domingo, 28 de janeiro de 2007

Um dia na vida - nono fragmento - 10:21

Enquanto deslizava pelas outrora tranqüilas ruas do bairro de Vila Madalena deleitava-me a escutar atenciosamente os sábios conselhos sobre economia de um sujeito chamado Mauro Halfeld (não sei se é assim que escreve) que, com voz calma e aveludada, aconselhava a todos os “brasileiros que tinham passado o ano de 2006 afundados num lamaçal de dívidas”, que tratassem de usar o que tivesse sobrado do décimo terceiro salário para tentar quitá-las no todo ou em parte, ou, se isto fosse impossível, que tentassem trocar estas dívidas mais caras por outras mais baratas e aproveitava para explicar aos endividados em desespero quais eram as melhores opções que estes tinham à disposição no moderno e pujante mercado financeiro brasileiro. Eu estava dando graças aos céus que pelo menos deste mal eu não padecia quando posicionei o carro, às 10:23hs, no fim de uma ruazinha a partir da qual, virando à direita, eu já estaria na Heitor Penteado e dali, teoricamente, seguindo numa linha reta por meros seis quilômetros, depois de trafegar pelas Avenidas Doutor Arnaldo, Paulista, Bernardino de Campos e por um pedaço da Rua Vergueiro, eu logo chegaria ao escritório. Teoricamente, eu disse! Na prática fiquei parado uns bons minutos naquela ruazinha até conseguir entrar à direita na Heitor. Quando consegui, às 10:26hs, só o fiz para me posicionar numa extensa fila de veículos que se espraiavam até onde a vista alcançava. Uma profusão de luzes vermelhas acesas e escapamentos que soltavam aquela fumaça sufocante podiam ser vistas e sentidos impassíveis ao longo da avenida. Pensei em ficar nervoso e amaldiçoar a cidade, as pessoas e os carros, mas, ao invés disso, resolvi relaxar e aproveitar o tempo que ficaria parado no trânsito fazendo alguns telefonemas e, se ainda desse tempo, ler algum material que eu ia precisar para a reunião que teríamos na parte da tarde, isto se eu conseguisse chegar ao trabalho, já que eram 10:30hs e eu só tinha andado uma quadra desde a última vez que tinha olhado o relógio. Os carros começaram a rodar a passo de cágado na altura daquele esplendoroso prédio da Casa de Cultura de Israel, que parece sempre vazio, encima do Viaduto da Sumaré. Naquele ponto dava para ver que o trânsito estava totalmente parado, e que não havia nenhuma esperança de alívio. Logo depois de desligar o telefone, tive ímpetos de mudar de rumos, tentar sair da arapuca, mas, para onde olhava, só via carros parados e gente irritada e, assim sendo, resolvi ser fiel a meus princípios e procurei no banco de trás por uma revista que sempre levo para estas emergências e, entre diversas trocas de marchas, li duas reportagens.
Às 10:45hs cheguei no começo da Dr. Arnaldo e me vi encapsulado na passagem que dá acesso à Paulista. Na CBN informavam que “havia uma passeata de professores na Paulista se dirigindo para a Prefeitura no Viaduto do Chá e que a situação tinha se complicado por causa de um carro de som que tombara ao fazer uma curva interditando três pistas da Avenida. O trânsito estava sendo desviado para ruas laterais enquanto os bombeiros tentavam a remoção do veículo e dos feridos, mas, a maior parte do congestionamento era causada por motoristas curiosos que vinham em sentido contrário e que diminuíam a velocidade para ver as “cenas da tragédia”. Pelas informações, eu era um destes motoristas do sentido contrário e pensei que, se tivesse chance, com certeza iria diminuir a velocidade para ver as tais cenas. Depois de tanto tempo no carro, eu certamente merecia ver o que causava o transtorno. Não entendo como é que as pessoas não entendem que o ser humano é curioso, ainda mais quando se trata de observar a desgraça alheia. Eram 11:00hs quando me acerquei do local. Este também é o horário em que costumo comer uma frutinha e logo me lembrei dos pêssegos que tinha trazido de casa. Para tentar não perder nenhum detalhe, ajeitei o fone de ouvido para o caso do telefone tocar, e coloquei o saquinho de pêssegos ao meu lado para que ficassem à mão e, distraidamente, mordisquei um deles que se apresentou macio, levemente perfumado e corretamente agridoce, exatamente como um pêssego deve ser.
Passava apenas um carro por vez pelo estreito corredor entre o caminhão tombado e a calçada da avenida e eu já tinha comido dois pêssegos quando finalmente chegou a minha vez. No entanto, para minha surpresa, um marronzinho me fez sinal para parar e disse para eu dar uma marcha à ré e, acercando-se da janela, informou-me que eu teria que aguardar porque neste exato instante, iria ter início uma tentativa de içar o caminhão, já que todos os feridos tinham sido retirados e atendidos. Sem mais delongas, afastou-se altaneiro, como se tivesse acabado de cumprir sua missão. Parei no local indicado e, saindo do carro, passei a observar os fatos que atazanavam a vida da cidade naquele dia. Pensei em ligar para a CBN e perguntar se eles queriam que eu irradiasse os acontecimentos ao vivo, mas não demorou muito e eu me vi cercado por uma multidão de motoristas e transeuntes que se aboletavam ao meu lado, o que me deixou bastante contrariado. Sendo assim, voltei para dentro do carro, liguei ambos, motor e ar condicionado e fiquei, aí sim, prestando atenção às desastradas manobras do guincho dos bombeiros que tentou, não uma, nem duas, mas nove vezes, colocar o caminhão de pé. Eram 11:15hs quando a multidão se dispersou e eu pude, finalmente, me ver novamente em movimento.
Continua...

