sábado, 25 de setembro de 2021

Mané está dirigindo na av. paulista, com o semblante carregado e de mau humor. Está um trânsito infernal, parece que a pandemia acabou, sqn. Ele está saindo do consultório do especialista em mão que, há poucos minutos atrás, lhe disse: “não faz essa cara, você devia ficar feliz que tem cura, quatro horinhas no hospital e você sai com a mão nova”. Diante de um Mané pasmado ele continua: “laparoscopia, um ou dois pontinhos, depois de um mês você nem mais vai lembrar que tinha síndrome do túnel do carpo”. No trânsito, no corredor central da avenida, Mané se vê cercado de motoboys por todos os lados. Desvia daqui, esterça dali, Mané vê um iFood se aproximando em alta velocidade pela lateral direita e, temendo ser abalroado ou abalroar, ele diminui a velocidade de forma a não emparelhar com o carro ao lado, deixando o maluco, que buzinava alucinado, ultrapassa-lo mais ou menos em segurança. Poucos metros adiante, o farol fecha e Mané para ao lado do sujeito. O motoboy olha pra ele e sorri: “valeu, presidente, não são tudo os que facilita pra nóis. As pessoa passa com a limosine achando que é dona da rua, raramente aparece alguém que alivia, valeu mermo” (sic). Mané, que estava com a paciência mais apertada que o seu tunel do carpo, respondeu, enquanto já abria o farol: não se iluda, não fiz isso por você, fiz pelo meu carro e por mim, vai pela sombra. E acelerou virando à esquerda. Por sorte o motoboy seguiu em frente. 23/9/21
Mané est seul à la maison. Depuis la pandémie, c'est une situation rare et inhabituelle et Milu, le chien, pense aussi car, dès qu'ils se retrouvent seuls, il fixe son regard profond sur Mané et n'a même pas besoin de parler pour que Mané comprenne son étonnement. Anuar est allée travailler, Samira est chez elle en train de travailler, Salma est allée faire quelque chose dans la rue et a recommandé à Mané de profiter de sa solitude pour faire ce qu'elle veut, lire, regarder cette série qu'elle ne veut pas voir, jouer avec le chien, appeler quelqu'un ou travailler. Mané se souvint alors qu'il devait travailler. Alors il fit la vaisselle, lut le dernier chapitre du livre qu'il lisait et alluma la télé. Au cours de ce voyage, il a jeté un œil à son e-mail et à WhatsApp et, comme tout était calme, il a appuyé sur play. A la minute où Michael C. Hall est apparu à l'écran, Mané a reçu deux WhatsApp. Elle s'arrêta et répondit poliment. Pendant ce temps, l'application e-mail a notifié l'arrivée de six nouveaux messages, sa mère a appelé et le chien est venu demander un câlin. Mané est allé au frigo et a mangé une dizaine de tomates cerises et un morceau d'ananas. il a essayé de regarder Netflix mais le téléphone n'arrêtait pas de gazouiller. Mané crut devoir faire quelque chose, éteignit la télé, alla dans sa chambre choisir quel livre il lirait ensuite et retourna dans le salon en ouvrant à contrecœur le couvercle de son ordinateur. Il a répondu à un e-mail, a pris le relevé bancaire, et juste au moment où il était sur le point de commencer à se sentir vide, Salma est arrivée et, de la cuisine, a crié : Tu as faim? Dois-je faire une salade pour le déjeuner? Pendant que Salma organisait les choses, Mané s'est assis pour faire ce rapport et a découvert qu'il ne sait pas écrire en français. Puis il est allé dans la cuisine et a épluché une mangue pour enrichir la salade. Mané aime les saveurs douces-amères. 21/9/21
Mané já foi um grande comprador de fruta. De olhar, sabia se o abacaxi era doce, se a melancia não estava farinhenta, o melão doce e a manga no ponto. Não tinha erro. Ia todo domingo à feira e voltava com produtos de primeira magnitude. Até abacate sabia escolher. Além disso, Mané era exímio descascador de abacaxis, no sentido literal da palavra, sendo que a técnica envolvia segurar o abacaxi pela coroa, remover com maestria a bundinha e em seguida fazer cortes longitudinais na casca, não muito fundo que consumisse a fruta, nem muito raso que deixasse intactos aqueles pontinhos pretos. Depois, levemente, removia as últimas imperfeições, fatiava e oferecia para a família. Com o tempo, começaram a ficar com preguiça de feira. A balbúrdia, o calor, a sujeira, o cheiro de peixe, tudo isso foi ficando penoso e eles passaram a frequentar dois sacolões perto de casa. A qualidade das frutas as vezes deixa a desejar mas, tem ar condicionado e da pra fazer feira e supermercado ao mesmo tempo. No Pomar da Terra vendem um abacaxi já descascado a 8 reais. Doce, gelado, uma delícia, Mané sempre leva. Já no Natural da Terra, o mesmo abacaxi custa 14. Mané ficou indignado e resolveu comprar o abacaxi com casca, que saia por 8,59. E Mané lá tem medo de descascar abacaxis? Mané ponderou um pouco e escolheu um abacaxi que lhe pareceu bom. Em casa, ao iniciar o processo de descasque e agarrar a coroa, esta se soltou e caiu no chão. Foi um sufoco tirá-la da boca do Milu e assim, a técnica de Mané ficou totalmente comprometida. Onde ele ia agarrar para os cortes longitudinais? Foi horrível. Salma olhava para o lado disfarçadamente enquanto Mané tentava descascar o abacaxi sem perder os dedos. Finalmente conseguiu mas ficou cheio daqueles pontinhos pretos, no entanto, constatou Mané ao comer uma tranche, pelo menos estava doce. Ficar velho é bom mas é uma merda. 19/09/21
Anuar voltou ao trabalho. É o único membro da família, fora Salma que atende uma ou outra criança em consultório, a voltar a suas atividades profissionais presenciais. Quando se aproximava da entrada, o vigia e o cara que mede a temperatura das pessoas, bateram palmas e lhe deram um abraço de longe. Esse Mané, que vai ficar sozinho e perdido durante as manhãs, foi acometido por um pequeno lacrimejar de olhos mas recuperou-se depressa. 16/9/21
Mané demorou alguns anos pra entender qual era sua turma. Expulso do Egito ainda bebê com a família, correram para a Itália pra conseguir a cidadania do bisavô e, depois de algumas conjecturas, vieram para o Brasil. Criança, falando português na rua e francês em casa, tinha dificuldade de explicar tantas nacionalidades e línguas. A avó falava com ele em árabe, a mãe em francês e ele respondia em português. Italiano, que era a língua do passaporte, ninguém falava. Isso causou sérias crises de identidade para Mané, que não conseguia se fixar em nenhuma nacionalidade tanto que, até hoje, depois de mais de 63 anos no Brasil, mantém a documentação de italiano residente, nascido num reino tão tão distante, a República Árabe do Egito. Mané não tem nacionalidade brasileira, nunca quis. Não vota, não pode se eleger e não pode trabalhar no Banco do Brasil. Em compensação, dono de uma nacionalidade italiana e reservista dos carabinieri, não passou mais do que noventa dias de sua vida naquele país, grande parte desses dias como um bebê de colo quando fugiam do Egito. E mais, por quais cargas d’água a família tem como língua mãe o francês? No entanto, ao longo dos anos Mané começou a sentir falta de uma coisa que não existiu pra ele. Mané às vezes se pega sentindo saudades da vida no Egito, a vida que nunca teve. Certa vez teve um jogo de futebol entre Brasil e Egito. Uma daquelas seleções brasileiras que empolgavam com Rivaldo, Ronaldo. O Egito levou uma surra homérica e Mané que não liga para futebol, sofreu muito com a dor de seus compatriotas, os egípcios. Mané se preocupa com a pandemia no Egito, tão pouco anunciada por aqui, como se preocupou com a primavera árabe, aquela que terminou num inverno islâmico. A parte odiosa, a da expulsão e da raiva dos judeus, Mané oblitera, vamos fazer de conta que não aconteceu, que foi um desatino coletivo, como o que anda acontecendo por aqui e, na verdade, os egípcios amam os judeus, Mané tem certeza. Mané queria ter ficado no Egito, passar as tardes de sábado no delta do Rio Nilo, dar um esticada até Gize e descansar à sombra de Queops, Quefren e Miquerinos, fazer um afago na esfinge. Tanto que anos atrás, quando Samira fez um curso de tatuagem e precisava de uma pele pra treinar, Mané concordou em fornecer um pedacinho do seu braço. E o que vc quer tatuar paiê? Tatua isso aqui, Mané respondeu. Em hebraico? Sim, hebraico! E o que está escrito em hebraico? Está escrito: totseret mitsraim, made in egypt, feito no Egito. Genial, pai, disse Samira. E pôs as mãos à obra.13/9/21
Pela manhã Mané ligou pra mãe pra ir tomar a terceira dose. Ela perguntou se dava pra levar uma amiga dela e o marido que também eram elegíveis e Mané disse, claro que sim. Mané saiu de casa e foi até a da mãe. Do MASP ele ligou e falou que podiam descer. Com todos embarcados Mané fez o check list de documentos e partiram para o drivethru do clube paulistano que fica lá perto. Enquanto dirigia e se divertia com a conversa dos velhinhos Mané se deu conta que, contando com ele, viajavam ali naquele carro quase 350 anos de vida. Que responsabilidade, hein?13/9/21
Mané está numa excursão pelo deserto do Sinai. O ano é 1976 e o grupo acaba de descer do local onde Moisés recebeu os dez mandamentos depois de visitar o que restou da sarça ardente que está conservada numa cúpula de vidro, acredite se quiser. Estão num caminhão adaptado para carregar gente e o guia está lá na frente gritando as instruções sobre a próxima atividade. Eles vão almoçar comida típica numa aldeia beduína onde as pessoas só falam árabe e muito pouco de inglês. O guia pede que o grupo de jovens seja respeitoso, que não façam peraltices e que se comportem como uma visita pouco íntima. Nada de se afastar do grupo e ficar de olho nos dois seguranças que viajavam com eles para qualquer eventualidade. Tenso, mas o grupo de jovens não estava nem aí e o almoço, pão pita e schwarma preparados em pedras quentes, transcorreu de forma tranquila. Súbito, escuta-se uma comoção ali adiante, perto de uns pequenos rochedos. Todos, liderados pelos dois seguranças armados de metralhadoras UZI, correm na direção de onde vieram os gritos. Atrás das pedras eles se deparam com dois membros do grupo, uma menina carioca, loira e gordinha e um uruguaio que era o “enfant terrible” do grupo, sendo ameaçados por um beduíno armado com uma daquelas adagas árabes curvas. Num cercado, sete dromedários observavam a cena impassíveis. Tentando acalmar a situação os seguranças perguntaram o que acontecia e o beduíno injuriado contou que o uruguaio tinha lhe vendido a menina carioca e não queria entregar. Chamaram o chefe da aldeia e ele confirmou que o menino tinha concordado em vender a gordinha carioca em troca de sete dromedários, que tinha testemunhas e que só restava entregar a garota. A confusão só fazia aumentar, os beduínos não aceitavam a desculpa de que o rapaz era desmiolado e que tudo tinha sido um mal entendido. Os seguranças então nos orientaram a recuar devagar em direção ao caminhão enquanto eles nos davam cobertura, metralhadora em punho. Mané sugeriu que, ao invés de brigar, oferecessem dez dromedários para recomprar a menina mas mandaram-no calar a boca. Com todos no caminhão, o motorista deu a partida no motor e, sob gritos, ameaças e protestos dos beduínos, fugiram de lá em alta velocidade. Nas horas que se seguiram, houve uma assembleia para decidir o que fazer com o uruguaio. Choveram propostas. Alguns sugeriam enforcamento enquanto outros achavam melhor entregá-lo aos beduínos. Depois da reprimenda, mais relaxados e fora de perigo, houve uma discussão sobre o preço da venda, os sete dromedários, e Mané, oriundo daquelas paragens, argumentou que sete era um número muito alto, o dromedário é um bicho valorizado no Egito. A garota carioca começou a chorar, disse que não deviam brincar com aquilo, que todos tinham corrido risco de vida. Dias mais tarde, no Kibutz em Israel, Mané conversando com a carioca que estava bem mais relaxada, disse que o tal uruguaio era uma besta, que se a oferta do beduíno tivesse sido pra ele, Mané, teria pedido ao menos setenta dromedários e aí nenhum problema aconteceria porque quem iria aceitar pagar esse preço por ela? 11/9/21
O sujeito com quem Mané desfilava suas arrobas pela manhã no parque Villa Lobos antes da pandemia se encheu de tudo e resolveu passar uma temporada com os seus na cidadezinha de origem de sua família, um rincão perdido no coração do continente Europeu. Do mesmo jeito que Mané trabalha de casa, ele também trabalha da nova casa dele, tem que prestar atenção ao "confuso" horário mas, quem se importa com isso? A qualidade de vida melhorou consideravelmente, ele conta. Ao invés do Villa Lobos, passeios de bicicleta em volta do lago e, ao invés do trânsito da marginal no final da tarde: "prego signorina, potrebbe farsi da parte così posso attraversare questo vicolo?" Mané está feliz por ele. Aí abaixo vocês podem observar a paisagem da janela lateral do seu quarto de dormir, a Suíça está logo ali. Enquanto isso, Mané fica com a paisagem dele. 10/9/21
Mané sonhou que estava de carro no Rio de Janeiro em uma viagem com Anuar ainda bebê e um primo. O primo e Mané têm a aparência atual, só Anuar ainda é bebê, idade indefinida. Estão no meio do trânsito e Anuar manifesta vontade de fazer cocô. Mané não sabe direito quando mas nesse momento Anuar já fez cocô na fralda e agora Mané tem que achar um lugar para limpa-lo. Ele estaciona na frente de um bar e pergunta se dá pra usar o banheiro mas o sujeito diz que só se for consumir alguma coisa e Mané vai embora furioso. Entra no carro, o primo reclama do cheiro e Mané diz pra ele abrir a janela. Para na frente de um outro bar e o dono permite que ele use o banheiro e pede pra ele não deixar sujeira. Ele volta pra pegar Anuar mas o seu carro agora virou uma moto e está com o pneu da frente murcho. O primo está coçando a barriga e Anuar ainda está na cadeirinha apesar de não ter mais carro, só uma moto. Mané, então, sobe na moto e, subitamente, acorda.No café da manhã Mané pede que Salma interprete o sonho mas ela se nega dizendo que Mané reclama de suas interpretações e diz que ela está falando besteira. Então Mané optou por contar o sonho aqui neste divã. 07/9/21
Com o fim das noites frias, as padarias pararam de preparar sopas para viagem e aquele problema, “o que vamos jantar hoje à noite?”, voltou com força. Outra coisa que Mané notou foi que a garota da padaria que lhe preparava as marmitas, agora anda sorumbática pelo estabelecimento e quando Mané chega pra comprar um pãozinho ou tomar um café, ela que antes o recebia com um sorriso luminoso, apenas acena tristemente com a cabeça. Quando Mané punha o pé no local, ela logo falava animada: “boa noite, amor, posso lhe dar uma canja hoje?”, e Mané perguntava do sabor que tinha a sopa e eles riam e conversavam sobre o queijo ralado e crutons, enfim, uma carga de cerotoninas para enfrentar o frio e a pandemia. Até confusão com Salma a moça arranjou mas, enfim, isso são águas passadas. Voltando pra casa Mané contou sobre a tristeza da moça e Salma lhe disse que ele poderia ir lá consola-la à noite pois ela iria com Samira jantar na casa da mãe. Mané consultou Anuar e este topou ir mais tarde comer um misto quente na padaria. Depois do banho eles caminharam por uma quadra e chegaram à padaria que estava às moscas. A garota que o chama de “amor” estava encostada no balcão e aparentava tédio profundo. Ao pisar no local Mané viu o rosto dela se iluminar: “oi amor, está precisando de alguma coisa”? Sentando à mesa ele disse que queria um misto quente pra ele, um frio para Anuar, uma malzbier e uma coca. A moça, com o rosto afogueado, falou que ia trazer as bebidas e iria ela mesma pilotar a chapa para esquentar o misto de Mané. Afastou o chapeiro com vigor e preparou um misto bem caprichado. Deu a volta no balcão, pegou os pratos que ela mesma montou e levou à mesa de Mané. Ela estava tão feliz qye Mané quase pensou em convida-la a se sentar mas a conversa de Anuar por sorte lhe desviou a atenção do possível desvario. Acabaram de comer e a moça continuava ali de pé olhando com felicidade para a mesa deles. Mané pediu a conta e ela lamentou que ele não queria mais nada então Mané pediu queijo fatiado e foi pagar a conta. Despediu-se da moça e perguntou se, no caso do frio voltar, haveria sopa novamente e ela: “claro, amor, no primeiro frio, vai ter canja aqui pra você”. Antes de sair entregou-lhe uma gorjeta bem gorda e, por trás da máscara, ele viu que ela lhe sorria e que os seus olhos de ébano brilhavam de felicidade. 06/9/21
Nos últimos dois meses chegaram à casa de Mané aproximadamente 10 multas de trânsito, a primeira datada de fevereiro de 2020, o que significa que Mané já perdeu a CNH pelo menos duas vezes. Tem duas multas de celular e todas as outras por excesso de velocidade nas ruas perto da casa da mãe dele flagrado a espantosos 48km por hora. Mané passou três dessas multas para a própria mãe, 87, que costuma roubar o carro dele (caso tenha alguém do detran lendo isso aqui), para se vingar da época em que ele era adolescente e roubava o carro dela. Ela pega sua bengala, surrupia a chave dele e sai acelerando pelas ruas da Bela Vista. Mané tem certeza que foi ela que tomou todas as multas, inclusive as do celular, porque ela é uma velhinha irresponsável. O fato é que Mané tem tentado pagar essas multas mas não há cobrança para elas. Mané também tem esperado a cartinha do detran solicitando a devolução do documento mas também não chega nada. Então, o que Mané vai fazer é aplicar um corretivo na sua mãe, repetir uma frase que ela lhe disse há 50 anos, “da próxima vez que você roubar o carro eu vou te botar a polícia atrás”, e mais nada. Mané vai ficar à espera de um milagre. 05/9/21
Mané acessou o seu e-mail e deparou-se com uma mensagem perturbadora, praticamente uma ameaça. Tinha que liberar espaço no Gmail mas Mané lembra que, quando abriu essa conta em 2005, o mote deles era "nunca mais apague seus emails por falta de espaço". Alguma coisa mudou neste período e passou despercebido para Mané que então, começou a seguir instruções para liberar o espaço e não ser castigado com o mármore do inferno. Mané apagou uns e-mails com vídeos e fotos que tinha visto pela última vez em 2006 mas o ponteiro não se mexeu. Começou então a apagar mensagens do ano de 2005 mas parou porque ficou com medo de perder algo que alguma vez lhe foi importante. Ele fechou e abriu o aplicativo mas a situação não mudou. Mané ficou olhando pra tela pensando no que fazer e teve a ideia de apagar todos os e-mails de quando jogava Farmville. O ponteiro se moveu visivelmente. Depois, Mané teve a ideia de apagar emails de pessoas mortas. Lembrou de oito mortos mas dois ele não apagou porque ainda estavam vivos pra ele. O ponteiro baixou mais um pouco. Depois Mané pensou em apagar emails de pessoas com quem ele não se relacionava mais. Conseguiu achar 32 nomes de gente que ele não gosta mais, além de 14 que ele gosta mas não fala ou escreve há 10 anos. Apagou os oito piores e o ponteiro nem tchum. Foi em frente e apagou mais 24 desafetos ou quase. Apagou também os 14 últimos e ao conferir o ponteiro, viu que tinha baixado bastante. Mané passou duas horas repassando sua vida eletrônica e apagou mais de 12.000 e-mails e arquivos e, finalmente, liberou espaço suficiente para manter a sua conta. O processo deixou Mané meio depressivo, com a impressão que nãoo restava muito do seu passado, além do fato de que algumas das pessoas eliminadas, Mané eliminou mesmo, pra sempre. Mané achou tudo muito penoso e cansativo e da próxima vez, ao invés de apagar, vai comprar mais espaço. 04/9/21
Na virada do século XX, Mané escrevia crônicas numa revista judaica. Crônicas de verdade, cinco mil toques sem espaço, não essas coisinhas que hoje se vê por aqui. Em 2001, ele cismou de publicar um livro, levou suas crônicas para um editor deprimido que todo mundo conhece e que fôra seu amigo na adolescência. Aquele foi o primeiro não que Mané levou na qualidade de escritor. E o último. Mané optou por não levar mais negativas e também por fazer uma vaquinha pra bancar a edição do livro. Mané levantou 65% do valor e o resto bancou ele mesmo. Um outro amigo fez a arte gráfica e, uma pessoa de seu relacionamento que participou com metade dos 65%, exigiu apenas que Mané lhe desse 100 exemplares dos 2000 que iam ser impressos. Mané fez isso com prazer mas ficou curioso com a exigência e perguntou o que ia fazer com aquilo? O amigo respondeu que ia guardar e vender quando Mané ficasse famoso e a edição ficasse esgotada. Bem, a história está aí pra provar que o sujeito fez um péssimo investimento, verdade que a edição esgotou, Mané depois publicou mais dois livros, também esgotados, mas, ficou faltando o detalhe de ficar famoso. Todo mundo sabe que Mané desistiu de ser escritor, pelo menos no sentido amplo da palavra, continuou a fazer o seu trabalho na área financeira e, claro, continuou escrevendo para suprir sua necessidade de escrever. Por sorte a notoriedade nunca foi seu objetivo porque no outro dia, Mané ousou se enfiar num sebo e se deparou com uma prateleira cheia de exemplares do seu primeiro livro, aquele financiado pelo empresário amigo. Mané teve a pachorra de contar quantos eram e achou 98. Cabreiro, Mané foi ao dono do sebo, seu conhecido. O sujeito descreveu o vendedor e Mané reconheceu o amigo. Disse que tinha comprado 100 exemplares no meio da pandemia e tinha vendido dois que, inclusive, "estavam autografados pelo senhor". Mané riu e disse que naquele lote tinha 30 exemplares autografados e o dono do sebo rejubilou-se dizendo que "autografados têm mais valor" e depois de um segundo continuou, "qualquer que seja o escritor". Mané fez ouvidos moucos ao último comentário e a pedido do moço, passou o resto da tarde autografando os 70 exemplares remanescentes. Foi bom porque Mané lembrou das noites de lançamento dos livros quando Salma teve que fazer uma salmoura de água quente na sua mão que doía muito depois de ter dado duas centenas de autógrafos. Mané ligou para o amigo e contou a ele o que tinha acontecido e ele se desculpou constrangido mas, "estava faltando espaço, sabe como é". Mané disse que não estava bravo, pelo contrário, os livros iam circular mas, se ele tivesse avisado, Mané os teria comprado por mais que os dois reais por livro que ele tinha conseguido. E mais, disse Mané, ele vendeu dois exemplares autografados por 20 reais cada, 900% de lucro. Silêncio. E Mané completou: "eu autografei todos os livros pro cara, parece que assinados tem mais valor". Eles riram, perguntaram como iam indo, família, filhos, vamos nos falar, abração. 2/9/21
Segundo Salma, mantemos um laço erótico vitalício com as pessoas com as quais algum dia tivemos um relacionamento amoroso. O que quase equivale dizer que se nós nos apaixonamos por alguém alguma vez na vida e esse relacionamento termina, nós corremos o risco permanente de nos envolver novamente com essa pessoa, caso essa oportunidade apareça. Por isso, continua Salma, é que vemos muitos casos de pessoas que, depois de uma separação, acabam reencontrando e reatando laços com amores do passado. Laços eróticos. Veja você, Salma prossegue, eu sei que você tem aí no Facebook, contato com todas, sim, todas as suas ex namoradas, casos, amásias, xodós e etc. Ok, todas, não, menos aquela que faleceu ainda jovem, já sei, mas, viu como você fala dela?, eu sei a história toda, que foi sua última namorada antes de mim, bla, bla, bla, isso nada mais é do que laço erótico e as vivas, com quem você fala de tempos em tempos, nada mais são do que uma reserva de segurança, vai que! Eu exagerando?, Salma protesta, até aquela menina que você namorou quando tinha dez anos, está aí no seu Facebook. Vê se isto é namoro. Você conta que vocês nem um beijo se deram mas aí está, você sempre tem uma história terna pra contar, até uma crônica dedicou a ela. E ela lá, reservadinha no Facebook. O que? Claro que não é por isso que não tenho Facebook! Não precisa de Facebook pra manter laços eróticos, tem WhatsApp, email e antes da pandemia, dava até pra ir tomar café com o laço erótico. Se eu já fui? O assunto aqui é sobre você e essa mulherada, que tanto assunto você tem com essas ex? Ah, tá, nem todas são ex, ah, não importa, você viu que bebezinha linda? Como assim quem é? É a neta do, ahn, de, do, Oi? É, vai! Isso mesmo, do meu último laço erótico. 31/8/21
Céticos e incrédulos como Mané, pensem outra vez. Esses dias nasceu a filha de Halim, sobrinho de Mané. Poucos dias depois da bebezinha nascer, Mané foi lá de visita e descobriu que a pessoa que vinha trabalhar para ajudar nas coisas era a mesma pessoa que cuidava da Dona Faiga, já falecida, avó de Halim por parte de pai, sogra da sua irmã. Mané lembrou que a moça, durante sua gestão como cuidadora, tinha aprendido a produzir o doce predileto de Mané, a delícia das delícias, a famosa torta de ricota da D.Faiga. Brincando, enquanto segurava a petiz no colo, Mané pediu à mulher de Halim que encomendasse à moça a tal torta e que guardasse um pedaço pra ele. Ela assentiu e não se falou mais no assunto. Hoje a tarde a mulher de Halim ligou comunicando que tinha uma torta de ricota pronta aguardando, ele vinha buscar ou queria um delivery? Mané foi pego de surpresa e disse que passava lá mais tarde pra buscar e passou. Depois, saboreando o acepipe, Mané constatou que a torta estava boa, mas não era a torta da D. Faiga, se é que me entendem. No entanto aquilo lhe trouxe lembranças e, sentindo-se grato, escreveu um WhatsApp para a mulher de Halim, agradecendo o carinho e disse que aquilo o remetia a bons momentos, enfim, uma mensagem que saiu com mais emoção do que esperava. A moça também se emocionou e mencionou um texto, que Mané tinha escrito sobre d. Faiga, à época de sua morte, ele tinha esse texto para enviar? Mané fez uma busca no Facebook e encontrou o que procurava, copiou, colou e enviou e, antes de esquecer o assunto, leu novamente o que tinha escrito há exatos cinco anos, dia 26/08/16, data da morte de D.Faiga. Mané sentiu um pequeno arrepio. Baita coincidência? A torta de D.Faiga aparecer na frente de Mané, no aniversário de sua morte? Mané escreveu no grupo da família mas as pessoas não estavam ligadas no calendário gregoriano e sim, no judaico onde a data da morte foi há uns dias. Mané comeu mais umpedaço de torta e pensou que não acredita, mas que elas existem, ah, existem. 26/821
Hoje Mané acordou para ir ao escritório onde teve uma reunião presencial com parte de sua equipe. Mané destrancou a porta de sua sala, entrou e abriu completamente a janela, sentou à mesa e ligou o computador enquanto aguardava a chegada das pessoas. Mané ficou fuçando no micro e atualizou tudo que tinha que atualizar mas deprimiu um pouco com o aviso que apareceu, “ultima atualização 16/03/2020” e tentou em vão não ligar pra isso. Logo o pessoal chegou e, a uma distância segura, sentaram para tratar de assuntos urgentes. Diante das pessoas que chegavam vestidas como de hábito para trabalhar, tarde demais, Mané percebeu que tinha ido de bermudas mas esse ocorrido não foi um empecilho para o bom andamento da tertúlia afinal, moramos num país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza. O “abençoado”, Mané acha que é Fake News, mas não é disso que se trata agora. Um dos tópicos da conversa foi a possível volta para o trabalho presencial mas diante do alfabeto grego de variantes que se avizinha resolvemos deixar esse tópico para daqui a quinze, quiçá trinta dias. Particularmente Mané acredita que antes da variante Ω, ninguém volta pro escritório. 23/8/21
A mesa onde Mané toma café com a família fica dentro da cozinha, uma espécie de copa localizada próximo à pia onde se lava a louça. Mané não sabe como é a mesa de você, mas a dele costuma ficar bem cheia. Além da torradeira e dos pratos, copos e talheres, há um liuqidificador, uma cesta onde ficam os pães, o adoçante, condimentos e um saco de batata palha que deve estar lá desde o último strogonoff. Na hora do café Salma coloca também diversos tuperwares que contem alguns tipos de queijo, frios, geleia de frutas, o pote com melão, além de dois tipos de leite, um semidesnatado e outro sem lactose, a garrafa térmica de café, uma margarina para Anuar, um vigor mix para Mané e uma manteiga para ela própria, tudo sem sal. O resultado disso é que a mesa fica meio cheia e, muitas vezes, Mané não tem sequer espaço para picar a cenoura que ele junta à ração do Milu para o desjejum o que causa, não poucas vezes, certa irritação pelo acúmulo de coisas e pela falta de espaço vital para se movimentar. Mané, que é uma pessoa obsessiva, fica prestando atenção e, quando alguma coisa já foi usada, ele levanta e coloca o objeto em outro lugar, para poderem tomar café em paz. Todos já se serviram de leite? As garrafas vão para cima da pia. Idem com a garrafa de café, o adoçante, o pote de onde está o melão, enfim, Mané deve levantar umas cinco ou seis vezes por desjejum para liberar espaço. Mané já teve ímpetos de jogar fora o saco de batatas pelha velhas, de coclocar o liquidificador no armário e, fora isso, Mané da um tratamento especial para os tuperwares que por acaso se esvaziem durante o repasto. O potinho de ricota esvaziou? Mané, ao invés de levantar e coloca-lo no mármore da pia, recolhe o artefato de plástico e o atira para trás sem olhar com tal maestria que o mesmo cai diretamente dentro da pia onde será lavado em seguida. Essa atividade, que causa certo estrondo, é desaprovada pelo resto da família, mas ninguém fala nada porque, além de Mané já ter se levantado muitas vezes, isso de fato vai liberando espaço para as pessoas se espraiarem pela mesa oque, convenhamos, é bom. Mané calcula que deva atirar algo entre dois ou três tuperwares por refeição, raramente erra o alvo, mas, quando erra, Milu fica feliz da vida e já faz com a língua, aquela primeira limpeza grossa antes da lavagem. Mané, que não anda muito bem da cabeça por conta de algumas questões paralelas tomava hoje seu desjejum. O tuperware de queijo prato esvaziou e Mané prontamente o atirou para trás, tendo o aparato aterrisado cirurgicamente onde deveria aterrisar. O mesmo Mané fez com o de peito de peru, no entanto, meio segundo após o arremesso, o tuperware que devia ser de palstico, explodiu em mil caquinhos de vidro que inundaram a mesa do café, a cozinha inteira, a área de serviço e o hallzinho que leva á sala. Depois de se recuperar do susto Salma começou a dar um esporro em Mané, tá maluco? E logo pegou Milu para tira-lo do vidro quebrado e ordenou que Mané fizesse a limpeza. Mané cumpriu a tarefa, não com pouca dificuldade, tinha caco de vidro até dentro do pijama de Mané. Quando Mané foi pra sala, Salma ainda estava puta da vida e ameaçou continuar, obrigado por estragar o café da manhã, etc, etc, mas Mané, antecipando-se à cantilena falou duramente: desde quando se coloca peito de peru em tuperware de vidro? Salma saiu da sala pisando duro, Mané ouviu algo como: claro, a culpa é sempre dos outros, mas a coisa parou por aí. De agora em diante Mané vai ter que prestar atenção ao material dos tuperwares a serem atirados, inferno! 19/8/21
Certa vez Mané andava com Anuar pela Av. Sumaré quando passarem por um lugar que lhe trouxe boas lembranças. Mané falou para Anuar que ali, numa determinada esquina, tinha antes uma pizzaria e que ali ele tinha conhecido uma menina pela qual tinha se apaixonado. Numa pizzaria pai, como foi isso? Mané contou que ele tinha uma amiga com quem saia às vezes e que um domingo essa amiga ligou e perguntou se ele queria ir ao cinema e Mané quis. A amiga ia comer uma pizza com outras amigas e pediu que Mané a buscasse mais tarde para irem na sessão das 10. Mané topou e pelas 9:30 apresentou-se à porta da pizzaria. Era verão, Mané estava de moto, de camiseta, sem capacete e postou-se à espera da amiga que saiu pouco depois acompanhada de três garotas que Mané não conhecia, uma morena alta, uma baixinha de olho verde e uma outra com um cabelo castanho cacheado que lhe descia pelos ombros. Essa última, por alguma razão, chamou a atenção de Mané mas ele teve que lidar com a revolta da amiga que chiava pelo fato dele estar de moto o que a obrigaria a andar sem capacete. A de cabelo cacheado veio em defesa de Mané e disse que era domingo, o cinema era perto, não ia ter problema. Mané gostou dela. A amiga então subiu na moto, deu tchauzinho pras meninas e eles se foram. No primeiro farol Mané perguntou a amiga qual era o nome da menina de cabelos cacheados e ela disse, além de acrescentar que ela tinha namorado, dando uma risadinha maldosa. Anuar riu e Mané continuou dizendo que passaram seis meses até ele rever a menina de cabelos cacheados e mais quatro para começarem a namorar. E depois o que aconteceu?, perguntou Anuar. Não quer saber o nome da menina primeiro? Tá bom, qual o nome da menina? E Mané, fazendo uma pausa dramática, recitou: Salma! 14/8/21
Mané acorda no horário de sempre e vai pra sala em silêncio para não incomodar Salma que ressona pacificamente no espaço ao lado. Ele anda pra lá e pra cá pela sala fria observado tão somente por Milu. Mané senta na poltrona do papai mas sente que tem um livro enfiado nas dobras, “ah deve ser o livro que Salma está lendo”, e o retira de baixo da bunda sem muita facilidade pousando-o na mesinha ao lado onde, ele nota, tem mais oito livros empilhados, além de uma foto, uma escultura, um coçador de cabeça, óculos, um calendário, fio dental, lixa de unha, o telefone fixo que ninguém mais usa e os controles da TV. Mané indaga-se com amargura se tudo aquilo tinha que estar ali, não tem espaço nem pra pousar um copo dágua. E esse monte de livros? Todo mundo mundo sabe que Salma tem um sebo que ocupa o que foi um dia o quarto da empregada e acúmulos de livros nunca foram problema nessa casa mas, oito livros na mesinha ao lado da poltrona do papai? Ali deveria estar no máximo o livro da vez e foi o que Mané perguntou a Salma enquanto esquentava a água para o café e eis que ela respondeu que todos aqueles oito livros, eram o livro da vez. Como assim?, retrucou Mané, você está lendo oito livros de uma vez? Isso não é possível! Não é possível porque? A gente não vê três séries e três novelas ao mesmo tempo? E no meio de tudo assiste a dois filmes? Eu to lendo oito livros, um pouco de cada um a cada dia. Mané disse que ler oito era o mesmo que ler nenhum e ela o desafiou a fazer perguntas sobre os livros e ele assim fez durante o desjejum, sobre os que tinha lido dos oito, que eram sete. Salma estava a par do enredo de todos e conhecia bem os personagens e Mané ficou com raiva da assertividade dela e, para confundir, fez-lhe uma pergunta sobre um ponto de um deles que ele sabia que ela não tinha chegado. Ela pousou a xícara de lado e disse: não cheguei nessa parte. Ele rapidamente rebateu, chegou, sim, eu já olhei, tá vendo? não tá entendendo nada da história! Ela ficou remoendo seus pensamentos inconformada e Mané, para encerrar o assunto, foi lavar a louça. Em meio a espuma de detergente e água fria, Mané invejou a capacidade de Salma pois ele só consegue ler dois, no máximo três livros ao mesmo tempo. Oito de uma vez era um espanto. 08/8/21
Quando pandemizamos em março de 2020 deixamos de fazer muita coisa, de ver muita gente, enfim. Abandonamos o trabalho presencial, o convívio com colegas de trabalho, os almoços diários em restaurantes, reuniões de família, encontros com amigos, muita coisa. Nesta semana, quando se iniciam as discussões sobre a volta ao trabalho presencial, Mané surpreendeu-se ao não achar a ideia tão boa. Claro que a variante delta pesa nesse julgamento mas, Mané imaginou que a volta ao trabalho presencial traria de volta também pegar metrô, sair de casa cedo, discussões normais no convívio do dia a dia, almoços naquele quilo meia boca, trânsito se ele optar por ir de carro, horários inflexíveis, isso pra falar do trabalho. Mané perguntou-se de quais amigos ele sente falta. A resposta foi que, dos quais sentia falta ele deu um jeito de encontrar e nem são tantos assim. Ah tá, vai ser bom tomar café sábado à tarde ou comer uma pizza uma ou duas vezes por mês, mas, será que está sentindo tanta falta assim? E as intrigas familiares que viraram fumaça em meio a tudo isso? Quem importava na família, Mané também deu um jeito de encontrar. Terá sentido saudade do resto? Tem coisas que Mané gostou na pandemia, não fosse o medo de morrer. O estreitamento do convívio com sua família pequena, os três passeios diários com o cachorro, séries na TV (no começo, porque ninguém aguenta mais). Ao fim da conversa sobre o retorno, Mané constatou que não sabe se vai se acostumar à vida anterior. Ele acha que vai sentir saudade da pandemia, não fosse o medo de morrer. 04/08/21
Em janeiro de 1998, aos 42 anos, Mané foi para a Flórida com a família, levando a reboque o sogro e a sogra que, naquele momento, tinham a mesma idade que Mané tem hoje. No entanto, para todos os efeitos, o vô e a vó, já eram dois velhinhos. Alugaram um carro grandão, reservaram todos os hotéis de antemão e preparam um roteiro rígido para não se sentirem perdidos já que, com as crianças e os velhinhos, a carga de responsabilidade aumentava. Muna e Giovanni, 64, nunca tinham saído do Brasil a não ser para um bate e volta de carro para a Argentina, isso quando eram jovens e com filhos pequenos. Samira, 9 e Anuar, 4, iam felizes para onde iam os pais e, na companhia dos avós, melhor ainda. Sentindo-se responsável pelos sogros que não falavam uma palavra de inglês, Mané foi rigoroso com horários e destinos e os sogros, de repente transformados em crianças obedientes, seguiam todas as instruções sem reclamar, mas, poucos dias depois de chegar, Giovanni aprendeu a pedir draft beer por conta própria. Na primeira semana fizeram o roteiro dos parques em Orlando. “Você vai lembrar onde deixou o carro”, perguntava Giovanni. E Mané respondia: “sem problema, está no lote Pluto 23”. Depois Mané escutava de o sogro resmungar: mas que porra é Pluto 23? Divertiram-se como crianças, até fila era bom de pegar. Depois de ir ao último parque em Tampa, foram fazer um tour pela costa do Golfo. Sarasota, Fort Myers, Naples, onde o sogro jurou que ia se aposentar, mas ele não cumpriu a promessa. Uma ou duas noites em cada lugar, arrumaram as malas para ir até as Keys. Key Largo, Islamorada e Key West onde o sogro não se adaptou por achar que tinha muitos hippies e maconheiros pelas ruas, “isso aqui não é lugar pra criança”. Para enfrentar as longas viagens de carro, Salma e Mané tinham levado uma fita dos Talking Heads e outras com músicas infantis em inglês. Row row row your boat gently down the stream, if you see a crocodile dont forget to scream, nessa hora todos no carro gritavam: ahhhh! Parece meio bobo agora mas à época, foi bem divertido. Em seguida revezavam com o Talking Heads e um dia, enquanto David Byrne cantava Psycho Killer pela milésima vez, Giovanni reclamou que as rádios americanas eram muito limitadas, só tocavam essa Psycho não sei o que e a música do crocodilo. Salma e Mané não disseram nada, mas passaram a ligar o rádio ao invés das duas fitas, mas aí ele passou a reclamar que não entendia nada do que falavam. Teve ainda um circuito de compras em Miami nos últimos dias mas, dessa parte, Mané não guardou nada a não ser um blusão de moletom que ganhou da sogra e que hoje em dia, no frio, usa pra dormir. Os sogros passaram muitos anos lembrando-se da viagem e Mané também. Hoje acordou com isso, vai entender. 31/7/21
