sábado, 25 de setembro de 2021

Mané está dirigindo na av. paulista, com o semblante carregado e de mau humor. Está um trânsito infernal, parece que a pandemia acabou, sqn. Ele está saindo do consultório do especialista em mão que, há poucos minutos atrás, lhe disse: “não faz essa cara, você devia ficar feliz que tem cura, quatro horinhas no hospital e você sai com a mão nova”. Diante de um Mané pasmado ele continua: “laparoscopia, um ou dois pontinhos, depois de um mês você nem mais vai lembrar que tinha síndrome do túnel do carpo”. No trânsito, no corredor central da avenida, Mané se vê cercado de motoboys por todos os lados. Desvia daqui, esterça dali, Mané vê um iFood se aproximando em alta velocidade pela lateral direita e, temendo ser abalroado ou abalroar, ele diminui a velocidade de forma a não emparelhar com o carro ao lado, deixando o maluco, que buzinava alucinado, ultrapassa-lo mais ou menos em segurança. Poucos metros adiante, o farol fecha e Mané para ao lado do sujeito. O motoboy olha pra ele e sorri: “valeu, presidente, não são tudo os que facilita pra nóis. As pessoa passa com a limosine achando que é dona da rua, raramente aparece alguém que alivia, valeu mermo” (sic). Mané, que estava com a paciência mais apertada que o seu tunel do carpo, respondeu, enquanto já abria o farol: não se iluda, não fiz isso por você, fiz pelo meu carro e por mim, vai pela sombra. E acelerou virando à esquerda. Por sorte o motoboy seguiu em frente. 23/9/21
Mané est seul à la maison. Depuis la pandémie, c'est une situation rare et inhabituelle et Milu, le chien, pense aussi car, dès qu'ils se retrouvent seuls, il fixe son regard profond sur Mané et n'a même pas besoin de parler pour que Mané comprenne son étonnement. Anuar est allée travailler, Samira est chez elle en train de travailler, Salma est allée faire quelque chose dans la rue et a recommandé à Mané de profiter de sa solitude pour faire ce qu'elle veut, lire, regarder cette série qu'elle ne veut pas voir, jouer avec le chien, appeler quelqu'un ou travailler. Mané se souvint alors qu'il devait travailler. Alors il fit la vaisselle, lut le dernier chapitre du livre qu'il lisait et alluma la télé. Au cours de ce voyage, il a jeté un œil à son e-mail et à WhatsApp et, comme tout était calme, il a appuyé sur play. A la minute où Michael C. Hall est apparu à l'écran, Mané a reçu deux WhatsApp. Elle s'arrêta et répondit poliment. Pendant ce temps, l'application e-mail a notifié l'arrivée de six nouveaux messages, sa mère a appelé et le chien est venu demander un câlin. Mané est allé au frigo et a mangé une dizaine de tomates cerises et un morceau d'ananas. il a essayé de regarder Netflix mais le téléphone n'arrêtait pas de gazouiller. Mané crut devoir faire quelque chose, éteignit la télé, alla dans sa chambre choisir quel livre il lirait ensuite et retourna dans le salon en ouvrant à contrecœur le couvercle de son ordinateur. Il a répondu à un e-mail, a pris le relevé bancaire, et juste au moment où il était sur le point de commencer à se sentir vide, Salma est arrivée et, de la cuisine, a crié : Tu as faim? Dois-je faire une salade pour le déjeuner? Pendant que Salma organisait les choses, Mané s'est assis pour faire ce rapport et a découvert qu'il ne sait pas écrire en français. Puis il est allé dans la cuisine et a épluché une mangue pour enrichir la salade. Mané aime les saveurs douces-amères. 21/9/21
