sábado, 25 de setembro de 2021

Logo nos primeiros dias da faculdade Mané fez amizade com uma moça chamada Samira, como sua filha, que ia estudar ciências sociais. Mané julga que eles poderiam ter tido um caso mas, naquele curso básico tinha estudantes de todas as matérias e uma estudante de direito que dirigia um carro esportivo e usava óculos escuros, acabou ganhando o coração de Mané. Mané teve breves contatos com a socióloga ao longo dos últimos quarenta e cinco anos mas não sabe direito o que se passou com ela que ontem lhe mandou um e-mail, indicando o link de uma live de duas horas que tinha acontecido sobre Judaismo Decolonial, que diabos será isso ? Ela dizia que enquanto assistia pensou em Mané e queria saber o que ele achava daquilo, já que tínham tido muitas conversas sobre Israel na faculdade. Mané assistiu cinco minutos e sentou pra redigir uma resposta: Samira, que bom ouvir de você. Estamos aqui todos bem, eu e Salma já com duas doses e os filhos com uma. Da última vez que conversamos, talvez há dez anos, você me indicou um livro que adorei do LeClesio, acho que "o africano". Dei uma olhadinha na live mas tive que parar porque não aguento mais lives, não aguento o assunto (judeus e não judeus criticando Israel por sua postura "colonialista") e tenho que ir ao sacolão. E continuou: tenho uma relação estreita com Israel, simpatia pelo sionismo e gostaria que os territórios conquistados logo após a guerra de 1967 tivessem sido devolvidos em troca de paz. Não sei se voce lembra nos acordos de paz com Jordânia, em 1994 e Egito, em 1979, os primeiros não quiseram de volta a Cisjordânia e os outros não quiseram Gaza, provavelmente porque são territórios lotados de uma população beligerante. Você deve lembrar também de um episódio, conhecido como “setembro negro”, quando o rei Abdullah da Jordânia massacrou milhares de palestinos que amaçavam lhe tomar o poder em 1970, só pra ilustrar o tamanho deste contratempo. Além do mais, você sabe que sou egípcio, que minha família foi expulsa de lá em 1957, sabe também que chegamos ao Brasil e fomos amparados por instituições judaicas, assim como foram amparados todos os 900 mil judeus expulsos de países árabes, 600 mil dos quais por Israel onde se tornaram cidadãos de pleno direito. Do lado árabe também houve expulsos, 650 mil tiveram que sair da então Palestina, sabe como é, guerra é guerra, e foram como refugiados, tal como eu, para países árabes vizinhos onde foram imediatamente confinados em campos, praticamente presos, apesar de falarem a mesma língua e comerem a mesma esfiha, e veja bem, os judeus que nos ampararam eram diferentes de nós, tinham outros hábitos, falavam outra língua e comiam outra comida mas, numa guerra, cada qual tem que cuidar dos seus feridos, não tem? Se ao invés de ser acolhido eu tivesse sido confinado num campo de refugiados e ali permanecido por 70 anos, provavelmente também me tornaria terrorista. Claro, às vezes, tenho vergonha de algumas coisas que Israel faz, não vou entrar em detalhes mas, não gosto de extremismos de nenhuma coloração, no entanto, como posso condenar o único país democrático e progressista encravado numa região de ditaduras? Acusam Israel de ser nazista e cometer apartheid pois certamente não sabem o que isso significa. Samira, essa conversa daria uma live de cinco horas e nem sei se esgotaríamos o assunto. Também não sei se escrevi o que você queria ouvir mas enfim, tenho que ir ao mercado. Minha filha, não sei se já te contei, também se chama Samira porque eu gostava do seu jeito e um dia eu quis que ela fosse parecida com você, mas ela dá aulas de química. Beijos. Depois de clicar para enviar, Mané ficou achando que ela nunca mais vai lhe escrever e, para tentar remediar, mandou uma outra mensagem com uma foto dele dizendo: se por acaso nos encontrarmos, pra você saber qual minha aparência atual. 20/06/21

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