domingo, 17 de dezembro de 2006

Um dia na vida - sexto fragmento - 8:20

Devo ter feito meu pedido umas quatro vezes no balcão daquela padaria que é uma da mais refinadas da Vila Madalena até que uma das mocinhas concedeu-me o esforço de se virar. Atrás de mim já se formava uma pequena fila de cinco pessoas que faziam seus pedidos a esmo. A moça, uma loira de olhos azuis inexpressivos, parada bem à minha frente do outro lado do balcão, gritou a plenos pulmões: “próximo”! Eu repeti que queria quatro pãezinhos claros e duzentos gramas de queijo prato, ao que ela se virou para a cesta de pães e, enquanto os pescava com um pegador de ferro e os colocava num saco, gritou novamente sem se dirigir a alguém em específico: “frios”! Depois, virou-se lentamente, marcou o valor do pão numa comanda, entregou-me o saco e a comanda, gritou novamente, “frios”!, e apontou-me um local à esquerda onde, supostamente, alguém iria fatiar o queijo. Mantendo-me frio, peguei a comanda e o pacote e abri este último para averiguar o conteúdo notando que todos os pães eram muito mais escuros do que o desejável. Ato contínuo devolvi a compra dizendo que eu tinha pedido pães clarinhos e ela, olhando-me com cara de poucos amigos, recolocou os pães na cesta e foi para a cozinha, enquanto a fila aumentava. Voltou com quatro pães que estavam a meu gosto e, depois de me entregar o pacote gritou: “próximo”! Antes de sair da fila perguntei quem ia fatiar o queijo e ela respondeu quem seria, apontando-me um rapaz que já estava manuseando com grande esforço a máquina de cortar. Dei dois passos para o lado e postei-me à frente do menino que logo me ofereceu uma fatia. Perguntou-me se a espessura estava boa e eu disse que sim e fiquei esperando enquanto aquela lâmina ia e vinha e as fatias caíam no pratinho de isopor que tinha sido colocado embaixo. Enquanto ele se esforçava eu fiquei observando o ambiente da padaria. Eram 8:25hs e algumas pessoas tomavam café da manhã em pé no balcão. Era uma população heterogênea, formada por executivos de terno e gravata, outros como eu de short e agasalho, moças um pouco mais descontraídas, trabalhadores em geral, estudantes, guardas e motoristas de táxi. Havia muita gente comprando víveres e a fila que se formara antes não diminuía. Para meu desgosto, enquanto esperava o queijo, uma outra fila tomava corpo no caixa e eu me preocupava em ter de enfrentá-la quando o rapaz me entregou o pacote e pediu-me a comanda para marcar o valor da compra. Às 8:28hs entrei na fila do caixa e impacientei-me por estar muito atrasado. A esta hora minha mulher já devia ter acordado e estaria aguardando o pão fresco sem saber o motivo do meu atraso que, na verdade, se dera por causa do ônibus da minha filha, mas isso não vem ao caso, porque fui ficando cada vez mais nervoso ao