sábado, 22 de fevereiro de 2020

Na infância de Mané, a vinda da sua família expulsa do Egito para o Brasil, era assunto que permeava as conversas ao mesmo tempo que ninguém se aprofundava pra valer no tema. Falava-se superficialmente de como era a vida, da extensa parentada, dos amigos, dos estudos, dos poucos problemas, das férias, enfim. A curiosidade de Mané cresceu junto com ele, e, às vezes, cercava os pais e a avó com perguntas e estes nunca contaram mais do que os grandes contornos da aventura, os preparativos, a consecução da nova nacionalidade, o navio, a estadia na Itália, parecia uma epopéia distante e fantasiosa. Certa vez Mané falou pra sua mãe que queria saber das miudezas, dos sentimentos, os preparativos, do dia da partida. Sara lhe contou que acordaram naquele dia e tomaram o desjejum que ela preparou, pão, leite, queijo para o marido e para a irmã Farida e uma mamadeira caprichada pra Mané. Lembrava de ter feito as últimas arrumações e o pai, acertos de última hora. Com carro que os levaria ao porto já carregado com as malas, não houve despedidas de vizinhos nem de familiares, grande parte destes já estava no Brasil. Ela disse que sobrou comida na geladeira e tapetes, móveis, objetos e tralhas foram abandonados dentro da casa. No caminho para o porto divisaram lugares e paisagens que não sabiam se iam rever, a escola, o clube, a sinagoga, o açougue, o boteco da esquina. Depois dos trâmites alfandegários e revistas, subiram pela ponte de embarque e quando o navio se preparava para partir, sua mãe percebeu que estava com a chave de casa na mão. Olhou para o molho, procurou alguém pra entregar e sem saber o que fazer, num impulso, atirou tudo no mar. Mané contou essa história para uma repórter que o entrevistava por ocasião do lançamento de livro e quando finalizava o episódio com o dramático gesto da mãe atirando a chave ao mar, olhou pra moça e viu que ela estava com os olhos marejados e só então percebeu como foi triste esse acontecimento. Mané arrependeu-se de ter insistido em saber dos detalhes, entendeu que certas tristezas tem que ser esquecidas, caso contrário elas passam a fazer parte de você. Foi isso que seus pais e avós tentaram fazer. Não conseguiram.22/02/2020

Nenhum comentário: