quarta-feira, 29 de novembro de 2006

Um dia na vida - primeiro fragmento - 5:55

Às 5:55hs o despertador berra ensandecido no meu ouvido. Acordo de uma vez e dou um pulo tentando ver de onde vem o ataque. No caminho para o botão que desliga o alarme eu derrubo a garrafa de água que levo todas as noites para a cama e atiro meus óculos para longe, para um local não determinado. Enquanto amaldiçôo até a quinta geração da faxineira que esteve ontem em casa e resolveu tirar o pó do botão do volume do alarme do meu despertador e com isso o deixou posicionado no máximo deixando-me estuporado em plena madrugada, tento avaliar os estragos que a água vai fazer na pilha de livros que deixo debaixo do meu criado-mudo e fico imaginando como vou fazer para encontrar os meus óculos, sem os quais não sou ninguém, na completa escuridão em que está mergulhada a alcova segundos antes tranqüila e acolhedora e onde agora escuto minha esposa resmungar sem parar sobre o barulho que faço todo dia para acordar e “será que não da pra fazer as coisas em silencio?”. Encontro finalmente o tal botão e desligo o alarme gritante enquanto dou uma olhada no relógio para ver se já não estou atrasado e me ponho a rastejar pelo chão do quarto escuro, tateando em busca dos óculos perdidos. Lembro que deixei ali no cantinho, ao lado das meias de inverno uma lanterna para ser usada em caso de necessidade e imagino que aquele é um caso de necessidade. Resolvo então primeiro ir acordar minha filha, a quem preciso levar até o ponto de ônibus da escola daqui a meia hora. Para não fazer barulho saio de quatro mesmo e vou até o seu quarto e, já de pé, me ponho a abrir as persianas e a dizer repetidamente “bom dia, vâmo lá que tá na hora”, até ouvir os seus grunhidos característicos que me deixam com a certeza de que está acordada. Pelo menos esta adolescente não me dá nenhum trabalho para sair da cama. Volto tateando, pois, sem os óculos eu corro o risco de tropeçar nas inúmeras armadilhas do quarto dela. Por milagre, consigo sair ileso. Novamente ao lado da minha cama, me abaixo para tentar achar os óculos e escuto minha mulher: “já voltou da academia? Me deixa dormir mais um pouco”! Preferi, então, não responder para não causar um problema maior logo cedo. Ainda tateando, espantado, consegui pôr a mão na tal lanterna que tinha guardado ali há mais de três anos e mais espantado ainda fiquei quando a mesma projetou seu facho diretamente para o espelho da parede em frente à cama deixando o quarto completamente iluminado o que ocasionou um novo protesto da minha esposa que cessou imediatamente quando apontei a luz para os recônditos inferiores da alcova. Nem seis minutos tinham se passado desde o momento em que eu tinha acordado de supetão com aquela gritaria do alarme do despertador, de eu ter derrubado água nos livros arquivados no criado-mudo, de ter quase discutido três vezes com a minha mulher, ter acordado minha filha que agora já se levantava para ir ao banheiro e, finalmente, ter encontrado a lanterna que ainda funcionava e que ajudava, naquele precioso segundo, a encontrar os meus óculos que pus com pressa disparando para o banheiro, pois o barulho da descarga da minha filha me fez lembrar que eu ainda não tinha feito xixi.
Na cozinha encontrei a menina que já tomava uma cumbuca de leite lotada de Nescau e polvilhada de alguns cereais daqueles de caixinha. Enquanto eu me abaixava para pegar os jornais, sim, porque sou indeciso e por isso assino os dois, o cachorro do vizinho latiu e fez que ia avançar em mim. Então me levantei, grunhi bom dia pra moça que ia com o cão e bati a porta com força para deixar claro que eu estava mal humorado e fiquei lendo as manchetes enquanto comia uma fatia de pão de forma light, tostado, com uma lâmina de margarina também light e uma fatia de queijo. De quebra, terminei o leite que a minha filha abandonara ao sair e fui ler o que desse do jornal no banheiro. Como saberia que não teria tempo de ler tudo, dei mais atenção ao caderno internacional que logo rejeitei. Depois li que o meu time era o virtual campeão de futebol e ainda folheei a página de cinema. Tentei começar a ler a crônica, mas achei que não ia dar tempo então, levantei, lavei as mãos e o rosto, escovei os dentes, os cabelos e o cavanhaque, tirei a camiseta de dormir e passei desodorante, fui até a sala onde tirei o short de dormir e sentei no sofá onde pensei que aquele dia já estava me parecendo muito comprido. Eram 6:25hs!
Peguei a meia branca que já estava separada, calcei cada um dos pés e fiz o mesmo com o tênis novo que tinha comprado no fim de semana. Achei que estava bastante confortável, mas desconfiei um pouco do aperto que sentia no peito do pé. Agachado, fiquei tentando soltar um pouco os cordões, mas depois que fiz isso achei que ficou meio solto e o tênis saía do meu pé, então, resolvi deixar apertado mesmo. Pus o short e a camiseta e também vesti o agasalho que coloco todo dia que considerei estar meio fedido e pensei em colocá-lo para lavar quando voltasse, se lembrasse. Às 6:30hs, depois de colocar um dinheiro no bolso, sentei na cozinha e fiquei sapeando as manchetes do segundo jornal que não dava destaque para os mesmos assuntos do primeiro. Internamente este jornal trazia uma pequena notícia sobre Israel, ao contrário do outro que não trazia nada, além do que, neste aqui, ressaltava-se que o meu time ainda poderia perder o campeonato. Mas as crônicas do segundo me pareceram mais interessantes que as do outro. Nada li, pois neste momento chegou a minha filha que me olhava com uma cara meio sorridente, meio consternada, instando-me a levantar, coisa que fiz prontamente. Enquanto perguntava se ela tinha gostado do meu tênis novo, peguei minha toalha de secar o suor, a chave do carro e a chave de casa e depois de apagar a luz da cozinha e trancar o apartamento, coloquei-me na frente do elevador que já vinha subindo e apertei o botão e chamada. Eram 6:35hs. Enquanto escutávamos os rangidos das máquinas elevatórias ela me disse: “porque você comprou um tênis laranja?”
continua...

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