sexta-feira, 1 de janeiro de 2021
A galinha chegava batendo as asas, pendurada pelas pernas. A avó a deixava dentro da pia, os pés amarrados, enquanto, calmamente, afiava um facão. Depois de testar o fio, dirigia-se para a vítima, arrancava a penugem do pescoço e cortava a garganta da coitada, que ficava se debatendo, espargindo sangue até morrer. Quando o corpo finalmente ficava inerte, era a hora de depenar o bicho, queimar o que restava das penas, e já estava dado um grande passo para a preparação do jantar de shabat. Não que fosse a melhor atividade para um garoto, mas Mané se lembra ter assistido esse ritual por anos, pelo menos uma vez por semana. Durante as tardes da sua infância, depois da escola, ele fazia companhia para a sua avó. E ela para ele. Depois do almoço eles se sentavam no sofá quando ela costumava tomar uma xícara de café e fumar. Pegava o maço de Minister e escolhia um cigarro, acendendo-o metodicamente, em seguida, dava uma grande baforada, o que parecia lhe proporcionar muito prazer e olhava para Mané sorridente recomendando-lhe nunca fumar. Dizia que fazia mal. Habitualmente saíam para um pequeno passeio pelas redondezas para comprar alguma coisa que estivesse faltando. Numa vendinha que tinha lá perto, o atendente português sempre perguntava como estávamos, mas, a avó respondia apenas com um aceno porque não conseguia entender o sotaque enviesado. O dono da venda tratava-o como sendo o "neto da senhora francesa" e, para dar sustento a esta mentira, sempre que passavam ali, enquanto o esperavam embrulhar uma bengala, uma meia dúzia de ovos ou um tubo de margarina, Mané disparava a falar francês com sua avó, que achava engraçado e perguntava em árabe se ele queria uma bala paulistinha. Sem cerimônia, enfiava a mão no pote que se encontrava em cima do balcão enchendo-a e em seguida as depositava na mão de Mané. O passeio continuava com uma ida à farmácia porque, depois do enfarte, passou a ter que tomar remédios diariamente. Mané achava que era uma mulher importante por ter voltado pra casa de ambulância e, quando chegou, foi levada para cima em uma maca, todos os filhos presentes, além de um médico e uma enfermeira. Na recuperação costumavam dar pequenos passeios lá na Praça Princesa Isabel, em volta do Duque de Caxias, porque ela precisava andar. Era uma caminhada vagarosa e, no começo, quando ainda se sentia insegura, segurava forte a mão de Mané que adorava ampara-la, apesar de duvidar que pudesse suportar seu peso em caso de necessidade. Era, naqueles tempos, uma mulher forte e gorda. E ele, por ironia, um menino mirrado. Nas tertúlias vespertinas ele assistia à avó produzir diversas variedades de comida. Menenas, sambuceks, repolhos e abobrinhas recheadas, kibes, esfihas, moloheia e muitas outras comidas árabes, cujos odores e sabores permanecem grudados na memória. Ainda durante a tarde, depois do passeio, ela deitava na cama por alguns minutos e ficava lendo uma revista em francês chamada "Confidences", que trazia reportagens femininas, fotonovelas e quadrinhos, que Mané tentava ler sem sucesso. Depois da sesta, ela costumava tomar banho e, nessa hora, para não se sentir muito abandonado, Mané ficava sentado na porta do banheiro escutando a água cair. Saía embrulhada num roupão, corria para dar uma olhada numa torta que estivesse assando no forno, e ralhava por ele ter ficado sentado no chão. A nona, como ele a chamava, tinha algumas esquisitices. Uma delas, que nunca ficou bem explicada, era o fato de que era proibido apontar o dedo para a lua. Quando isso acontecia ela pegava a mão de Mané e lhe aplicava uma cusparada. Era para evitar o nascimento de verrugas, dizia. Apontar o dedo para a lua faz crescer verrugas na mão. Cuspir nela previne. Mané ficava com nojo e corria para lavar a mão, mas nunca perdia a oportunidade de apontar para a lua quando estava perto dela. Só para provocar. Ela o deixava assistir filmes de terror e depois lhe contava histórias para que se esquecesse do medo. Consolou-o inúmeras vezes das surras que levava da mãe e protegeu-o de levar outras tantas e certo dia, deixou-o dar uma baforada num cigarro só para que visse como era ruim. Tudo isso Mané lembrou há tempos quando ela faria 117 anos. 14/12/2020
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