domingo, 28 de junho de 2020

Mané prestou vestibular em 1974 e precisa confessar que ninguém, nem mesmo ele, nem ninguém da sua família acreditava que iria entrar na faculdade. Precisa confessar também que foi um péssimo aluno, na verdade um aluno horrível e isso fez com que no dia em que saíram os resultados dos exames e finalmente se verificou que ele tinha passado, seu pai quando chegou em casa, tenha estranhado o ambiente de festa. O pai chega e pergunta o que aconteceu e a mãe retruca: você não viu, ele entrou na faculdade, a lista saiu no jornal. O pai ficou cabisbaixo e, como fazia todo dia foi pro quarto e não falou mais nada...passou! Vinte anos depois, em 1994, Mané estava com o pai na maternidade, diante daquela vitrine onde ficam os bebes, admirando Anuar que acabava de nascer. De repente seu pai diz, lembra filho, naquele dia que você entrou na faculdade, que eu cheguei em casa e estranhei a festa toda, sabe o que aconteceu? Eu sabia que ia sair o resultado e achava que você não ia entrar então eu não comprei o jornal e fiquei o dia todo pensando num jeito de te consolar. Na verdade não acreditei em você, tinha certeza que você não ia entrar. Ficamos os dois em silêncio observando Anuar por alguns momentos e então ele disse: Parabéns filho! Ao que Mané respondeu: Obrigado, o menino é bem bonitinho né? E ele respondeu: o menino é bem bonito, mas eu estou te dando os parabéns por ter entrado na faculdade, desculpe a demora! O pai de Mané foi uma pessoa que passou a vida em silêncio. Mané não lembra dele metido em nenhuma confusão, nenhuma polêmica, pouquíssimas e breves discussões, sempre em voz baixa. No dia a dia, nas coisas da vida ele parecia sempre meio deslocado, fazia as coisas discretamente, sempre tomando cuidado para não atrapalhar os outros. Só tinha um jeito de vê-lo à vontade: diante de um livro ou na sinagoga. Podiam colocar uma mesa cheia de delícias na frente dele, ele só pegava uma colherzinha disso e um pedacinho daquilo. O pai de Mané trabalhou até o dia em que teve um AVC aos 83. Mané tem certeza que não foi o filho idealizado mas o seu consolo é que aprendeu, depois de ser pai também, que ninguém tem os filhos que idealiza, simplesmente gostamos dos filhos do jeito que eles são. Ele também não foi o pai que Mané idealizava. Na verdade demorou pra entender, mas ele foi um pai muito melhor do que a expectativa. Seu pai era uma pessoa que demorava muito pra demonstrar seus sentimentos e se fazer entender, não demorou 20 anos para o parabenizar por ter entrado na faculdade? Além da leitura, seu pai gostava muito da sua irmã, Mané acredita que muito mais do que gostava dele. Mas disso ele não guarda mágoa pois a irmã de Mané sempre foi bem melhor do que ele. O pai de Mané não foi um homem rico em termos materiais, mas ele lhe deixou de herança o amor pela literatura e isso já foi mais do que suficiente. No túmulo de Aslan tem um frase de Alberto Mangel, que é a seguinte: “Adoro olhar para minhas prateleiras lotadas, cheias de nomes mais ou menos familiares. Delicio-me ao saber que estou cercado por uma espécie de inventário da minha vida, com indicações do meu futuro. Gosto de descobrir, em volumes quase esquecidos, traços do leitor que já fui.” 13/06/2020

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