quarta-feira, 29 de novembro de 2006

Um dia na vida - segundo fragmento - 6:37

Enquanto segurava a porta do elevador para que minha filha entrasse, fiz questão de frisar que o meu tênis não era laranja, mas, sim, que tinha alguns detalhes naquela cor, que serviam, por exemplo, para que os ocupantes de um automóvel enxergassem de longe caso eu estivesse fazendo uma caminhada noturna, ao que ela respondeu que nunca tinha me visto fazer caminhadas noturnas. Dentro da cabine que zumbia na sua rota descendente, pensei que, àquela hora da manhã não era um bom momento para se iniciar uma discussão sobre aparência de tênis, principalmente no caso dela, que andava com um exemplar andrajoso e carcomido pelo tempo havia anos. Ela vinha recusando sistematicamente minha oferta de aquisição de um novo par alegando que aquele se encaixava perfeitamente nos seus pés e que neste momento da vida ela tinha mais com que se preocupar do que um tênis novo.
Ao abrir a porta no segundo sub solo da garagem topamos com Nani, Luna e Hana, as três cachorras da vizinha que se puseram a latir e nos fazer festa, já que somos íntimos, menos a menor delas que é um poodle micro, na minha opinião, um pouco neurótico, pois passa pela gente e fica rosnando baixinho até que considere que estamos a uma distância segura.
Destarte, seguimos, eu e minha filha, até o box onde guardo o carro e, enquanto eu ligava o motor, a menina mudava as estações do radio até encontrar uma do seu agrado. Fiz a manobra com cuidado e levei o carro até a rampa de acesso ao primeiro sub solo, onde apertei o botão do controle remoto do portão da garagem e fiquei aguardando que o mesmo abrisse entre diversos chiados e rangidos. Atrás de mim encostou abruptamente outro carro que também ia sair.
Às 6:40hs eu estava do lado de fora do prédio tentando enxergar, através de uma caçamba cheia de entulho estacionada quase na entrada, se vinha algum carro na direção contrária. Minha filha esticou o pescoço e disse que era noite ainda, que estava morrendo de sono e que se viesse algum carro viria de faróis acesos e que, então, eu podia ir, pois ela não via luz nenhuma. Eu disse que, na verdade, já estava amanhecendo e que alguns carros poderiam estar trafegando com os faróis apagados, como eu, por exemplo, mas, ela insistiu que não vinha carro algum e então eu entrei à esquerda, na faixa de rodagem e vi o carro que estava atrás de mim fazer o mesmo, só que para o lado oposto. Saiu cantando os pneus mostrando estar com pressa e, provavelmente, minha hesitação o tinha atrasado ainda mais. Minha filha comentou que, “meu, o cara já está estressado a essa hora da manhã”, ao que eu dei de ombros e segui vagarosamente em direção ao meu destino, pensando que eu também estava estressado. Um pouco!
Eram 6:42hs e quando a música que tocava terminou entrou no ar o locutor informando sobre as desgraças que tinham ocorrido na cidade por conta do temporal de ontem à noite. Ele dizia que ainda havia pontos de alagamento nas marginais, enumerou todas as pontes cujos acessos estavam intransitáveis, aconselhou aos motoristas deixar o carro em casa ou, no mínimo, evitar aqueles lugares e, ainda, falou que na Radial Leste já havia dois quilômetros de congestionamento no sentido centro. Disse que, apesar da chuvarada de ontem, o dia seria de sol, a temperatura amena, mas transitar pela cidade seria um inferno. Continuou dizendo que não ligava a mínima para aquilo, pois ia ficar conosco até as 10 da manhã e, até lá, tudo estaria resolvido e, além do mais, “quem se importa com o trânsito pesado, com os assaltos, os políticos, a poluição, os alagamentos e todas as outras mazelas da cidade, se nós podemos ficar aqui juntinhos curtindo o som de Ozzy Osbourne?” Dito isto, os alto-falantes do carro despejaram os acordes de um rock metal-pesado e eu segui em frente, vendo os donos de bares abrindo seus estabelecimentos, as empregadas chegando nas casas de seus patrões para trabalhar e os patrões passeando pelas ruas com seus cachorros, esperando pacientemente enquanto estes se esforçavam para defecar e depois abaixando-se para recolher a merda deles em sacos plásticos. Vi também os pedreiros iniciando seu turno de trabalho nas construções, ônibus saindo dos pontos finais, gente entrando e saindo do metrô e uma infinidade de motoristas de táxi conversando nos pontos à espera dos primeiros clientes. Eram 6:46hs quando chegamos ao local onde deixo minha filha para que seja apanhada pelo ônibus fretado que a leva para a escola. Ela teve um pequeno chilique quando percebeu que o mesmo ainda não tinha chegado. Talvez o motorista estivesse preso em algum engarrafamento e, sendo assim, estacionei na frente do ajuntamento de alunos que já se formava à espera da condução, pois, quando o ônibus não está lá, minha filha gosta de ficar aconchegada dentro do carro e não do lado de fora onde, além de ter de ficar de pé, expõem-se aos rigores do clima. Fazia frio e enquanto esperávamos fiquei observando os colegas dela, com suas roupas rasgadas no joelho e na bunda, barrigas à mostra, tênis destroçados, barbas e cabelos desgrenhados e havaianas puídas. Um grupo estranho! Noutra situação, talvez todos fossem detidos pela polícia para averiguações, no entanto, estávamos diante dos filhos da nata da sociedade paulistana. Isso passa, refleti, deixando meus pensamentos conservadores pra lá. Vi pelo retrovisor que o ônibus estava chegando e cutuquei a garota que ressonava. Não pedi um beijo, tampouco ela se ofereceu para me dar um. Eram 6:55hs quando ela disse, “tchau pai”, e eu me dei conta que iria me atrasar na academia, por isso dei partida no motor, ativei o pisca-pisca e, enquanto esperava uma brecha para sair, vi pelo espelhinho, o corpo esguio dela dirigindo-se depressa para o ônibus. Eu já estava quase virando a esquina quando a vi subir os degraus.

Continua...

Um comentário:

Anônimo disse...

Adorei mano!!!!!!!! Você é DDDD +++++,
Parabéns pela iniciativa!!!!
Um beijão,
Nanda