Mané já foi um grande comprador de fruta. De olhar, sabia se o abacaxi era doce, se a melancia não estava farinhenta, o melão doce e a manga no ponto. Não tinha erro. Ia todo domingo à feira e voltava com produtos de primeira magnitude. Até abacate sabia escolher. Além disso, Mané era exímio descascador de abacaxis, no sentido literal da palavra, sendo que a técnica envolvia segurar o abacaxi pela coroa, remover com maestria a bundinha e em seguida fazer cortes longitudinais na casca, não muito fundo que consumisse a fruta, nem muito raso que deixasse intactos aqueles pontinhos pretos. Depois, levemente, removia as últimas imperfeições, fatiava e oferecia para a família. Com o tempo, começaram a ficar com preguiça de feira. A balbúrdia, o calor, a sujeira, o cheiro de peixe, tudo isso foi ficando penoso e eles passaram a frequentar dois sacolões perto de casa. A qualidade das frutas as vezes deixa a desejar mas, tem ar condicionado e da pra fazer feira e supermercado ao mesmo tempo. No Pomar da Terra vendem um abacaxi já descascado a 8 reais. Doce, gelado, uma delícia, Mané sempre leva. Já no Natural da Terra, o mesmo abacaxi custa 14. Mané ficou indignado e resolveu comprar o abacaxi com casca, que saia por 8,59. E Mané lá tem medo de descascar abacaxis? Mané ponderou um pouco e escolheu um abacaxi que lhe pareceu bom. Em casa, ao iniciar o processo de descasque e agarrar a coroa, esta se soltou e caiu no chão. Foi um sufoco tirá-la da boca do Milu e assim, a técnica de Mané ficou totalmente comprometida. Onde ele ia agarrar para os cortes longitudinais? Foi horrível. Salma olhava para o lado disfarçadamente enquanto Mané tentava descascar o abacaxi sem perder os dedos. Finalmente conseguiu mas ficou cheio daqueles pontinhos pretos, no entanto, constatou Mané ao comer uma tranche, pelo menos estava doce. Ficar velho é bom mas é uma merda. 19/09/21
Anuar voltou ao trabalho. É o único membro da família, fora Salma que atende uma ou outra criança em consultório, a voltar a suas atividades profissionais presenciais. Quando se aproximava da entrada, o vigia e o cara que mede a temperatura das pessoas, bateram palmas e lhe deram um abraço de longe. Esse Mané, que vai ficar sozinho e perdido durante as manhãs, foi acometido por um pequeno lacrimejar de olhos mas recuperou-se depressa. 16/9/21
Mané demorou alguns anos pra entender qual era sua turma. Expulso do Egito ainda bebê com a família, correram para a Itália pra conseguir a cidadania do bisavô e, depois de algumas conjecturas, vieram para o Brasil. Criança, falando português na rua e francês em casa, tinha dificuldade de explicar tantas nacionalidades e línguas. A avó falava com ele em árabe, a mãe em francês e ele respondia em português. Italiano, que era a língua do passaporte, ninguém falava. Isso causou sérias crises de identidade para Mané, que não conseguia se fixar em nenhuma nacionalidade tanto que, até hoje, depois de mais de 63 anos no Brasil, mantém a documentação de italiano residente, nascido num reino tão tão distante, a República Árabe do Egito. Mané não tem nacionalidade brasileira, nunca quis. Não vota, não pode se eleger e não pode trabalhar no Banco do Brasil. Em compensação, dono de uma nacionalidade italiana e reservista dos carabinieri, não passou mais do que noventa dias de sua vida naquele país, grande parte desses dias como um bebê de colo quando fugiam do Egito. E mais, por quais cargas d’água a família tem como língua mãe o francês? No entanto, ao longo dos anos Mané começou a sentir falta de uma coisa que não existiu pra ele. Mané às vezes se pega sentindo saudades da vida no Egito, a vida que nunca teve. Certa vez teve um jogo de futebol entre Brasil e Egito. Uma daquelas seleções brasileiras que empolgavam com Rivaldo, Ronaldo. O Egito levou uma surra homérica e Mané que não liga para futebol, sofreu muito com a dor de seus compatriotas, os egípcios. Mané se preocupa com a pandemia no Egito, tão pouco anunciada por aqui, como se preocupou com a primavera árabe, aquela que terminou num inverno islâmico. A parte odiosa, a da expulsão e da raiva dos judeus, Mané oblitera, vamos fazer de conta que não aconteceu, que foi um desatino coletivo, como o que anda acontecendo por aqui e, na verdade, os egípcios amam os judeus, Mané tem certeza. Mané queria ter ficado no Egito, passar as tardes de sábado no delta do Rio Nilo, dar um esticada até Gize e descansar à sombra de Queops, Quefren e Miquerinos, fazer um afago na esfinge. Tanto que anos atrás, quando Samira fez um curso de tatuagem e precisava de uma pele pra treinar, Mané concordou em fornecer um pedacinho do seu braço. E o que vc quer tatuar paiê? Tatua isso aqui, Mané respondeu. Em hebraico? Sim, hebraico! E o que está escrito em hebraico? Está escrito: totseret mitsraim, made in egypt, feito no Egito. Genial, pai, disse Samira. E pôs as mãos à obra.13/9/21