perceber que quem pilotava o caixa era uma funcionária pouco esperta que se atrapalhava ao fazer o troco e ficava conferindo numa máquina de calcular a conta que o computador já lhe apresentava pronta quando ela inseria a comanda no visor ótico. Por fim, chegou a minha vez. O computador fez “bip” e apareceu o primeiro valor referente aos pães: 1,27. Fez “bip” novamente e apareceu: 3,56, relativo ao queijo. Total: 4,83. Dei vinte reais para a moça, fiz mentalmente as contas e esperei que me devolvesse o troco de quinze reais e dezessete centavos. A fila fervia enquanto ela refazia as contas na sua máquina de calcular portátil quando, pouco depois, colocou na minha frente quinze reais e quinze centavos. Por uma fração de segundos pensei em armar uma confusão pelos dois centavos faltantes, odeio essa história de “posso ficar devendo dois centavos?”. A moça estava lá totalmente apavorada exercendo uma função para a qual era incapacitada e eis que, surpreendentemente, mesmo achando um abuso, peguei o troco e fui embora sem uma palavra, entrei no carro, dei a partida, esperei o guardador de carros da padaria sinalizar se a rua estava livre, dei marcha à ré, parei no portão da minha garagem, acionei o controle remoto, esperei o portão abrir, entrei na garagem, fechei o portão, desci para segundo sub solo, estacionei na minha vaga, desliguei o motor, tranquei o carro, fui até o elevador, apertei o botão e esperei a máquina chegar.
Às 8:31hs entrei em casa e deparei-me com a minha esposa sentada na mesa da copa lendo o jornal que eu deixara ali mais cedo, bebericando um café preto. “Pôxa, você demorou”, foi o que escutei enquanto colocava o pão quente e fresco e o queijo sobre a mesa. Depois, enquanto eu tirava o agasalho e a camiseta suada na área de serviço eu a ouvi dizer para a ajudante que trabalha em casa: “já foi acordar o meu filho? Depressa, senão nós vamos nos atrasar!”
Às 8:32hs, sentei à mesa, ainda um pouco suado, mas já com uma camiseta limpa e verifiquei satisfeito que tudo já estava pronto para o café. De uma forma desordenada consegui localizar na mesa, além de copos, pratos e talheres, um melão, pão fresco, pão de forma, bisnaguinhas seven boys, margarina com e sem sal, manteiga, queijo cottage, queijo prato, requeijão, peito de peru, leite em pó, leite desnatado, nescau, adoçante, açúcar, uma garrafa térmica com café, cereal, danette, yakult, yogurt e, curioso, perguntei-me quem é que ia comer tudo aquilo, pergunta, aliás, que costumo me fazer todos os dias. Driblando a falta de espaço, cortei uma fatia de melão para mim e outra para minha esposa. E assim, às 8:33hs coloquei na boca um pedaço de melão que estava magistralmente no ponto e especialmente doce. Olhei para a minha mulher que fazia o mesmo e, nesse momento, eu sorri para ela. E ela para mim!

