na mesma intensidade. E aquilo, para Mané, era um fogo que queimava suas energias, uma sofrência sem fim na tentativa de agradar a menina que nunca estava totalmente satisfeita. A moça morava longe, Mané se desabalava para encontrá-la, muitas horas de estrada, kilometros de ansiedade e a moça recebia as benesses com aquele ar blasée de quem esta a ser servido por um vassalo. Num desses dias ela lhe disse que se sentia sufocada pelo amor dele, que queria dar um tempo, arejar, deixar o vento entrar pelas janelas, experimentar outros sabores, assim ela falou, “apenas para ter certeza de que o amava”, mas que o entretanto seria breve, Mané podia ter certeza. E Mané saiu da casa dela arrasado com a certeza de que ela apenas o estava a consolar e que nunca mais a veria, que aquele grande amor tinha chegado ao fim. O mané apaixonado ensimesmou-se por meses a fio, no período que duraram as aventuras da menina que foram interrompidas por uma carta [sim, mandavam-se cartas pelo correio antigamente] onde ela dizia que apesar de ter se esforçado muito, não tinha conseguido parar de pensar nele e ele, que também não tinha parado de pensar nela, pensou que ia explodir de alegria, só de imaginar a sensação de voltar a tocar na pele dela. Encontraram-se sem demora a celebrar o reencontro e Mané que contou a ela tim tim por tim tim o que tinha sido a vida dele naquele intervalo, não quis saber de nada do que tinha acontecido a ela, muito menos o que tinha experimentado de novo. Naquele dia Mané voltou pra casa renovado, de alma lavada e enxugada, tão limpinha e tão seca que ao deitar a cabeça no travesseiro teve a certeza de que nunca mais ia querer ver a garota de novo.08/11/2017

terça-feira, 7 de novembro de 2017

O metrô é um território sagrado para Mané. Diferentemente de Salma, que conversa com qualquer pessoa que estiver por perto, Mané abomina contatos com estranhos. Assim que Mané se acomoda no trem sempre vazio no Terminal Vila Madalena, saca da mochila o livro que estiver lendo e enfia a cara nele, o que desautoriza e inibe qualquer pessoa de lhe dirigir a palavra. Mané também odeia aqueles pedintes que entram no comboio e começam a gritar: “desculpe estar incomodando a sua viagem, mas eu tenho três filhos e...”, ou ainda alguns músicos que, ao invés de se limitarem a tocar e cantar nas estações, quando Mané sempre deposita nos chapéus uma nota de dois reais ou então algumas moedas, insistem em tocar música andina, com flauta e tudo, dentro do trem, atrapalhando sobremaneira aquele momento de paz que Mané tanto gosta de desfrutar. Mas, como Mané dizia, hoje, ao sacar o livro e começar a ler, um senhor bastante lesado que estava sentado à frente de Mané nas cadeiras azuis claras, começa a fazer uma pergunta. Mané, que tem muita consideração por velhos, interrompeu a leitura e pediu para a pessoa repetir a dúvida e o cara repetiu, mas Mané estava convencido que ele deve ter nascido no Tibet, pois não entendia nada do que ele falava. O velhinho falou umas oito vezes e por fim, Mané que já não aguentava mais o bafo de lobo que ele emitia, descobriu que ele queria ia à estação Sé, o que lhe foi explicado: “desce no Paraíso, pega o trem em direção ao Tucuruvi, desce na Sé”. O olhar vazio do homem demonstrava que ele não entendia nada do que estava sendo explicado e Mané, exasperado por não poder ler e tendo certeza que o homem não chegaria a lugar nenhum, desceu com ele no Paraíso e colocou-o na plataforma certa e perguntou se ele saberia seguir adiante e o homem acenou que sim, mas Mané duvidou e resolveu entrega-lo aos cuidados de algum funcionário do metrô, o que foi feito com louvor. Quando Mané já se afastava do local, ele ouve um “senhor, senhor” e pensou até em não se virar, mas ele se virou e deparou-se com o funcionário com olhar estupefato a lhe perguntar que língua o tal velhinho falava e Mané respondeu Tibetano, mas não se preocupe, ele precisa ir à Praça da Sé, coloque-o no trem certo e peça pra alguém pegá-lo na outra ponta, ele entende português. Mané viu o rosto do funcionário se iluminar e depois de agradecer, pegou o velhote pelo cotovelo e foi indo embora, pelo menos alguma coisa funciona nesta merda de país. Mané ficou exatos cinco minutos com a sensação de dever cumprido e, de volta ao seu trem, arrependeu-se de ter brincado com essa historia de tibetano e começou a ficar preocupado com o destino do velho atrapalhado e ainda está.06/11/2017

domingo, 5 de novembro de 2017

Eis que Mané está andando pela Av. Paulista, braço dado com Salma, ambos debaixo de um guarda chuva que os abriga da garoa que um dia já caracterizou a cidade. Estão andando agarradinhos, protegendo-se das rajadas molhadas de vento frio. Quem visse imaginaria o casal de antes, andando pelas ruas cinzentas e nebulosas sem se importar com nenhuma intempérie, apenas a sensação de estar juntinho é que valia, ah o amor. Só que não. Estavam saindo de um lugar chato e indo pra outra paragem tão chata quanto a primeira e por terem comido um saquinho de pipoca doce comprada lá na frente do prédio da Gazeta, resolveram caminhar até o fim da avenida pra queimar as calorias tendo sido apanhados pelo chuvisco mas, enfim, não era disso que Mané queria falar. Lá pelo meio da caminhada Salma chama a atenção de Mané para a enorme quantidade de casais homossexuais que passavam por eles, homem com homem, mulher com mulher, raríssimos eram os casais, como Salma e Mané, heterossexuais [quase] convictos. E Salma festeja dizendo, “que legal, cada um poder fazer o que quiser, andar como e com quem quiser, fazer suas próprias opções, essa é a avenida da tolerância”. Depois de um curto silêncio, Mané questiona: “mas onde estão os casais héteros”? Depois de pensar um pouco Salma fala baixinho pra Mané: “não sei! Na verdade to me sentindo meio estranha aqui agarrada a um homem”. E Mané: “eu também! Olha, o metro Consolação, chega de andar, vamos sair daqui”!05/11/2017