Desde que casou e passou a dormir na mesma cama que Salma, Mané ocupa o lado direito da cama. Mané não se lembra de nenhuma conversa a respeito, nenhum acordo ou exigência de parte a parte. Apenas se deitaram, cada um do seu lado, ele do lado direito, e lá continuam há quase 37 anos. Nas poucas vezes que trocaram de lado por uma razão qualquer, Mané lembra ter ficado desconfortável, como se não pertencesse àquele espaço. Curioso, Mané pesquisou entre familiares e conhecidos e não conseguiu estabelecer um padrão, no entanto, encontrou mais mulheres do que homens recostados do lado direito da cama. Neste domingo, em visita à mãe, Mané, que sempre soube que ela dormia do lado direito, observou o seu leito de viúva para ver que ela tinha se deitado do lado esquerdo, que originalmente pertencia ao pai. Ele ficou sem jeito de questionar mas aquilo o deixou com uma pulga atrás da orelha. Giovanni, pai de Salma, também dormia do lado esquerdo mas Mané ainda não teve chance de verificar se sua sogra migrou de posição, mas, pretende verificar na primeira oportunidade. E você, que dorme acompanhado(a)(e), tem seu próprio lado? 24/7/21
Mané lê no Facebook um protesto irado de um amigo que tomava sossegado seu café numa padaria chique e veio a ter seu sossego interrompido por um cachorro de porte pequeno que rosnava e latia a todos os outros cães que passavam. Três mil foram os latidos que ouviu e, a cada xilique, o dono afagava o cachorrinho para tentar acalma-lo. Mané, como sabem, tem o Milu, uma cruza de scotish terrier com maltês, duas raças originalmente nervosas. Tendo já passado por diversos perrengues, a vida ao lado de um cão é sempre selvagem, sendo francamente partidário aos cães, Mané acha que em qualquer caso, a culpa é sempre dos humanos. No caso relatado, claro que o dono não deveria afagar o cachorro após o ataque, isso reforça o mau comportamento do bichinho. Claro também que o que tomava café tem que entender a revolta do cão. Ora, todos sabem que os cachorros são territoriais, é da sua natureza, o que fazem os outros três mil cães passando na frente dele sem parar? É revoltante! E o tomador de café? Por acaso o cachorro latidor reclamou da sua presença? Senão vejamos, como era mesmo aquele ditado, os incomodados que se retirem? Perorações à parte, Milu tinha uma fama horrível no prédio, latia e rosnava para qualquer um que tentasse entrar no elevador (Defesa de território, etc, etc) e isso era realmente desagradável. Mané não achava bom que Milu ficasse tão nervoso. Com o tempo Mané descobriu que Milu mudava de comportamento se estivesse solto e passou a andar com ele sem coleira e não é que deu certo? Milu de coleira, um monstro com dentes à mostra. Milu sem coleira, um perfeito gentleman. Tudo é uma questão de hábito e de conhecimento mútuo, outra vez, culpa dos humanos, os que tentam invadir o elevador e os que teimam em prender seus cães a um cabo. Outra coisa, na casa de Mané quem manda é o Milu. Se vem uma visita, quando vinha, que não gosta de cachorro, azar da visita, ela que se vire com a sua intolerância. Se Milu gostar da visita e quiser deitar na cabeça dela, ele vai deitar. E, por fim, aquela máxima dos cachorreiros: “confie num cachorro quando este não gostar de alguém, mas, desconfie de quem não gosta de cachorros”. 20/7/21
Mané escancara a janela e se depara com um desanimador e plúmbeo céu. A chuva vai impedir a caminhada e então ele roda em círculos pela sala observado pelo olhar intenso de Milu. Durante o repasto do desjejum eles tentam estabelecer um plano para o dia furibundo, Salma e Anuar vão até ali, depois voltam com o almoço, Mané deixa Samira numa loja Vivo, vai com Anuar até a casa de Sara, pega Samira na volta, deixa Anuar em casa na sua live, vai comprar o jantar, sopa de novo, janta, assiste TV, lê e dorme. No meio disso tudo tem que passar um remédio no cachorro que odeia tratamento e fica latindo e mordendo Mané que cogita desistir de tudo mas não desiste. Mas antes disso, Mané tem que lavar a loucinha do café, (porque vocês não compram uma máquina de lavar louça?, porque teria que reformar a cozinha, e além disso, o que é que vocês tem a ver com minha louça?). Mas Mané dizia que, ao longo das quase 1500 louças que lavou na pandemia, aperfeiçoou um método de lavagem que consiste em lavar primeiro os copos e/ou xícaras, depois os itens pequenos, como talheres, depois os maiores como pratos e panelas, exatamente na ordem inversa de que serão acondicionados no escorredor, primeiro os itens grandes, depois os talheres e por fim os copos e/ou xícaras na parte de baixo. Muito engenhoso. Depois, limpar os dejetos do Milu, varrer e passar um pano na cozinha e área de serviço, com desinfetante veterinário, fechar o saco de lixo e fim. Salma e Anuar já saíram, a casa está vazia, limpa e quieta. Milu o observa com um olhar intenso. Mané pega seu livro e deita na cama recém esticada, são dez da manhã e tudo vai bem. Pelo menos parece. 17/7/21
Mané tem um amigo há 45 anos. Quando Mané trabalhava no mercado financeiro lhe contava coisas que ocorriam intestinamente naquelas instituições acima de qualquer suspeita e ele ficava apavorado com as coisas horríveis que podem acontecer ali. Hoje, sendo médico, ele apavora Mané sobre as coisas horríveis que podem acontecer dentro de um hospital, estas outras instituições acima de qualquer suspeita. Na juventude quando um dos dois estava sem a sua menina veneno, saiam a três, Mané, ele e a namorada ou, ele, Mané e a namorada. Eram inseparáveis e as namoradas deles, tinham que gostar dos dois, senão podia dar problema. Às vezes um ficava a fim da namorada do outro mas isso nunca foi um entrave e, apesar de algumas situações que ocorreram, tudo se resolvia entre os dois. Normalmente a culpa era delas. Andavam de bicicleta, jogavam tênis, saiam os dois no domingo à noite para comer chinese food e ir ao cinema. Quase inseparáveis. Depois ambos casaram, construíram suas famílias, Mané ama os filhos dele praticamente como os seus, antes da pandemia pedia para a esposa dele, exímia cozinheira, preparar-lhe pratos de sua preferência, assim como no passado ele pedia pra mãe de Mané algum prato árabe, não desses de restaurante, mas, caseiros, como full medamess ou enroladinhos de repolho. Claro que tiveram problemas, alguns sérios, houve brigas e estranhamentos, alguns graves, outros nem tanto mas eles sempre conseguiram aparar suas arestas. Machucados cicatrizam. Certa vez ele ficou com uma ex namorada de Mané, sendo que este último ainda nutria certa esperança, foi um furdunço mas Mané lembra que depois se vingou, ficando com ela quando romperam, a menina era muito dada, eles decidiram que ela não prestava. Em 2018 o amigo de Mané votou no Bolsonaro logo no primeiro turno. Mané tentou demovê-lo, vota no segundo turno, mas ele foi inflexível. Semana passada foram caminhar e ele ainda defende o presidente: “não deixam o homem governar”, reclama revoltado. Mané não diz nada, tenta mudar de assunto, comenta qualquer coisa sobre aquela coroa gostosa que está passando. E ele: “genocida? Quem o acusa não sabe o que é genocídio!” Mané fala então sobre um livro que está lendo, um filme da Netflix e fica pensando se essa amizade, depois de tanta coisa, pode sobreviver a mais esse golpe. Depois Mané volta pra casa e de noite se falam pra combinar a caminhada da semana que vem. Mané ama esse homem e deseja que ele desperte do seu estado comatoso, mas nunca que vai brigar com ele por causa de política. Já sobreviveram a mulheres roubadas não vai ser um político de terceira categoria que vai arranhar a relação. Mas que é insuportável ouvi-lo falar daquele jeito, isso é! 08/07/21
Mané tem um despertador interno. Ele funciona entre seis e seis e meia da manhã, invariavelmente, não importa se dia útil ou inútil. Até o momento em que a família acorda, são umas duas horas de paz quando Mané pode fazer suas coisas sem as demandas caseiras que, durante a pandemia, se tornaram constantes. Cachorro vem, senta e fica olhando com aqueles olhos que dizem tudo e pronto, cadê que Mané consegue lembrar a senha para enviar um Pix? Mesma coisa com Anuar que é o segundo a acordar e já chega relatando problemas de mau funcionamento do smartphone ou reclamar de alguma coisa que a auxiliar de serviços gerais tenha tirado do lugar. Samira sabe-se lá o que anda fazendo, já não mora mais aqui, mas, mesmo assim, ela só trabalha à tarde, nunca acorda antes do meio-dia. Já Salma é um caso à parte. Ela mantém um despertador para acordá-la entre oito e oito e trinta. Desperta sempre reclamando que ainda é madrugada, porque ainda não fizeram café, qual a razão que todos têm para estar acordados a essa hora e, afinal, que dia é hoje? O despertador de Salma é um caso à parte. Nesses trinta, quase quarenta anos que dividem a cama, diversos modelos já passaram pelo criado mudo dela. Os primeiros eram aqueles com os números verdes ou vermelhos, dos quais nunca gostou, dizia que dava uma má impressão quando por alguma razão abria os olhos no meio da noite e via aquela luz mortiça rondando. Do vermelho ela tinha medo, vai entender. Aquele redondo de dar corda, Mané não se lembra de ter visto ali, menos mal porque tinham um barulho estridente que podia até provocar um infarto. Depois vieram aqueles de fundo cinza e caracteres pretos, mormente de fabricação chinesa, com os quais Salma não sente mal estar, mas que são impossíveis de acertar. Muitas vezes, em plena madrugada, aquela coisa começava a apitar e todos acordavam sobressaltados para Salma descobrir que tinha colocado a hora errada no despertador. Mané praguejava pela interrupção dos sonhos, levantava para fazer um xixi e tirava o despertador do quarto. Isso quando estava calmo. Em alguns acessos de fúria, Mané chegou a atirar travesseiros no maldito, que se estatelava no chão e no dia seguinte era substituído por um pior. Da última vez Salma comprou um despertador que fala. Ao invés de apitar, uma voz feminina com sotaque chinês anuncia a hora e informa que está na hora de acordar. Samira acertou o horário de forma que até agora não houve sobressaltos noturnos. De qualquer forma Mané está pensando em quebrar esse relógio também porque está ficando irritado com aquela voz que anuncia: Oto holas tlinta minutos, despeltal, ah, cuidado, não se pode escrever assim hoje em dia sob pena de causar um incidente diplomático, mas, pelo menos, o criado não é mais mudo. 06/07/21
As ruas de São Paulo estão cada vez mais desafiadoras. A sensação de insegurança está presente em qualquer lugar da cidade. Mané lembra que antes a cidade tinha uns pontos viciados, era perigoso ir em alguns lugares, noutros era mais seguro, enfim, a violência esteve sempre presente. Agora, além da violência temos também a miséria espalhada de forma generalizada por todos os rincões da cidade, dos mais opulentos aos nem tanto. Mané distribui esmolas por onde anda, às vezes distribui os excessos de comida, doces, roupas e cobertores da ong, enfim, ele sabe que não é muito, mas Mané é uma pessoa que está ligada no problema. Por isso hoje ficou se sentindo mal com um episódio que ocorreu quando chegava à casa da sua mãe na Bela Vista. Ali na Praça 14bis tem um acampamento grande de sem tetos e quando Mané para no farol costuma atender aos pedidos dos que chegam pra pedir. Um cara aproximou-se andrajoso à janela fazendo aquela chorumela e Mané pegou uma nota de 5 reais que estava no console e entregou ao sujeito que reagiu: “o que? Você aí nessa lemosine (sic) vai me dar só cinco reais? Tá pensando o que, ô ricão, acha que vai levar esse carrão pro túmulo? Pro caixão eu e você vamos do mesmo jeito, apesar das diferenças entre nós agora”. E enquanto se afastava, depois do farol abrir, continuou: “você vai pro inferno ô magnata, da próxima vez que te ver, em vez de pedir, eu vou pegar o que quiser, seu sacana miserável filho de uma p…”! Mané acelerou a “lemosine” pela Av. Nove de Julho fugindo com medo do incômodo, mas ficou com um travo amargo na boca. Sentiu-se injustiçado, no entanto, achou que nem tão no fundo assim, o cara tem razão. Mané chegou à casa da mãe com a moral na sola do sapato e desabafou com ela que ouviu com aquele seu olhar de velhinha e no fim falou que “não, não se preocupe, você é um bom menino, de jeito nenhum você vai pro inferno”! 01/07/21
