sábado, 25 de setembro de 2021
Mané tem um despertador interno. Ele funciona entre seis e seis e meia da manhã, invariavelmente, não importa se dia útil ou inútil. Até o momento em que a família acorda, são umas duas horas de paz quando Mané pode fazer suas coisas sem as demandas caseiras que, durante a pandemia, se tornaram constantes. Cachorro vem, senta e fica olhando com aqueles olhos que dizem tudo e pronto, cadê que Mané consegue lembrar a senha para enviar um Pix? Mesma coisa com Anuar que é o segundo a acordar e já chega relatando problemas de mau funcionamento do smartphone ou reclamar de alguma coisa que a auxiliar de serviços gerais tenha tirado do lugar. Samira sabe-se lá o que anda fazendo, já não mora mais aqui, mas, mesmo assim, ela só trabalha à tarde, nunca acorda antes do meio-dia. Já Salma é um caso à parte. Ela mantém um despertador para acordá-la entre oito e oito e trinta. Desperta sempre reclamando que ainda é madrugada, porque ainda não fizeram café, qual a razão que todos têm para estar acordados a essa hora e, afinal, que dia é hoje? O despertador de Salma é um caso à parte. Nesses trinta, quase quarenta anos que dividem a cama, diversos modelos já passaram pelo criado mudo dela. Os primeiros eram aqueles com os números verdes ou vermelhos, dos quais nunca gostou, dizia que dava uma má impressão quando por alguma razão abria os olhos no meio da noite e via aquela luz mortiça rondando. Do vermelho ela tinha medo, vai entender. Aquele redondo de dar corda, Mané não se lembra de ter visto ali, menos mal porque tinham um barulho estridente que podia até provocar um infarto. Depois vieram aqueles de fundo cinza e caracteres pretos, mormente de fabricação chinesa, com os quais Salma não sente mal estar, mas que são impossíveis de acertar. Muitas vezes, em plena madrugada, aquela coisa começava a apitar e todos acordavam sobressaltados para Salma descobrir que tinha colocado a hora errada no despertador. Mané praguejava pela interrupção dos sonhos, levantava para fazer um xixi e tirava o despertador do quarto. Isso quando estava calmo. Em alguns acessos de fúria, Mané chegou a atirar travesseiros no maldito, que se estatelava no chão e no dia seguinte era substituído por um pior. Da última vez Salma comprou um despertador que fala. Ao invés de apitar, uma voz feminina com sotaque chinês anuncia a hora e informa que está na hora de acordar. Samira acertou o horário de forma que até agora não houve sobressaltos noturnos. De qualquer forma Mané está pensando em quebrar esse relógio também porque está ficando irritado com aquela voz que anuncia: Oto holas tlinta minutos, despeltal, ah, cuidado, não se pode escrever assim hoje em dia sob pena de causar um incidente diplomático, mas, pelo menos, o criado não é mais mudo. 06/07/21
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