domingo, 21 de janeiro de 2007

Um dia na vida - oitavo fragmento 9:16

Minha mulher é um pouco distraída, mas apenas para as coisas que não têm importância. Ela é capaz de não saber aonde foram parar os óculos que estão na mão dela, mas não esquece que tem que levar os filhos ao dentista daqui a quatro meses, por exemplo. Disse isso porque, às vezes, essa distração me causa espécie e, como aconteceu há um minuto atrás, eu nada respondi quando ela me perguntou sobre o paradeiro dos seus óculos escuros e não o fiz por dois motivos: primeiro porque o dia estava meio encoberto e segundo porque o tal conjunto de duas lentes usado para compensar defeitos visuais montado em armação própria com duas hastes que se prendem às orelhas estava nas suas mãos e em poucos segundos ela perceberia, como de fato percebeu, e a minha informação se mostraria totalmente desnecessária.
A casa mergulhou num silêncio absoluto logo após a saída deles e eu pude me concentrar na desagradável tarefa de verificar os saldos bancários das minhas pessoas física e jurídica, fazer alguns pagamentos devidos, algumas transferências e outras atividades mal-cheirosas.
Às 9:20hs eu já tinha em mãos os extratos das duas contas da pessoa jurídica e logo percebi que não haveria dinheiro suficiente para fazer tudo o que precisava ser feito. Fiquei uns minutinhos analisando quais seriam as possibilidades de se obter os recursos necessários, analisei com mais demora o calendário e contei algumas vezes os dias que faltavam para o fim do mês, quantos dias faltavam para entrar aquele dinheiro mais polpudo e tentei lembrar como é que andavam as minhas relações com o gerente do banco. Às 9:30hs, cheguei à conclusão que algumas das obrigações poderiam ser adiadas, já que o fim do mês e o tal dinheiro ainda demorariam um pouco para chegar, mas, em compensação, lembrei que tinha acabado de renovar o seguro do carro e que eu e o gerente estávamos vivendo um bom momento. Assim sendo, resolvi deixar tudo pra lá e prometi para mim mesmo que iria resolver aquilo mais tarde e dediquei-me a responder alguns emails que tinham chegado durante a noite, enquanto eu dormia. Por volta das dez da noite de ontem, quando fechei minha caixa de entrada, eu tinha lido todas as mensagens que havia. Cheguei à conclusão que ninguém dormia pois quando abri a caixa de manhã, às 9:35hs, havia mais de 20 mensagens postadas durante a madrugada anteriore e mais algumas que haviam chegado agora pela manhã. A maioria delas versava sobre a organização de um jantar que aconteceria no fim do mês com os colegas com quem me formei no ginásio no longínquo ano de 1969. É engraçado ver um monte de marmanjos com mais de cinqüenta anos de repente transformados em meninos e meninas de quinze ou dezesseis anos. Eu estava bastante entretido com as mensagens, mas, às 9:50hs, me dei conta que também estava muito atrasado para ir trabalhar e resolvi ir tomar banho, o que fiz com enorme prazer, pois eu ainda recendia