Mané chega à farmácia. É o comprador oficial de remédios de uso contínuo para Salma, para a sua mãe Sara e para ele próprio. Eventualmente alguma coisinha para os filhos. Mané já está moralmente preparado para repetir quatro vezes o cpf e o número da carteira do plano se saúde. Mané da sempre o mesmo número, mesmo para os tarja preta de sua mãe. Se forem buscar pelo cpf, Mané toma todos os remédios do mundo. Na farmácia pedem o cpf até pra comprar pastilhas valda. Mané se posta na fila única para pedir. Tem uma pessoa sendo atendida e outra na frente de Mané esperando. Tem quatro atendentes, duas conversando alguma coisa entre si, uma escutando a conversa das duas e a última concentrada num terminal de computador. Atrás de Mané tem um quinto elemento, uma jovem em posição de sentido perto da gôndola de fio dental, olhando pensativa para uma sexta pessoa que está no caixa despachando um cliente. Mané espera calmamente e depois de minutos a fila anda. As que conversam continuam conversando e a que ouvia atende a sra gorda que estava à frente de Mané, que quer algum chá pra queimar gordura. Há um impasse quando a moça chama a outra que estava em posição de sentido para que leve a gorda para a gôndola de chás, mas a gorda quer ser atendida no balcão então a moça que a atendia sai de sua posição e vai até os chás e fica olhando para os produtos. Diante do gesto de impaciência de Mané, a que estava no computador lhe diz, “pois não” e ele avança até a fita de distanciamento e diz: me dá um xxxxxxxxina, 10mg. A moça então pede cpf, plano se saúde, se queria o xxxxxxina ou podia ser o genérico ou o similar ou ou. Mané responde, “o de caixa azul”. Ela passa um tempo olhando para as prateleiras e diz que so tem o verde. Mané diz ok e ela volta e começa a digitar. Sai 116,50 mas com o desconto da farmácia fica por 104,10. Mané diz tudo bem e pergunta se não tem caixa com 60 comprimidos. Ela volta pro fundo e diz que não, se Mané queria outra caixa. Ela digita mais um pouco e diz que se ele levar duas, cada unidade sai por 67,99. Mané se espanta com a redução e diz que então vai levar duas. Ela digita mais um pouco e Mané percebe que a fila atrás dele aumentou e que as pessoas estão ficando impacientes. A moça então pergunta se ele não quer levar três porque nesse caso, cada unidade sairia por 37,90. Mané acha que não entendeu mas a moça lhe sorri condescendente. Vou levar três então, decide Mané e pega sua cestinha, sua lista de produtos promocionais e se dirige ao caixa. Ele para ao lado da gorda que não conseguia encontrar o chá e de lá mesmo pergunta para a moça que o atendeu: “se eu levar 15 caixas sai de graça”.? As pessoas na farmácia riem, Anuar ri, Mané ri. Até mesmo as duas que conversavam riem, a que estava em posição de sentido, a gorda ri. Só não riu a do caixa porque estava longe e não entendeu nada, mas isso não é razão pra não rir porque Mané também não entendeu nada e está rindo até agora. 30/06/21
Mané foi uma criança tímida e reclusa que passava as tardes no meio de um monte de mulheres, primas, tias, auxiliares, irmã, mãe e avó. Gostava de ver as meninas limparem a casa, passarem roupa e cozinhar, entre outras atividades exclusivamente femininas à época. Conforme foi crescendo começou a causar preocupação a sua inapetência para atividades masculinas, dando preferência para outras mais caseiras. O pai lhe deu uma bicicleta e um carrinho de rolimã que ele usava mas era só pra não decepcionar as pessoas. Futebol na rua era uma atividade da qual ele passava longe, além de ser grosso, achava aquilo tudo muito violento. Um dia, quando tinha 10 anos, sua preocupada mãe resolveu tomar uma atitude depois que uma prima mais velha ,que hoje é defensora dos direitos dos LGBTQIA+, o tinha chamado de mariquinhas. Num sábado à tarde ela o colocou no carro e o levou até a Congregação Israelita Paulista onde funcionava um grupo escoteiro. Parou no meio fio e arrastou-o sob protestos para fora do carro, localizou um rapaz que estava com aquele uniforme cáqui, apontou pra ele e disse pra Mané: olha, aquele ali é seu chefe, vc vai passar a tarde aqui. Ele foi bem recebido pelo rapaz que o cumprimentou com aquele aperto de mão e continência escoteira. Em poucas semanas ele já usava uniforme e chapelão, logo depois já tinha ido a diversos acampamentos, aprendido a armar barracas e dar todo tipo de nós e ninguém mais se preocupou se ele era ou não mariquinhas. Ali Mané alçou seu voo próprio e aprendeu a estar Sempre Alerta, mas, bom mesmo era quando tinha atividade conjunta com as Bandeirantes. 28/06/21
A padaria Rodésia, que fica na esquina da casa de Mané, é um estabelecimento sem frescura. Os atendentes ficam assistindo à televisão junto com os clientes, servem cafézinho em copos americanos e a comida é boa, mas não é gourmet. Tem misto quente de ogro, sanduichão de mortadela e os caras ficam distribuindo pão de queijo pra clientela ter vontade de comprar mais. Mané é íntimo dos funcionários, a maioria o chama de doutor, menos uma jovem moreninha que o trata de “meu amor”. Quando começou o frio, há um mês, eles começaram a servir sopa pra viagem. Desde então, Mané e sua família têm tomado sopa à noite. Canja, caldo verde, creme de mandioquinha, legumes com carne, minestrone, caldo de feijão com letrinhas, uma diversidade infinita. Todo fim de tarde, Mané chega à padaria: boa tarde doutor, e ainda: oi meu amor, qual sopinha vcs vão tomar hoje, ah tem aquela que você adora. Vai a embalagem grande ou a pequena? Ponho queijo parmesão? Não? E as torradinhas vai querer? Vai, né? E Mané fica ali se sentindo um sultão, compra pão, frios, queijo branco, pão de queijo, mini sonhos, palmiers e depois volta pra casa onde leva bronca de Salma por ter comprado tudo que já tinha em casa e Mané diz que não sabia que tinha, pra ela congelar o excedente. Hoje Mané estava ocupado e Salma foi comprar a sopa. Voltou dizendo que uma morena a tratou mal. Salma quis levar caldo verde e ela disse que Mané preferia canja, podia levar caldo verde mas era melhor levar uma embalagem de canja para o "seo" Mané. Queijo ralado? Não vou por porque ele acha que chega empelotado em casa, melhor levar separado. A sra vai levar torradas, porque ele gosta mas precisa ser essa torrada de pão de centeio. E pãozinho de queijo, não vai querer? Ele adora pão de queijo, leve 8. Não teve acordo. Salma voltou pra casa e falou pra Mané ir ele próprio comprar a sopa, ela não sabia o que trazer e que tinha achado a garota muito íntima dele, além de impertinente. E Anuar, que sempre acompanha o pai à compra da sopa soltou: isso porque você não ouviu ela chamando o pai de meu amor. Hoje teve pizza pra jantar. 26/06/21
O Ex Ministro já cumpriu o seu papel e garantiu um lugar na história. Hoje pela manhã, diante desta imagem, Milu não se conteve e, depois de executar as voltinhas para alinhar seu intestino com os astros, despejou os seus dejetos no lugar certo. Mané quis tirar a fotografia com a obra completa mas Salma o impediu: ai, que nojo, ela disse, eu não tenho Facebook por causa disso, só se publica merda! Mané obedeceu à patroa e limpou o local mas, antes de remover o jornal, tirou essa foto para eternizar o momento e ficou pensando no que Salma falou com relação ao Facebook. Mané ponderou consigo mesmo que há tempos que a merda está presente em todo lugar e depois, enquanto lavava as mãos, num atimo, um tormento lhe invadiu a mente: ao que será que se referia Salma quando disse que aqui só se publica merda? 25/06/21
Hoje eu não vou me esconder atrás do Mané ou talvez fosse mais conveniente dizer que não vou me expor através dele, não sei. Vou falar da minha mulher e por isso tenho que voltar até o ano de 1982, quando um amigo que tinha passado um ano comigo em Israel, começou a namorar com uma garota e eu, que estava avulso, saia muito com eles, a três. Seis meses depois eles brigaram e eu continuei amigo da ex-namorada. Avulsos os dois, saíamos para andar de moto, ir ao cinema, jantar, etc. Não sentimos atração um pelo outro e então ficamos sendo amigos mesmo. Num fim de tarde ela me liga dizendo que ia comer uma pizza com umas amigas, se eu queria ir ao cinema depois. Sim, eu queria, e fui pegá-la na pizzaria de onde ela saiu com mais três meninas, todas estudantes de psicologia da PUC. Cumprimentei todas de longe sendo que, uma delas, de nariz grande, cabelo cacheado e rosto levantino, chamou-me à atenção, mas, a ex-namorada do meu amigo, logo subiu na garupa e de lá chispamos os dois rumo ao cinema, como melhores amigos. Era o fim do ano e chegou a formatura da ex-namorada, a comemoração num boteco na Rua Monte Alegre. Todos os amigos presentes, meu amigo e ex-namorado também psicólogo e também a amiga com cara de árabe, que nesse momento eu já sabia chamar-se Viviane. Passei a noite tentando puxar conversa, mas ela não me deu muita bola, combinava a viagem de férias, falava sobre os temores da vida profissional que se iniciava, enfim, no fim da noite, na hora de rachar a conta, eu mal tinha conseguido trocar poucas palavras com a Vivi, quando vejo que ela começa a preencher um cheque, coloca o telefone no verso e o joga na mesa encima de muitos outros. Disfarçadamente, olhando para os lados, peguei o cheque dela, dobrei e guardei no bolso e coloquei no lugar um da minha lavra, com o dobro do valor. O tal cheque passou as ferias na minha carteira. Em fevereiro estou com um amigo passeando de moto à noite e resolvemos tomar um chope no Bar 22 em Pinheiros. O lugar está cheio e por isso bebemos o chope na calçada encostados na moto sem a preocupação de que teríamos que dirigir depois alcoolizados e sem capacete. Súbito, vejo a psicóloga levantina sair do bar com uma amiga. Você por aqui, ela me cumprimenta friamente, apresenta a amiga e começa a ir embora. E eu: mas, já vai? Logo agora que eu ia começar a falar com você? Ela riu e disse que lamentava, tinha consultório cedo amanhã. Ela estava usando uma minissaia jeans apertadinha e alpargatas verdes da cor da blusa mas, mesmo assim, virou as costas e se foi. No fim de fevereiro estamos na festa de aniversario da amiga ex-namorada do amigo. Vivi chega à festa com um sujeito. Ficam namorando a noite toda na minha frente e a certa altura saem de fininho me deixando com o coração partido. Naquela noite fui consolado pelo meu primo e resolvi que aquela garota não funcionaria pra mim. Dias depois, arrumando a carteira encontro o cheque que eu tinha roubado na formatura. Sem pensar pego o telefone e disco. Alô, eu digo, tem uma festinha de um amigo no sábado, você quer ir? Claro, ela responde, posso levar uma pessoa? Uma pessoa, pensei enquanto rasgava o cheque em mil pedaços, ela que não me chegue com aquele sujeito raquítico e com cara de ameba porque sou capaz de quebra-lo em dois. Guardei os pedaços do cheque na carteira. No sábado à noite eu a vi chegar com duas amigas e respirei aliviado. Dançamos, bebemos, nos agarramos um pouco com o maior respeito, tudo ia correndo muito bem, mas quase no fim da festa ela chega chateada e diz que roubaram a bolsa dela, que ela queria ir embora e vai! Dia seguinte o amigo dono da festa encontra a bolsa na arrumação, com os seus documentos, um modess e sem o pouco de grana que antes continha. Menos mal. Ligo para lhe devolver seus pertences e percebo que ela fica com vergonha por causa do modess. Antes de ir, eu digo: tenho mais isso pra devolver e coloco o cheque picado na mesa. Ela não entendeu e então eu expliquei e, enquanto espero o elevador ela ri da traquinagem. Não precisava ter roubado o cheque, se você tivesse pedido eu dava o telefone. Aí eu digo: bom, agora já tenho e ela ri de novo. Abro a porta e entro no elevador ela, segurando a porta, diz: vamos ao Mistingueti domingo? E eu: Ah, quem vai? E ela: se você for, seremos nós dois. Pra casar com essa moça católica tive que enfrentar meus pais, tive que ouvir os pais dela perguntarem se nossos filhos seriam pagãos e nunca imaginei que chegaríamos tão longe. Segundo minha mãe, ela é a melhor nora que alguém poderia desejar, verdade que não há outra, fiquei amigo do pai dela, e quando ele morreu eu chorei a sua morte tanto quanto chorei a do meu, e, apesar de ela ter dois irmãos, fui eu que levei a mãe dela, junto com a minha para tomar a coronavac. Hoje é aniversario dela, não vou denunciar a idade mas ela já tomou duas doses de vacina e vamos caminhando para 37 anos de casados por isso resolvi escrever esse texto de presente para ela e agora que reli, não sei se ela vai gostar que eu a chame de levantina mas, fazer o que, tenho sangue árabe, gosto de mulheres com aqueles traços orientais fortes. 22/06/21
