sábado, 25 de setembro de 2021

Desde que Mané se conhece por gente elas sempre estiveram por perto. Quando a vida começou a melhorar um pouquinho uma delas vinha trabalhar duas vezes por semana, em consórcio com a tia, onde ia em outros dois dias, e com a avó, onde completava a semana. Seu nome era Quitéria e Mané lembra que ficava sentado ao seu lado enquanto passava uma pilha de roupas lavadas. Depois Mané lembra de uma garotinha, pouco mais velha que ele, Lenita, que chegou pela mão da mãe e foi deixada para morar e trabalhar na casa de Mané, que não lembra com que frequência voltava pra casa, se tinha descanso, fim de semana ou férias. Mané está falando da empregada doméstica, simplesmente empregada, “la bonne”, como era chamada em francês ou a auxiliar de serviços gerais, jeitinho que os politicamente corretos deram de chamar esta instituição que herdamos da escravidão. A razão pela qual a chamavam de “la bonne”, literalmente, “a boa”, na sua casa na infância, Mané não desconfia. O que Mané sabe é que sempre teve empregada em sua casa. Pretas, brancas, mulatas, loiras, morenas, gordas, magras, de olho azul, novinhas e maduras também. Quando Mané casou, vieram trabalhar primas ou filhas da empregada da mãe, das tias ou de conhecidas, nunca faltaram agenciadores ou mão de obra. Quando alguma pedia demissão ou era despedida, a família se mobilizava, em pouco tempo apareciam candidatas, mas sempre foi muito cansativa essa troca de bastão. Havia até quem se propusesse a trazer meninas do nordeste, sem manias ou exigências, para alocá-las em suas casas. Houve época que, na casa de Mané, tinha empregada, faxineira e babá, um exagero. Essas moças que trabalham em sua casa são donas da sua intimidade. Elas é que sabem se você usa meias furadas ou se não trocou de cueca naquele dia. Ela conhece seus hábitos alimentares, seus vícios e segredos. Sabe em qual gaveta você guarda o dinheiro e as joias. Os rastros estão todos ali nos caminhos onde ela limpa e arruma. Ela sabe o livro que você está lendo, o remédio que você está tomando e aquilo que você anda bebendo, se muito ou pouco. Ela sabe até das baganas que você largou. Aqui na casa de Mané tem, ou tinha, Mané não sabe bem, uma empregada que vem, ou vinha, todo dia. Eles nem precisam assim diariamente mas preferiram ter alguém para fazer o serviço e para não ter que deixar Milu sozinho o dia inteiro. Não fosse o cachorro, duas ou três vezes por semana seriam suficientes. No início da pandemia eles pediram para ela ficar em casa. Depois em junho, quando a coisa melhorou um pouco passou a vir duas vezes por semana e depois, quando começou a fase vermelho-hematoma, parou de vir de novo. Mês passado compareceu duas vezes, quando seu marido pôde acompanhá-la de carro na ida e na volta. Hoje em dia Mané só lembra que tem empregada na hora de pagar o salário e o esocial. “Quer que venha amanhã, dona Salma”? Só se o marido puder trazer, ninguém quer que ela se arrisque no transporte público e nem que traga um vírus pra casa, Anuar e Samira não estão vacinados. A pandemia nos levou para o ápice da estranheza dessa relação tão estranha patrões/domésticas. Agora temos empregada, só que não. 18/04/21 De meados da década de 1960, até o início da de 1970, Mané percorreu esse caminho diariamente, da sua casa até a escola. Consistia em sair da Av. Rio Branco e descer a Duque de Caxias. Depois da Rodoviária quebrava-se à direita na estação Julio Prestes, percorria-se toda a extensão daquele prédio lúgubre onde ficava o DOPS e logo, virando a esquerda, se chegava à entrada do Jardim da Luz e da correspondente Estação, onde hoje fica o Museu da Língua Portuguesa. Era ali que Sara deixava Mané e Farida seguirem sozinhos com a recomendação de que esta segurasse o irmão pela mão para atravessar a rua. Logo que Sara virava as costas, Farida punha a mão na cintura da saia azul plissada e a dobrava várias vezes deixando um palmo de coxa acima do joelho à mostra, operação que Mané demorou muito tempo para entender. Daí percorriam a Rua Prates inteira até chegar ao Colégio Renascença. Nos dias de chuva ou ameaça, isso tudo era feito de bonde, programa que Mané apreciava mais. Neste sábado Mané acordou disposto e convidou Anuar a percorrer os caminhos da sua infância. Pegaram o carro e foram até os Campos Eliseos onde procuraram um estacionamento para deixar o carro e partiram para uma aventura pelo passado. A poucos metros do estacionamento Mané começou a achar que o clima estava estranho. A Praça Princesa Isabel, onde fica o monumento equestre a Duque de Caxias, está tomada por moradores de rua e viciados. A fauna se espalha por toda a avenida até a estação Júlio Prestes onde essa população se torna mais esparsa mas ainda pontua por todo caminho até a estação da Luz. Mané ficou com medo, pegou Anuar pelo braço, voltaram para o carro e Mané mostrou o caminho que fazia de dentro do carro com os vidros bem fechados. Foi muito frustrante e depois de passear um pouco pelo Bom Retiro, que se parece cada vez mais com a Liberdade, tomaram o caminho de volta para o presente com Mané imerso em pensamentos sombrios sobre seu passado que deixou de existir e sobre o futuro que se mostra incerto. 17/04/21

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