Pela manhã Mané ligou pra mãe pra ir tomar a terceira dose. Ela perguntou se dava pra levar uma amiga dela e o marido que também eram elegíveis e Mané disse, claro que sim. Mané saiu de casa e foi até a da mãe. Do MASP ele ligou e falou que podiam descer. Com todos embarcados Mané fez o check list de documentos e partiram para o drivethru do clube paulistano que fica lá perto. Enquanto dirigia e se divertia com a conversa dos velhinhos Mané se deu conta que, contando com ele, viajavam ali naquele carro quase 350 anos de vida. Que responsabilidade, hein?13/9/21
Mané está numa excursão pelo deserto do Sinai. O ano é 1976 e o grupo acaba de descer do local onde Moisés recebeu os dez mandamentos depois de visitar o que restou da sarça ardente que está conservada numa cúpula de vidro, acredite se quiser. Estão num caminhão adaptado para carregar gente e o guia está lá na frente gritando as instruções sobre a próxima atividade. Eles vão almoçar comida típica numa aldeia beduína onde as pessoas só falam árabe e muito pouco de inglês. O guia pede que o grupo de jovens seja respeitoso, que não façam peraltices e que se comportem como uma visita pouco íntima. Nada de se afastar do grupo e ficar de olho nos dois seguranças que viajavam com eles para qualquer eventualidade. Tenso, mas o grupo de jovens não estava nem aí e o almoço, pão pita e schwarma preparados em pedras quentes, transcorreu de forma tranquila. Súbito, escuta-se uma comoção ali adiante, perto de uns pequenos rochedos. Todos, liderados pelos dois seguranças armados de metralhadoras UZI, correm na direção de onde vieram os gritos. Atrás das pedras eles se deparam com dois membros do grupo, uma menina carioca, loira e gordinha e um uruguaio que era o “enfant terrible” do grupo, sendo ameaçados por um beduíno armado com uma daquelas adagas árabes curvas. Num cercado, sete dromedários observavam a cena impassíveis. Tentando acalmar a situação os seguranças perguntaram o que acontecia e o beduíno injuriado contou que o uruguaio tinha lhe vendido a menina carioca e não queria entregar. Chamaram o chefe da aldeia e ele confirmou que o menino tinha concordado em vender a gordinha carioca em troca de sete dromedários, que tinha testemunhas e que só restava entregar a garota. A confusão só fazia aumentar, os beduínos não aceitavam a desculpa de que o rapaz era desmiolado e que tudo tinha sido um mal entendido. Os seguranças então nos orientaram a recuar devagar em direção ao caminhão enquanto eles nos davam cobertura, metralhadora em punho. Mané sugeriu que, ao invés de brigar, oferecessem dez dromedários para recomprar a menina mas mandaram-no calar a boca. Com todos no caminhão, o motorista deu a partida no motor e, sob gritos, ameaças e protestos dos beduínos, fugiram de lá em alta velocidade. Nas horas que se seguiram, houve uma assembleia para decidir o que fazer com o uruguaio. Choveram propostas. Alguns sugeriam enforcamento enquanto outros achavam melhor entregá-lo aos beduínos. Depois da reprimenda, mais relaxados e fora de perigo, houve uma discussão sobre o preço da venda, os sete dromedários, e Mané, oriundo daquelas paragens, argumentou que sete era um número muito alto, o dromedário é um bicho valorizado no Egito. A garota carioca começou a chorar, disse que não deviam brincar com aquilo, que todos tinham corrido risco de vida. Dias mais tarde, no Kibutz em Israel, Mané conversando com a carioca que estava bem mais relaxada, disse que o tal uruguaio era uma besta, que se a oferta do beduíno tivesse sido pra ele, Mané, teria pedido ao menos setenta dromedários e aí nenhum problema aconteceria porque quem iria aceitar pagar esse preço por ela? 11/9/21