Logo nos primeiros dias da faculdade Mané fez amizade com uma moça chamada Samira, como sua filha, que ia estudar ciências sociais. Mané julga que eles poderiam ter tido um caso mas, naquele curso básico tinha estudantes de todas as matérias e uma estudante de direito que dirigia um carro esportivo e usava óculos escuros, acabou ganhando o coração de Mané. Mané teve breves contatos com a socióloga ao longo dos últimos quarenta e cinco anos mas não sabe direito o que se passou com ela que ontem lhe mandou um e-mail, indicando o link de uma live de duas horas que tinha acontecido sobre Judaismo Decolonial, que diabos será isso ? Ela dizia que enquanto assistia pensou em Mané e queria saber o que ele achava daquilo, já que tínham tido muitas conversas sobre Israel na faculdade. Mané assistiu cinco minutos e sentou pra redigir uma resposta: Samira, que bom ouvir de você. Estamos aqui todos bem, eu e Salma já com duas doses e os filhos com uma. Da última vez que conversamos, talvez há dez anos, você me indicou um livro que adorei do LeClesio, acho que "o africano". Dei uma olhadinha na live mas tive que parar porque não aguento mais lives, não aguento o assunto (judeus e não judeus criticando Israel por sua postura "colonialista") e tenho que ir ao sacolão. E continuou: tenho uma relação estreita com Israel, simpatia pelo sionismo e gostaria que os territórios conquistados logo após a guerra de 1967 tivessem sido devolvidos em troca de paz. Não sei se voce lembra nos acordos de paz com Jordânia, em 1994 e Egito, em 1979, os primeiros não quiseram de volta a Cisjordânia e os outros não quiseram Gaza, provavelmente porque são territórios lotados de uma população beligerante. Você deve lembrar também de um episódio, conhecido como “setembro negro”, quando o rei Abdullah da Jordânia massacrou milhares de palestinos que amaçavam lhe tomar o poder em 1970, só pra ilustrar o tamanho deste contratempo. Além do mais, você sabe que sou egípcio, que minha família foi expulsa de lá em 1957, sabe também que chegamos ao Brasil e fomos amparados por instituições judaicas, assim como foram amparados todos os 900 mil judeus expulsos de países árabes, 600 mil dos quais por Israel onde se tornaram cidadãos de pleno direito. Do lado árabe também houve expulsos, 650 mil tiveram que sair da então Palestina, sabe como é, guerra é guerra, e foram como refugiados, tal como eu, para países árabes vizinhos onde foram imediatamente confinados em campos, praticamente presos, apesar de falarem a mesma língua e comerem a mesma esfiha, e veja bem, os judeus que nos ampararam eram diferentes de nós, tinham outros hábitos, falavam outra língua e comiam outra comida mas, numa guerra, cada qual tem que cuidar dos seus feridos, não tem? Se ao invés de ser acolhido eu tivesse sido confinado num campo de refugiados e ali permanecido por 70 anos, provavelmente também me tornaria terrorista. Claro, às vezes, tenho vergonha de algumas coisas que Israel faz, não vou entrar em detalhes mas, não gosto de extremismos de nenhuma coloração, no entanto, como posso condenar o único país democrático e progressista encravado numa região de ditaduras? Acusam Israel de ser nazista e cometer apartheid pois certamente não sabem o que isso significa. Samira, essa conversa daria uma live de cinco horas e nem sei se esgotaríamos o assunto. Também não sei se escrevi o que você queria ouvir mas enfim, tenho que ir ao mercado. Minha filha, não sei se já te contei, também se chama Samira porque eu gostava do seu jeito e um dia eu quis que ela fosse parecida com você, mas ela dá aulas de química. Beijos. Depois de clicar para enviar, Mané ficou achando que ela nunca mais vai lhe escrever e, para tentar remediar, mandou uma outra mensagem com uma foto dele dizendo: se por acaso nos encontrarmos, pra você saber qual minha aparência atual. 20/06/21
Mané tem um problema na próstata. Por enquanto isso gera a necessidade de exames de controle de tempos em tempos e um remedinho na hora do jantar. Hoje Mané retornou ao médico e, depois de lhe entregar os resultados, submeteu-se ao famigerado exame de toque. "Mas você já não tem as imagens do ultrassom, pra que essa coisa de toque", perguntou Mané tentando evitar o incômodo. O médico explicou enquanto besuntava a mão enluvada, em especial o dedo médio. Mané não conseguiu contar até dois e tudo já tinha terminado e à noite, diante de uma profusão de sopas, Salma, Samira, Anuar e Mané deram boas risadas quando ele detalhava a posição humilhante que ficou enquanto o médico exercia seu ofício. En passant, Salma contou que uma amiga ia fazer uma cirurgia na pálpebra e que ela teria que acordar no meio do procedimento para abrir o olho para que o médico verificasse se tinha ficado bom, estranho, né? Pra terminar, já que estavam falando de olho, Mané lembrou uma vez que foi fazer uma colonoscopia e, no meio da função, abriu os olhos e viu uma moça parada na frente dele. Olhou de banda e viu um homem postado às suas costas. Confuso, viu uma cena numa televisão atrás da moça e perguntou a ela: "isso aí que tá passando na TV sou eu por dentro"? A moça deu um pulo pra trás e disse: "você não devia estar vendo isso" e, ato contínuo, passou a mão sobre os olhos de Mané fechando-os e mais ele não lembra. "Já terminaram", perguntou Salma. "Vou lavar a louça", disse Mané, Milu latiu, todos levantaram, fim! 17/06/21
Se fosse 1984 e Mané visse esse serviço de Salma, provavelmente acharia muita graça e ficaria encantado, como sempre ficava, com o jeito desligado dela, uma dessas mulheres que se importam apenas com coisas que realmente importam. Salma é uma mulher que captura pequenos sinais no ar, se importa com o bem estar das pessoas e sabe como ninguém ler nas entrelinhas. Qual a importância de abrir um pacote de queijo no espaço onde está escrito "rasgue aqui"? Qual a importância de pegar de volta os pacotes, pastas e bolsa que você colocou encima do carro antes de entrar e sair acelerando feliz a espalhar as coisas pela rua? Conforme os anos de casamento avançavam Mané deixou de achar graça nesses pequenos deslizes que passaram a ser alvo de críticas. Hoje, quando o pacote de queijo aterrissou na mesa aberto no lugar errado, Mané entendeu porque Salma tinha se esforçado tanto para abri-lo e sentiu saudade de quando as coisas eram mais leves e tinham mais graça. "Nem sempre os picotes ajudam a abrir essas embalagens, né"?, disse Mané à família, no entanto, ninguém lhe deu atenção e então, sorveu uma última colherada do minestrone e levantou para lavar a louça pela 1.170a vez. 15/6/21
No fim da tarde Mané está sentindo certa fome e pergunta o que tem pra jantar. Salma que está com o pavio curto e acha injustiça só ela ter que se preocupar com isso, pergunta "porque vocês não falam o que querem" e Mané, que hoje está na paz, responde pra ela não se preocupar, que vai até a padoca comprar alguns potes de sopa, "tá frio, vou lá ver que sopa eles tem hoje, eu trago, a gente só esquenta e depois eu lavo a louça [como sempre], assim você pode atender, depois jantamos, eu lavo a louça e você não vai ter nenhum trabalho". E assim foi feito, teve sopa de legumes com letrinhas, sopa de carne com batatas e sopa de cebola. Na hora da janta Salma esquentou os caldos, tocou a sineta de mesa posta e todos tomaram as sopas felizes, menos Anuar que preferiu um sanduíche. Ao fim e ao cabo, Mané foi cumprir a sua última tarefa e deparou-se com a pia da cozinha na situação que pode ser visualizada na foto 1. Mané reclamou com Salma, "tudo isso pra esquentar três sopinhas" e ela, vindo pra cozinha furiosa, "mas você só lava a louça e ainda reclama"? Como foi dito acima, Mané está na paz e, em poucos minutos a cozinha já estava na situação da foto 2. 10/06/21 לילה טוב!
Mané está no carro com Anuar e Samira voltando pra casa depois de uma tentativa frustrada de caminhar em Pinheiros. Chove lá fora, eles estão passando pela rua Morás e Mané aponta pra um prédio e diz que, quando começou a namorar com Salma, há 38 anos, naquele local ficava a escola onde ela, recém formada, trabalhava. Tendo ganho a atenção dos filhos, Mané continuou dizendo que Salma, cuidava de uma classe de petizes e que quando ela tinha reunião pedagógica à noite, Mané costumava ir buscá-la para dar uma namoradinha básica no fim da noite. Mané saia da Bela Vista onde morava com os pais, ia na sua moto até os rincões da Vila Madalena e ficava esperando por Salma num boteco pé sujo na esquina da Mourato Coelho. A frequência no boteco variava de peão de obra, intelectuais argentinos, vagabundos e bêbados de qualquer natureza. Quando a espera ficava longa Mané gostava de tomar um cálice de Fogo Paulista, bebida que faz jus ao nome pois desce queimando tudo que encontra pelo caminho. Mas, pai, perorou Samira, fogo paulista e depois saia dirigindo moto? A mãe aceitava ir na sua garupa? Você levava capacete pra ela? Com a cara cheia de fogo paulista? Às vezes um bombeirinho e uma coxinha de vitrine? Mané respondeu às perguntas, os filhos se divertiram e se espantaram com os hábitos desse passado recente mas, mais do que isso, espantaram-se que os pais tenham tido uma vida agitada antes da existência deles, que tenham cometido essas pequenas irresponsabilidades, entre outras coisas. E então, o que acha que seus pais e avós fizeram quando nem projeto você era? 07/06/21
O pessoal sentiu vontade de comer burekas e Mané foi até o Bom Retiro comprar. Mané passou a infância ali e, apesar da degradação do bairro e dos arredores, é um lugar aconchegante aos olhos dele. Foi com Anuar até a Casa Búlgara, procurou a Shoshana mas ela não estava, fez a encomenda e foi dar uma volta por aquelas ruas tão carregadas de lembranças. Na frente da antiga escola Scholem Aleichem, hoje Casa do Povo, Mané quis mostrar o lugar para Anuar. Convenceram o vigia a deixá-los entrar, Mané passou-lhe uma conversa que o deixou com os olhos marejados e subiram para visitar a escola. O lugar está todo mudado, nem parece mais uma escola, além de mal conservado. Mas chegando ao terceiro andar, Mané deparou-se com o pátio onde funcionava o jardim de infância. Naquele local, 60 anos atrás, num último dia de aula, Mané, ao se dar conta que não veria por dois meses uma coleguinha que amava, foi até ela e deu-lhe um abraço que foi totalmente correspondido. Enquanto estavam lá se amassando, Mané, tomado por um rompante desesperado, mordeu a bochecha da garotinha que imediatamente se pôs a gritar e chorar. Vieram os adultos separar o abraço macabro, a menina foi levada com o rosto sangrando para ser limpa e medicada e Mané arrastado para a sala da Dra. Frima. Puseram-no sentado com a roupa manchada de sangue. Entra a diretora que também era médica e já tinha salvo Mané de muitas crises de bronquite e, com um olhar ao mesmo tempo severo e carinhoso, pergunta se ele tinha alguma explicação para o ocorrido. De chofre, Mané começou a chorar e, entre lágrimas, disse que ia sentir saudade e queria levar um pedaço dela pra casa. Depois de algum tempo de conversa, com Mané ainda chorando, trouxeram a garotinha com uma bandagem no rosto, que ficou olhando para ele com cara de medo. Dra. Frima tentou explicar e ela pareceu entender e perdoar Mané, tanto que deu-lhe até um beijo mas depois saiu rapidinho. Mané ficou chorando até ir embora pela mão da mãe, que ficou furiosa, e ainda chorava quando chegou em casa e levou uma surra para aprender a não morder as pessoas. Tudo isso veio à tona hoje por conta das burekas. Mané nunca mais atacou ninguém. 03/06/21
Pelo meio da manhã Mané desceu com Milu pra passear. Ao chegar no térreo numa área que tem bancos ele vê o marido da velhinha fujona do post de ontem, sentado, tomando sol. Mané o saúda e depois de algumas explicações ele é identificado: Oi vai passear com o cachorrinho, senta aqui, tô tomando um pouco de vitamina D. O homem brinca com Milu e elogia o pelo macio. Mané pergunta como ele vai, como vai a esposa e ele diz que está tudo bem, que estava cansado da pandemia, de ser surdo, de enxergar mal e de ser enganado pela esposa. Enganado pela esposa, o que é isso? Ah, nem te conto, ele disse num tom de voz que podia ser escutado no oitavo andar, veja só, hoje eu estava com um soninho, sabe eu acordo todo dia as cinco da manhã, quando chega às dez eu gosto de puxar uma pestana antes do almoço e eis que ela, toda carinhosa, me levou até a cama, me cobriu direitinho e quando eu já estava embalando, ela deu um beijinho e disse que ia até a vizinha. Mas, veja, eu não estava ainda dormindo, vi que ela vestiu casaco, sapato, pegou a bolsa e saiu. Você acha que precisa de tudo isso pra ir até a vizinha? Dito e feito, levantei e saí sem avisar a auxiliar, fui até a vizinha e cadê ela? As duas tinham saído! Fiquei tão bravo que resolvi descer aqui tomar um sol e esperar por ela, quero ver a explicação que ela tem pra me dar. Mané já não sabia onde se enfiar quando chega a faxineira esbaforida: mas o senhor, hein? Deu pra fugir agora? Sua esposa tá lá em cima tocando o terror em mim, dizendo que deixei o Sr se perder, vamos subir, vamos, ela foi levar uma bolsa pro conserto e quando voltou e viu que o Sr tinha sumido quase teve um treco. Ele levantou do banco tão rápido quanto podia, lanentou-se com Mané, cê viu, eu já desconfiando da minha velha, olha nem comenta com ela que eu me abri com você, que vergonha, a gente vai ficando bobo além de surdo e meio cego. E Mané já com Milu no colo respondeu, altivo: sou como um túmulo, isso fica só entre nós! E ele: ah, mas na minha idade você vem me falar de túmulo? 01/06/21