Continua...

“Um dia na vida” volta em 2007, nas primeiras semanas de janeiro.

domingo, 10 de dezembro de 2006

Um dia na vida - quinto fragmento - 7:39

Nas escadas cruzei com um sujeito que ficou olhando fixamente para a minha camiseta e só então fui me dar conta de que estava usando uma que tinha uma enorme estrela de David estampada no meio do peito, acho que da Marcha da Vida do ano passado. Perguntei-me porque o cara olhava tanto e, quando sentei na bicicleta e comecei a pedalar, a resposta veio através da reportagem da Rede Globo que passava em todas as televisões da sala de aeróbico. Dezenas de tanques e veículos blindados do exército de Israel penetravam pelo território do Líbano cuspindo fogo através de seus longos e grossos canhões enquanto o Marcos Losekan tentava escapar de uma katiusha amalucada que parecia não saber aonde ia, até que os espectadores a viram estatelar-se alguns metros à frente da câmera. Enquanto eu pedalava, as pessoas passavam por mim e miravam o olhar na estrela de David estampada no meu peito e depois olhavam para a televisão e viam o estrago que os aviões e os tanques que portavam a mesma estrela faziam no país dos cedros. Olhavam aquele monte de famílias brasileiras desesperadas tentando fugir dos ataques dos mísseis israelenses e depois voltavam o olhar para o meu peito arfante que suava para empurrar os pedais da bicicleta parada e queimar algumas míseras calorias das muitas por mim acumuladas ao longo dos anos. Eu queria explicar para eles o que, na verdade, estava acontecendo na tela. Queria contar dos meus amigos que tinham fugido dos petardos do Hesbollah para refugiar-se no sul. Queria falar que Israel fazia suas besteiras sim, mas, porque era levado a fazê-las. Que os verdadeiros responsáveis por esta situação idiota eram os anti-semitas europeus em primeira instância e, em segunda, os tribais e ignorantes líderes árabes à época da fundação do Estado de Israel. Mas quem queria me dar ouvidos? Era mais fácil entender que Israel estava destruindo aquele pequeno e belo país que acabava de ser reconstruído. Fui ficando com raiva, mas percebi, satisfeito, que com quanto mais raiva eu ficava, mais rápido o tempo passava e me dei conta de que, às 7:59hs, já havia passado vinte dos trinta minutos de exercício aeróbico que eu me obrigo a fazer todo dia após a musculação. Esta guerra e as pessoas olhando ostensivamente para a minha camiseta com um símbolo judaico me levaram a pensar em como era difícil ser judeu hoje em dia. Isso já tinha me passado pela cabeça ontem quando tentei almoçar num dos poucos restaurantes judaicos da cidade. Fui com uns amigos ao Bom Retiro porque sentimos vontade de comer guefiltefish. Depois de alguns desencontros e atrasos, acabamos chegando um pouco tarde. O lugar, conhecido como Shoshana, é uma espelunca feiosa que fica quase numa esquina perto da Rua Três Rios. Não é lá aquelas coisas em termos de apresentação, mas, como disseram que a comida era boa e vivia sempre cheio, foi com prazer que esperamos por quinze minutos até que uma pessoa muito mal educada, a própria dona segundo soube depois, nos avisou que a nossa mesa, nos fundos, ao lado do banheiro um pouco sujo, estava pronta. Entramos e confesso que senti um certo arrependimento, mas, enfim, havia outras pessoas lá comendo e bebendo e todos pareciam bem. Passou uma eternidade até que alguém se aproximasse e concordasse em trazer algo de beber. Mais algum tempo passou até que outra pessoa, desta vez o dono, viesse perguntar de forma grosseira porque não estávamos comendo. Quando respondemos que ainda não tínhamos conseguido pedir ele devolveu: “porque”? Foi difícil explicar ao ignorante que ninguém tinha nos atendido. Ele ficou nervoso e chamou sua esposa que então resolveu perguntar o que íamos querer. Eu falei: “quero guefiltefish”! Ela disse com desdém: “guefiltefish? À essa hora?”! Outra pessoa na mesa pediu varenikes que também tinha acabado. Em seguida descobrimos que dois outros pratos típicos também estavam em falta e então resolvemos perguntar, afinal, o que é que tinha para comer? A arrogante mulher afastou-se e voltou a chamar o marido que veio gritando: “o que vocês querem? Só temos peixe frito, sopa e fígado com ovo”! Respondemos que não era exatamente aquilo que tínhamos pensado comer, ao que ele, então, enfurecido, aos gritos, nos expulsou de lá: “então podem ir embora! Vão almoçar no coreano, lá é muito melhor”! Nesse momento, na academia, a mulher que estava na bicicleta ao meu lado perguntou do que é que eu estava rindo e eu disse que estava feliz porque tinha terminado meu treino. Eram 8:15hs quando parei de pedalar e já não pensava mais na guerra ou naquele ridículo e lamentável restaurante, muito menos nas risadas que demos depois na mesa do coreano. Apenas desci correndo as escadas porque já estava atrasado, coloquei o agasalho que pegara na chapelaria por cima da camiseta suada, cumprimentei de passagem as meninas da recepção e o guardador de carros, liguei o motor e arranquei em disparada. Quando desci na padaria para comprar pão fresco para o café, senti um leve repuxo no músculo posterior da coxa, o que me fez lembrar que eu esquecera de me alongar. Eram 8:19hs quando encostei a barriga no balcão e pedi bem alto para um dos cinco funcionários que estavam de costas para o público: “por favor, me vê quatro pãezinhos clarinhos e duzentos gramas de queijo prato fatiado bem fininho”?
Continua...

