sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Era um final de ano de trinta e tantos anos atrás, quando Mané trabalhava num banco no centro da cidade. Através do janelão de vidro ele observava o movimento da cidade, protegido pelo frescor do ar condicionado. Lá embaixo, no Viaduto do Chá, os ônibus arrastavam-se de um lado para o outro enquanto a multidão zanzava resfolegante, suando ao sol do verão paulistano. Na escrivaninha, papéis esperavam para ser preenchidos e maquinas ansiavam por ter suas teclas apertadas enquanto ele, em devaneios, sonhava com as férias próximas, imaginando uma estrada que o levasse para uma praia onde valesse a pena sentir calor. Súbito, um clamor vindo das ruas. Uma multidão, postada na Praça do Patriarca, gesticula e acena todos voltados para o prédio da esquina onde funcionava o Othon Hotel. Mané vê no parapeito de uma das janelas um homem que ameaça se jogar lá do alto. A cidade parou. Um casal de namorados que se beijava interrompe aquele momento de prazer para prestar atenção à desgraça que se avizinha. O rapaz que comia uma coxinha no bar da esquina ficou de boca cheia, olhando para cima. O motoboy que passava apressado encostou a moto na Rua Libero Badaró e, ainda montado, esperou para assistir ao desfecho. Compromissos foram adiados, reuniões interrompidas. Os colegas de trabalho foram chegando e se acotovelando na janela privilegiada de Mané para não perder os lances do drama que se desenrolava a poucos metros dos seus narizes. A secretária baixinha logo começou a chorar. A assistente chefe, uma moça peituda e bonita, falou com ar solene: "aquele homem vai cair". Pareciam todos mesmerizados pelo espetáculo, poder-se-ia dizer que até gostavam daquela agitação que interrompeu o trabalho, os caminhos e até a própria vida. Para não perder o hábito, da sua cadeira Mané ficou observando os prédios vizinhos que, de repente, tinham ganhado vida. Não se conseguia enxergar nenhum rosto definido, mas, entre sombras, podia se enxergar o desespero e a aflição. Carros paravam no meio da faixa de rolamento, motoristas saíam dos veículos. Ninguém buzinava, todos olhavam para cima à espera de algo. Na esquina da Rua São Bento alguns moleques, animados com o agito, faziam apostas tentando adivinhar onde cairia o corpo. Alguns mais sádicos gritavam: "pula, pula, pula". Nesse momento chegaram os bombeiros fazendo barulho com as suas sirenes e espalhando luzes vermelhas pelo ar. Abrindo espaço à força foram se chegando para o sopé do edifício, tratando de armar uma daquelas redes de contenção. Os meninos da São Bento passaram a gritar para que o sujeito pulasse para o outro lado: "ô super homem, voa pra cá, abre as tuas asas”. Precavidos, os bombeiros estenderam a rede por toda a margem do prédio, tentando adivinhar onde se estatelaria o corpo. Lá na sua marquise o suicida observava a tudo impassível. Parecia calmo e tranqüilo, talvez nem imaginasse quão poderoso era, tinha paralisado a cidade. Nesse entremeio Mané foi chamado ao telefone por sua mãe que, aflita, assistia a tudo pela televisão. Depois de se certificar que ele estava em segurança, desligou às pressas justo na hora em que aparecia na janela, ao lado do candidato a Ícaro, um soldado da guarnição dos bombeiros. O suicida, assustado, recuou um passo se postando mais ainda à beirada. O bombeiro fala algo para o homem. O homem responde. O bombeiro estende a mão. O homem olha para baixo. Os meninos gritam: "pula, pula". A secretária baixinha começa a passar mal, mas ninguém liga pra ela Iprovisam um leque para lhe proporcionar mais ar, enquanto não despregam o olho da cena. Nesse momento, para alívio de uns e decepção de outros, a mão do bombeiro segura a mão do homem. O bombeiro puxa o homem para dentro e no segundo seguinte não se vê mais nada, apenas escuta-se um "óóóóóó´h", que ecoa pelas ruas do centro de São Paulo. Ainda na janela, Mané vê o motoboy dar a partida e sair com um ronco alto. Pouco a pouco os motoristas voltam para seus carros e, devagar, a cidade se põe de novo em movimento. No escritório, finalmente deram socorro para a moça que estrebuchava. Pelo meio da tarde, na hora do café, o assunto já estava esquecido e as férias voltaram a povoar os pensamentos de Mané. 26/11/2020

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