Aqui, vizinho de Mané, mora um casal de velhinhos. Mané descobriu que a mulher acaba de fazer 92 e seu companheiro vai em breve alcançar os 95. O homem tem sérios problemas para escutar e não enxerga bem. Demora para reconhecer Mané mas quando percebe quem é sempre tem uma palavra afetiva para entregar. Anda de bengala, tem um problema pequeno no coração e um pouco de diabetes. A mulher ainda está bem speedy. Fora uma artrite visível na mão, é uma senhora magrinha muito ativa. Sempre oferece uma bolachinha feita por ela mesma em troca de pequenas gentilezas que Mané faz e ainda oferece jantares uma ou duas vezes por mês para pessoas da sua pequena família, mesmo durante a pandemia. Podem ser vistos caminhando pela rua todo dia, param para conversar com os taxistas e com o barbeiro da esquina e cumprimentam todos que passam por eles na rua. Antes do corona paravam para um café na padaria, ele falando muito mais alto que o necessário com o garçom e ela rindo da surdez dele. Agora eles só acenam, às vezes sentam numa mesinha do lado de fora. Dia desses, quase no fim da caminhada, Mané deparou-se com a mulher descendo de um táxi a uns três quarteirões de casa e abordou-a mas quando ela o viu, reagiu constrangida. Mané perguntou se estava precisando de ajuda, o que ela fazia ali e porque descia do táxi tão longe do prédio. Ela olhou tristemente para Mané e respondeu que, “bem, já que você me flagrou, me ajuda a andar até em casa e eu vou te contar que três vezes por semana eu ponho o marido pra dormir e saio pra dar uma volta, comprar alguma coisinha espairecer. Não sei se você vai entender mas é difícil ficar 24 horas com um velho surdo dentro de casa. A faxineira fica com ele e se ele me chama ela diz que fui na vizinha”. Mané achou graça, riram juntos mas ela estava chateada de ter sido descoberta. Pediu segredo a Mané. Disse que o marido não podia saber das suas escapadas e agora, por causa da pandemia, se o filho soubesse disso, “acho que ele me mata”! Mané perguntou onde ela ia: “no mercado, dou uma volta no shopping mas, ó, eu tenho máscara, álcool, to vacinada fico longe das pessoas”. Chegando em casa ela o fez jurar que não contaria pra ninguém, “não ouse falar nem pra Salma, sabe como são as mulheres, they like to gossip”. Ah, Mané esqueceu de dizer que a mulher fala inglês fluente. Semana que vem ele vai lhe dar uma carona até o Bourbon. Ela pediu. 31/05/21
Lá na ong do Mané, no meio dessa pandemia resolveram fazer uma contratação de peso. Mané esteve contrário ao timing mas, foi voto vencido e como ainda estamos numa democracia, o plano seguiu adiante. Foi aberto o processo seletivo e recepcionados em poucos dias mais de 300 currículos. A maioria tinha a ver com o cargo mas chegaram também currículos de dentistas, veterinários, vendedores e especialistas em medicina ayurvédica, entre outros. A moça do RH bolou um plano para classificar os candidatos e estabeleceram-se sete características sinequanon. Fora os descartados, 220 currículos foram lidos e ganharam notas. 40 passaram para uma instância superior e desses, 20 foram escalados para entrevistas on-line. Só mulheres passaram para esta fase, numa demonstração de que elas são o máximo. Das 20 semi finalistas, sete foram para a final. Mané recebeu estes sete currículos para apreciar, já municiado pelas opiniões dos que participaram do processo, sendo que ele não tinha o poder de decidir favoravelmente mas uma negativa poderia ter peso. Mané que é preguiçoso e não entende nada de RH, muito menos de seleção olhou para o pacote com os sete currículos e sentiu que queria dormir. Currículos e entrevistas são traiçoeiros, assim como a opinião de terceiros. Mané leu aquelas folhas e foi de imediato tomado por uma paralisia asfixiante. Será que ele podia não ter opinião? Enquanto Mané se retorcia e bocejava, esbarrou na pilha de histórias que estava à sua frente e os currículos caíram ao chão, todos menos um. Opa, um sinal! Mané pegou o currículo que não caiu e se pôs a ler com atenção. Ao reler o nome da moça ele viu que ela tinha o mesmo sobrenome de uma namorada que ele teve no fim da adolescência. Pensou na menina e só conseguiu lembrar de coisas boas. A antiga namorada era bonita e dava uns beijos gostosos. Era alta, olhos verdes e, imaginem, tocava violino. Era divertida, inteligente, brilhava uma luz nela. Namoraram uns meses, não foi lá um relacionamento importante, e depois ele foi viajar para fora por um ano. Mané estava nessa lenga lenga há meia hora quando toca o telefone: e aí? O que você achou das moças? Mané votou na moça que tinha o sobrenome da namorada, cujo currículo não tinha ido ao chão. Ela e mais duas foram re-entrevistadas e no fim ela foi escolhida. Já contratada Mané foi conhece-la pessoalmente, de máscara, num lugar arejado e com distanciamento. No fim da conversa de duas horas, da qual saiu muito bem impressionado, Mané não resistiu e perguntou se ela conhecia uma moça com o mesmo sobrenome, violinista”.......”claro que sim, minha cunhada, ah, sério, não me diga que você a conhece”? 28/5/21
Quando casaram Salma e Mané permaneceram sem filhos durante quase quatro anos. Viveram uma vida boa, um preocupado com o outro e o outro preocupado com o um. Iam pro trabalho, ao cinema, almoçar na casa da mãe, da sogra, viajavam e flanavam. Mané lembra daqueles anos idílicos quando ele e Salma tentavam cozinhar o jantar, quando Mané resolveu adicionar salsicha à receita de shakshuka da mãe e quando Salma produziu um suflê que endureceu tão rápido que a colher com que ia ser servido e que ficou presa na massa teve que ser jogada fora junto com o próprio suflê e a travessa que o continha. Bom era chegar do banco no início da noite. Mané entrava e escutava os ruídos da água do chuveiro onde Salma se banhava e ia seguindo seus rastros até a alcova: os sacos de compras na mesa da cozinha, os sapatos logo mais na entrada da sala, a bolsa no sofá que ficava ao lado do corredor com as pastas e cadernos ao lado. No quarto tinha um telefone que ficava no criado mudo de Mané e ali, no chão, do lado onde ele dormia já estava a blusa e a calça ou saia de Salma, roupas que ela ia tirando ali deitada na cama enquanto falava com sua mãe a conferir alguma receita, ter alguma ideia para o jantar ou apenas numa conversa fiada. Na cama Mané encontrava o sutiã engruvinhado perto das almofadas. E a calcinha, ah bem, ela lavava no banho. Mané costumava tirar o paletó e a calça do terno já pondo tudo num cabide junto com a gravata, a camisa aterrissava no chão, ao lado das roupas dela e a cueca ia para junto do sutiã. Depois Mané ia pro banheiro e mergulhava nos vapores de Salma antes dela própria sair do chuveiro e enrolar-se numa toalha. Ela então deitava na cama e ficava esperando Mané terminar o banho dele. Naqueles tempos morria Tancredo, a inflação beirava os 20% ao mês, mas isso não os abalava. Às vezes Mané se pergunta se teriam sido estes os momentos mais felizes de suas vidas. 25/05/21
Salma tem no WhatsApp um grupo formado pelos colegas com quem se formou na PUC. São psicólogos e ela tem, no mínimo, o mérito de manter os laços do período da faculdade que são um dos mais importantes laços que fazemos na vida. Mané tem inveja deles. Antes da pandemia promoviam reencontros na forma de festas de arromba de tempos em tempos, juntam-se para cooperar em ações de cunho político e social, conversam todo dia sobre a vida, sobre o que estão fazendo e dão parabéns quando qualquer um faz aniversário (disso Mané não tem inveja). Salma sempre conta pra Mané o que está acontecendo ali, às vezes o ambiente fica pesado por conta de pinimbas políticas mas eles vão levando, é um grupo, em sua maioria, tolerante e afetivo. Ontem à noite Mané chega em casa e encontra Salma preocupada alisando o telefone, “clonaram meu grupo da PUC”, foi o que ela comunicou. Depois, descobriram que um dos membros tinha sido clonado e o clonador mudou as configurações do grupo. Pânico eletrônico. Por outras vias descobriu-se que amigos da pessoa clonada já tinham depositado mais de 20 mil, choviam mensagens apavoradas, nenhum psicólogo sabia o que fazer, alguns do grupo já tinham sido abordados pelo meliante. Uma das psicólogas então resolveu remover a clonada do grupo o que foi uma decisão acertada mas, depois de fazer isso, ela se auto removeu do grupo, cometendo um suicídio eletrônico o que acarretou uma sucessão de suicídios dos demais membros do grupo. Salma, uma das administradoras, assistia a seu grupo derreter diante dos olhos sem saber o que fazer. Mané comentou que, se fosse um evento ao vivo, provavelmente haveria muito amigo pisando no pescoço de outro para se salvar. Salma e Mané deram altas gargalhadas diante dessa imagem, uma multidão de psicólogos apavorados em fuga, hoje no café da manhã mas, calma, outro grupo já está sendo montado, tudo deve voltar ao normal menos para os que depositaram dinheiro. Salma ainda está com uma dúvida: como contatar aqueles mais afastados que estavam no grupo mas não se manifestavam? Deixá-los isolados no grupo estragado? Insta-los a se suicidarem no grupo antigo e ressuscitar no novo? Mas como se nunca falam nada e talvez nem olhem as mensagens? 19/05/21
Mané leu uma história aqui no face que lhe trouxe à memória um episódio ocorrido no início dos anos 1980 quando trabalhava naquele prédio do Unibanco que ficava na Praça do Patriarca. Mané trabalhava no Leasing, um departamento que dividia o 18o andar do prédio com o escritório brasileiro Dai Ichi Kangio Bank, então sócio do Unibanco. Os japoneses eram vizinhos de andar, tão distantes quanto cordiais, sendo que Mané levou bastante tempo até conseguir quebrar as barreiras culturais e com o tempo, fez bons amigos por lá que, entre outras coisas, o ensinaram a apreciar a culinária japonesa não tão conhecida à época. Um dos rituais que Mané estranhou ocorria ao final do expediente. Todo dia, pontualmente às 17hs, o chefão dos orientais ia embora. Sisudo e de cara fechada, saia da sua mesa em direção aos elevadores e era seguido por todos os funcionários que o acompanhavam até o hall dos elevadores, onde eles se postavam em um semi círculo ao seu redor enquanto aguardava o elevador. Quando as portas se abriam, o sujeito entrava no cubículo e virava-se para o séquito e nesse momento todos abaixavam a cabeça para fazer uma reverência e assim ficavam até a porta quase fechar, quando todos voltavam à posição ereta. Um dia, Mané estava lá nessa hora, aguardando um pouco afastado o término do ritual. As portas abriram e o chefão entrou. O ascensorista que era novo e desconhecia a liturgia, enquanto as portas fechavam, viu todos abaixando do lado de fora e, confuso, apertou um botão e as reabriu. Ato contínuo, todos voltaram à posição ereta e quando as portas começaram a fechar, eles abaixaram novamente e o ascensorista reabriu as portas. Ficaram nesse abre e fecha, levanta e abaixa por um bom tempo quando, sem mais suportar o impasse, Mané acenou e gritou pro ascensorista: “deixa as portas fecharem, meu irmão, ninguém mais vai entrar”. Quando o elevador finalmente desceu, Mané e todos os japoneses que ficaram deram algumas gargalhadas contidas e Mané, que já estava atrasado, tomou outro elevador e desceu. No dia seguinte pela manhã Mané cruzou com o chefão japonês no corredor. O homem estacou à sua frente com o semblante fechado e Mané até achou que viria uma repreensão por ter interferido na dança do elevador no dia anterior. No entanto, totalmente parado à frente de Mané, abaixou a cabeça e, torcendo levemente o tronco para baixo proferiu: “arigatô Maneo-san”, retirando-se sem mais nenhuma palavra. 16/05/21
Da primeira vez que Mané viu Salma, usava um moleton amarelo-canario, era a formatura de Latifa, uma amiga comum. Naquela noite ela não percebeu muito a presença dele, Mané lembra que ela olhou para o moleton, depois pra ele e depois para o moleton de novo. E foi só isso. Mané, que não sabia estar sendo plantada ali a semente do amor da sua vida, ficou feliz com a mirada dupla que recebeu e mais feliz ainda com o fato dela ter reparado na cor do agasalho, já que Mané é um notório apreciador de cores fortes e combinações esdrúxulas das mesmas. Da segunda vez que Mané viu Salma, pilotava uma poderosa CB400, usava um óculos escuro espelhado, um jeans cor de vinho, tênis e meias brancas. Por cima de tudo um colete acolchoado sem mangas, cor de rosa. Encostou a moto no meio fio, puxou os óculos para a cabeça e disse: você não é a amiga da Latifa? Sobressaltada, ela lhe confirmou sorrindo, olhou para o colete rosa, depois pra calça vinho, depois pra ele de novo. Mané ofereceu-lhe carona mas ela declinou. O terceiro encontro se deu meses depois, na praia. Mané de longe as viu, Salma, Latifa e outra amiga. Enquanto Latifa acenava, Mané, que usava uma sunga roxa, camiseta e sandálias havaianas cor de laranja, aproximou-se sorrindo e teve uma recepção afetiva de Salma, que antes olhou para sua camiseta, depois pra sunga e depois para o rosto de Mané, que usava seus óculos de grau. Dia desses, Mané detalhava para Salma as coisas pelas quais tinha sido atraído por ela. Riram porque hoje, a maioria dessas coisas são motivo de atrito. E você, perguntou Mané. Depois de pensar um pouco Salma disse que tinha sido atraída pelo exagero das cores que ele usava. Disse ainda que hoje achava meio over, aquele monte de cores gritantes pelo corpo e acusou Mané de transmitir isso para o filho. E Mané: ué? Vc não foi atraída justamente por isso? Nisso chega Anuar: mãe, olha o cadarço que o pai me deu, laranja marca texto pra combinar com o verde-limão dele, vamos andar? 12/05/21