sábado, 2 de dezembro de 2006

Um dia na vida - quarto fragmento - 7:04

A moça da chapelaria saudou-me animadamente enquanto eu lhe entregava o agasalho e lhe recomendava que o pendurasse e não o dobrasse, pois havia as chaves do carro e de casa no bolso e eu temia que as mesmas caíssem causando-me transtornos na hora de ir embora. Ela apenas sorriu compreensiva e desejou-me um bom treino e eu imaginei o que poderia haver de bom naquilo, mas de qualquer forma agradeci e ao mesmo tempo resolvi solapar os dez minutos de aquecimento dirigindo-me sem delongas à sala de musculação, onde solicitei ao professor que me auxiliasse a extrair do computador o treino daquele dia. Fui brindado pelo sorriso amarelo do sempre atencioso professor plantonista daquele horário, um jovem com algo entre 23 e 25 anos, musculoso e atarracado, que chama a parte da frente do meu braço de bíceps e a de trás de tríceps. Presenteou a minha fria manhã com um treino de pernas e ombros, de forma que eu me dirigi para o primeiro aparelho de tortura, chamado de cadeira extensora, onde devo ficar levantando com a planta dos pés, um determinado numero de lingotes de ferro, cada um deles pesando sete quilos. Olhei desconfiado quando o professor que me perseguia pela sala ajustou o numero de lingotes em dez, o que significava que eu teria que levantar setenta quilos, coisa que eu duvidava poder fazer. Para não dar vexame iniciei a primeira serie daquele jeito mesmo e logo na terceira levantada senti os músculos do quadríceps começarem a queimar e arder e devo ter feito uma careta, pois percebi a cara de satisfação do professor que me disse “que quanto mais ardesse melhor” e eu não me esqueci de mandá-lo à merda em pensamentos, mas continuei assim mesmo. Quase no fim da primeira série de quinze levantadas fui salvo pela chegada de uma moça de peitos salientes que chamou a atenção do professor, tendo este ido em sua direção imediatamente. Aproveitei a oportunidade para diminuir o peso em dois lingotes, ou seja, diminui a minha carga para 56 quilos, e rezei para que a mocinha entretivesse o professor por muito tempo e que ele não voltasse para o meu lado, coisa que não é muito rara nestas situações. O fato é que a sala de musculação estava muito vazia. Além da minha pessoa estavam apenas a tal mocinha que tinha acabado de chegar e que neste momento roubava as atenções dos dois plantonistas do horário, um rapaz super musculoso que treinava sozinho e que não precisava nem queria a atenção de ninguém, uma moça magrinha, aparentemente maratonista, que estava acompanhada do seu personal trainner ao lado de um aparelho que eu teria que usar daqui a pouco, contando uma história interminável sobre uma festa de ontem à noite, uma moça gordinha fazendo de forma errada um exercício que deixava a sua bunda levantada de uma forma ridícula e ninguém lhe falava nada e uma outra mulher, da minha idade na certidão de nascimento mas portadora de algumas particularidades interessantes. Seu rosto tinha sido muito esticado para cima e para os lados, conforme ela mesmo me confessara certa vez, mas nem precisaria, o que lhe conferia uma idade indefinida e uma leve aparência de lagarto. Quem olhasse só na direção do seu tórax juraria que ela não tinha mais do que 30 anos ao se deparar com o esplendoroso par de seios que portava. Duros e firmes, olhando para cima e para os lados, comprimidos dentro de um top dois números menores do que a prótese de silicone que ela tinha comprado e implantado entre as costelas. A sua parte de baixo ainda estava comprometida. Tinha muita pele caída e não consegui definir direito o que ocorria ali. Uma olhadela conferiria à pessoa uns 70 anos de idade, o que na média lhe daria os mesmos 50 que ela tinha de verdade. Perdido em meus devaneios quase não percebo a aproximação do professor que vinha conferir o andamento do meu treino e espantei-me quando ele incentivou-me com um “é isso aí” quando eu, às 7:24hs, terminava a primeira parte do treino e sentava num aparelho justo entre a mocinha bonita, a detentora das atenções de todos, e a outra senhora, que tentei descrever acima. Enquanto secava o suor do rosto falei: “bom dia meninas” e recebi como resposta um meio sorriso simpático da mocinha e um “obrigada pelo meninas”, da outra senhora. Logo me concentrei naquela atividade absurda de puxar e esticar coisas pesadas e nem sequer respondi senão com um pequeno aceno de cabeça quando a senhora resmungou qualquer coisa a respeito do frio que fazia e de que reclamaria da falta da atenção dos professores daquele horário. Ao levantar-se perguntou-me se eu ia subir para o aeróbico e eu disse que sim. Às 7:34hs eu me aproximei novamente da garota bonita para fazer o meu último aparelho. Pensei no que será que fazia da vida, quantos anos tinha e quais eram seus sonhos. Imaginei se gostava de toda aquela atenção que recebia, se gostava de ler, se era tímida, se comia verduras, se gostava de baladas, se dava-se bem com seus pais, se tinha irmãos, namorado, etc. E depois, quando o professor afastou-se dela, às 7:35hs, eu a encarei e perguntei quantos anos tinha, ao que ela respondeu que faria 28 dali a 15 dias. Pouco depois ela me disse estar surpresa de eu ter perguntado alguma coisa para ela, pois me via na academia há muito tempo e nunca tinha me visto falar com ninguém e que achava que eu tinha cara de muito bravo. Eu dei uma risada e disse a ela que essa era a coisa que mais escutava de estranhos. Às 7:38hs, terminei a musculação e, depois de acenar para o professor, subi para fazer bicicleta.

Continua...