Daqui a pouco Mané vai sair pela 390a vez com Anuar para fazer um percurso de 5km para algum lugar, como todos os dias desde o início dessa coisa, faça sol ou faça chuva. A pandemia proporcionou a Mané a descoberta de bairros que sempre frequentou de carro, agora percorridos a pé. A começar pela Vila Madalena, podem perguntar qualquer coisa: quantas papelarias tem no entorno, qual delas faz plastificação, onde tem um despachante, bibocas que vendem doces, barbearias, Mané tudo sabe. Mané percorreu a pé, diversas vezes os bairros de Higienópolis, Pacaembú, Vila Mariana, Bom Retiro, Bela Vista, Moema, Perdizes, Cerqueira Cesar, Jardins, Pinheiros, Faria Lima, Itaim Bibi, Vila Olímpia. Esteve uma ou outra vez em bairros mais distantes como Mooca, Tatuapé, Morumbi, Freguesia do Ó e Santana. Cada bairro é uma cidade diferente da outra, isso foi um grande incentivo para se exercitar e, se não emagrecer, evitou que Mané se transformasse numa baleia. Foram quase 2mil km de andanças e descobertas, São Paulo afora, muito bom mas, como tudo que é bom dura pouco, Mané e Anuar estão ficando enjoados. Onde vamos hoje? Av. Paulista? Ah, de novo, não, na Paulista tem muito pedinte. Higienópolis? Ah, já fomos lá nesta semana. Itaim Bibi? Ah, Itaim Bibi é muito metido a besta. Vamos então para o Jardim Ângela? Onde é isso, como se chega lá? Acho que tem que pegar a Av. 'M Boimirim. Vc sabe o que quer dizer 'M Boimirim? Em Tupi, Cobra Pequena! É mesmo? E agora, a pergunta que não quer calar e que vale para toda a nação: para onde vamos? 06/05/21
Mané trabalha numa ong onde cuida da área financeira. Há 20 anos atua tendo como chefe uma mulher idealista, a presidente da instituição. Problemas, sugestões, projetos, dia a dia, tudo foi sempre resolvido com dois dedos de prosa entre duas, no máximo três pessoas. Nem tudo eram flores, claro, Mané brigou muito com sua chefe e o problema sempre foi dinheiro, ela querendo gastar, ele querendo economizar. Nesses 20 anos a ong quintuplicou o seu orçamento, pagou ou equacionou todas as dívidas, limpou o passivo trabalhista e passou a ter crédito e credibilidade junto a bancos, órgãos públicos e privados com os quais se relaciona. Nesse período conseguiram apoio e financiamento de diversas empresas brasileiras e de algumas fundações estrangeiras. A instituição conseguiu, nos últimos dez anos, fechar o calendário anual com caixa positivo, o que é uma raridade neste mercado de ongs de pequeno porte. Em especial o resultado de 2020, em meio ao coronavírus, foi o melhor da história. Tudo lindo, mas...sempre tem um mas. A instituição já tem quase 30 anos de vida, como disse Mané foi fundada por um grupo de idealistas e, é claro, todos estão ficando velhos, até mesmo o Mané que vos fala. Já se percebe uma menor disposição para bons combates e alguns apoiadores, corretamente preocupados em perenizar o projeto, sugeriram a formação de uma equipe que viesse a suceder a atual. Como diz aquela música de Chico: “não se afobe, não, que nada é pra já”. E então? Estão prontos a soltar a mão do filho e deixá-lo para o mundo? Nunca estamos. Mané sabe que ainda tem alguns anos úteis pela frente mas não sabe quantos. A proposta de renovação faz todo sentido, mas faz mais sentido pra quem é mais jovem. Sem drama, Mané já pode enxergar uma mão à espera do bastão e, voltando à música do Chico, “os escafandristas explorando sua casa, seu quarto, suas coisas, desvãos, tentando decifrar o eco de antigas palavras, fragmentos de cartas, mentiras e retratos”. Sim, Mané sabe que vai levar um tempo, mas a sensação de finitude não é agradável. No próximo capítulo, a contratação do novo CEO. 30/04/21
Mané está na casa da mãe deitado no sofá da sala a observar enquanto ela vai dando os pontos no tricô. A colcha está pronta e agora ela começou um casaquinho. A nova bisnetinha vai ficar aquecida. Ela está murmurando para si própria e Mané pergunta o que foi e ela diz que não foi nada, “coisa de velho”. Fala, mãe! Ela então disse que fazer roupinha pra bebê faz ela lembrar da família que se foi. Era uma família tão grande, ela disse, dezessete tios eu tive, dos meus quatro irmãos, nenhum de seus filhos homens teve filho homem, nosso nome vai acabar. Não vai sobrar nem um Levy de nossa parte. Mané disse que tinha o filho do primeiro dos primos David da família que tinha tido um filho, Daniel. Ela olhou tristemente e respondeu que esse a gente quase não conhecia, está perdido aí pelo mundo e ele próprio tinha tido uma filha, portanto...é difícil. Mas que importância tem isso, mãe, Mané falou, as primas mulheres fizeram um monte de filho, os homens também, apesar de não serem varões, os descendentes estão por aí, nosso sangue ruim não vai acabar. Ela riu com o “sangue ruim” mas retrucou, o nome, filho, o nome acabou. Agora me deixa, quero terminar esse casaquinho pra minha bisneta, não tem meu nome mas é bisneta. Falar o quê? 28/04/21
Certa feita, num périplo pela Europa com um amigo que não falava mais que português, Mané se viu na situação de ter que passar os dias traduzindo tudo para o cara. Na França, o inferno foi grande, já que Mané domina a língua, o sujeito passava o dia cutucando-o nas omoplatas: “pergunta aí como é que se chega na Rue des Ecoles, pergunta aí quanto custa um croissant, pergunta se essa linha de metrô chega no terceiro arrondissement”. Isso o dia todo, todo dia, o que, no fim da viagem levou Mané ao esgotamento. Num dos últimos vôos, estavam num avião da Scandinavian, quando o piloto inicia a cantilena: “The comander and his crew, greet the passengers...”, uma cotovelada: “cara, você percebeu que todos os pilotos com quem voamos até agora se chamam Andy, Andy Krull? Mané ia começar a explicar mas logo ele mudou de assunto: bom, já que estamos indo pra Roma, como se fala avião em italiano? Mané, ainda com o Andy Krull em mente, respondeu: Vaporetto. Logo o sujeito levantou a mão e fez um sinal para a comissária loira e alta que se aproximou solícita: do you have beer in vaporetto? A moça responde: Tuborg? O amigo hesitou e olhando pra Mané perguntou: você quer uma cerveja? E Mané: não quero, vou tirar um cochilo! E ele de volta para a loira: only one, please! A moça se retira sorrindo e o amigo dando uma violenta cutucada em Mané: você viu só? Consegui pedir uma cerveja sozinho, mais uns dias de viagem e to falando até russo, mas porque ela queria me dar duas, será que ela acha que eu quero tomar um pifão? 27/04/21
Fim de tarde. Anuar no banho, Milu deitado no tapete, Salma na casa da mãe, alguma coisa passando na TV. Samira está fixada no telefone e Mané está na poltrona pensando no dia cansativo que começou com duas horas sentado na cadeira de um dentista. "Quer terminar isso hoje, perguntou o doutor"? Mané acena com a cabeça já que falar de boca aberta é impossível. Foi uma tortura e Mané pra se entreter ficou pensando na Tiazinha, uma gostosona que torturava as pessoas, depilando-as, num programa do Luciano Huck nos anos 90. Bem diferente de duas horas na cadeira do dentista. "Você lembra da Tiazinha", Mané perguntou pra Samira. E ela, levantando os olhos do telefone diz que lembra, sim! Mas como, você era recém nascida nos anos 90. Nem tanto, ela disse, lembro que você me punha no colo e a gente assistia esse programa, lembro também que você tinha uma Revista Playboy da Tiazinha. Mané ficou pensando que espécie de pai põe uma filha criança, 7/8 anos, no colo pra assistir o programa da Tiazinha. E como é que ela sabia que Mané tinha um exemplar da Playboy com a Suzana Alves, a tal Tiazinha? Então, disse Mané, vamos jantar Xburger com creme de milho? 26/04/21
Mané acompanhou paripassu a confecção dessa mantinha para o/a novo/a bebê que vem aí. Sara disse que não se sentia mais capaz de tricotar, que doía o punho, a mão e o ombro, que ia comprar um presente e pronto. No entanto, chegaram-lhe às mãos a lã e as agulhas e não lhe sobrou alternativa que não fosse colocar a mão na massa ou nas agulhas. Iniciou os trabalhos em 28/03/21 e terminou em 18/04/21, tempo recorde para uma velhinha que só fez reclamar. Difícil mesmo foi fazer a borda de crochê, Sara odeia crochê. Agora, um dilema: sobrou muita lã. Dá pra fazer touquinha, casaquinho, macacãozinho, meinhas e sapatinhos, tudo combinando. Mané está incentivando Sara mas ela está resistente. Prefere ler ou jogar buraco contra o ipad. Mas nada está perdido ainda. Faltam longos cinco meses para o/a rebento vir à luz. 22/04/21
Desde que Mané se conhece por gente elas sempre estiveram por perto. Quando a vida começou a melhorar um pouquinho uma delas vinha trabalhar duas vezes por semana, em consórcio com a tia, onde ia em outros dois dias, e com a avó, onde completava a semana. Seu nome era Quitéria e Mané lembra que ficava sentado ao seu lado enquanto passava uma pilha de roupas lavadas. Depois Mané lembra de uma garotinha, pouco mais velha que ele, Lenita, que chegou pela mão da mãe e foi deixada para morar e trabalhar na casa de Mané, que não lembra com que frequência voltava pra casa, se tinha descanso, fim de semana ou férias. Mané está falando da empregada doméstica, simplesmente empregada, “la bonne”, como era chamada em francês ou a auxiliar de serviços gerais, jeitinho que os politicamente corretos deram de chamar esta instituição que herdamos da escravidão. A razão pela qual a chamavam de “la bonne”, literalmente, “a boa”, na sua casa na infância, Mané não desconfia. O que Mané sabe é que sempre teve empregada em sua casa. Pretas, brancas, mulatas, loiras, morenas, gordas, magras, de olho azul, novinhas e maduras também. Quando Mané casou, vieram trabalhar primas ou filhas da empregada da mãe, das tias ou de conhecidas, nunca faltaram agenciadores ou mão de obra. Quando alguma pedia demissão ou era despedida, a família se mobilizava, em pouco tempo apareciam candidatas, mas sempre foi muito cansativa essa troca de bastão. Havia até quem se propusesse a trazer meninas do nordeste, sem manias ou exigências, para alocá-las em suas casas. Houve época que, na casa de Mané, tinha empregada, faxineira e babá, um exagero. Essas moças que trabalham em sua casa são donas da sua intimidade. Elas é que sabem se você usa meias furadas ou se não trocou de cueca naquele dia. Ela conhece seus hábitos alimentares, seus vícios e segredos. Sabe em qual gaveta você guarda o dinheiro e as joias. Os rastros estão todos ali nos caminhos onde ela limpa e arruma. Ela sabe o livro que você está lendo, o remédio que você está tomando e aquilo que você anda bebendo, se muito ou pouco. Ela sabe até das baganas que você largou. Aqui na casa de Mané tem, ou tinha, Mané não sabe bem, uma empregada que vem, ou vinha, todo dia. Eles nem precisam assim diariamente mas preferiram ter alguém para fazer o serviço e para não ter que deixar Milu sozinho o dia inteiro. Não fosse o cachorro, duas ou três vezes por semana seriam suficientes. No início da pandemia eles pediram para ela ficar em casa. Depois em junho, quando a coisa melhorou um pouco passou a vir duas vezes por semana e depois, quando começou a fase vermelho-hematoma, parou de vir de novo. Mês passado compareceu duas vezes, quando seu marido pôde acompanhá-la de carro na ida e na volta. Hoje em dia Mané só lembra que tem empregada na hora de pagar o salário e o esocial. “Quer que venha amanhã, dona Salma”? Só se o marido puder trazer, ninguém quer que ela se arrisque no transporte público e nem que traga um vírus pra casa, Anuar e Samira não estão vacinados. A pandemia nos levou para o ápice da estranheza dessa relação tão estranha patrões/domésticas. Agora temos empregada, só que não. 18/04/21 De meados da década de 1960, até o início da de 1970, Mané percorreu esse caminho diariamente, da sua casa até a escola. Consistia em sair da Av. Rio Branco e descer a Duque de Caxias. Depois da Rodoviária quebrava-se à direita na estação Julio Prestes, percorria-se toda a extensão daquele prédio lúgubre onde ficava o DOPS e logo, virando a esquerda, se chegava à entrada do Jardim da Luz e da correspondente Estação, onde hoje fica o Museu da Língua Portuguesa. Era ali que Sara deixava Mané e Farida seguirem sozinhos com a recomendação de que esta segurasse o irmão pela mão para atravessar a rua. Logo que Sara virava as costas, Farida punha a mão na cintura da saia azul plissada e a dobrava várias vezes deixando um palmo de coxa acima do joelho à mostra, operação que Mané demorou muito tempo para entender. Daí percorriam a Rua Prates inteira até chegar ao Colégio Renascença. Nos dias de chuva ou ameaça, isso tudo era feito de bonde, programa que Mané apreciava mais. Neste sábado Mané acordou disposto e convidou Anuar a percorrer os caminhos da sua infância. Pegaram o carro e foram até os Campos Eliseos onde procuraram um estacionamento para deixar o carro e partiram para uma aventura pelo passado. A poucos metros do estacionamento Mané começou a achar que o clima estava estranho. A Praça Princesa Isabel, onde fica o monumento equestre a Duque de Caxias, está tomada por moradores de rua e viciados. A fauna se espalha por toda a avenida até a estação Júlio Prestes onde essa população se torna mais esparsa mas ainda pontua por todo caminho até a estação da Luz. Mané ficou com medo, pegou Anuar pelo braço, voltaram para o carro e Mané mostrou o caminho que fazia de dentro do carro com os vidros bem fechados. Foi muito frustrante e depois de passear um pouco pelo Bom Retiro, que se parece cada vez mais com a Liberdade, tomaram o caminho de volta para o presente com Mané imerso em pensamentos sombrios sobre seu passado que deixou de existir e sobre o futuro que se mostra incerto. 17/04/21