aos suores da academia. Enquanto abria o chuveiro escutei tocar o celular e fiquei em dúvida se ia pelado até a sala atender ou se o deixava a tocar. Se fosse pelado, corria o risco de dar de cara com a empregada que já estava arrumando a casa, atividade que ela começa a fazer no minuto em que eu levanto do computador, seja isso às dez da manhã ou ao meio-dia, pouco importa. Diante deste risco, resolvi ignorar o telefone, que tocou um monte de vezes, e deixei as águas tépidas do chuveiro molharem o meu corpo antes de começar a escovar metodicamente os meus dentes, coisa que fiz depois de passar fio dental. Depois, ensaboei o corpo vigorosamente sentindo um enorme bem estar enquanto toda a imundície escorria pelo ralo. Uma generosa porção de shampoo tratou da depuração da barba e do cabelo, de forma que às 10:05hs, eu já me encontrava limpo e seco, pronto para me vestir e sair para o meu dia de trabalho. Fiquei alguns segundos parados em frente ao armário sem conseguir decidir que roupa vestir e senti uma certa saudade dos tempos em que eu trabalhava de terno. Era só pegar o terno do dia, uma camisa branca, a gravata correspondente ao terno e pronto. Então, lancei mão da mesma calça que tinha usado ontem e anteontem, escolhi uma camisa qualquer e comecei a me vestir com rapidez. O resultado é que me vi com uma calça verde e uma camisa amarela e achei o resultado tão ridículo que voltei para o armário e acabei pegando uma outra camisa, desta vez bege. Às 10:15hs eu pedi para a nossa ajudante lavar dois pêssegos que eu comeria durante a tarde, coisa que ela fez com presteza, entregando-os devidamente embrulhados em guardanapos e acondicionados num saco plástico. Antes de desligar o computador ainda tive tempo de responder mais duas mensagens e atender a um telefonema da minha mãe que estava preocupada porque eu não tinha atendido às três últimas ligações que ela fizera. Tinha ainda mais uma ligação não atendida do escritório, mas, como eu já estava a caminho, resolvi não responder e ver do que se tratava, ao vivo, quando lá chegasse. Às 10:20hs eu estava de novo no sub solo dando a partida no carro e, em poucos segundos, depois das manobras de praxe, eu me impacientava outra vez na frente do portão da garagem, que estrebuchava e guinchava para abrir, enquanto ao mesmo tempo, eu tentava escolher no rádio entre os apresentadores pedantes da CBN ou uma programação classic-rock da Kiss/FM.
Continua...

domingo, 14 de janeiro de 2007

Um dia na vida - sétimo fragmento - 8:34

Está provado que quando fazemos algum tipo de atividade física o organismo produz grandes quantidades de uma substância química chamada endorfina que é a responsável por nos transmitir aquela sensação de relaxamento e bem estar, que nos deixa, enquanto está atuando sobre o sistema nervoso, com uma ótima disposição de ânimo e bom humor. Quando chego em casa para o café da manhã vindo da academia, estou com o nível mais alto de endorfinas que vou ter durante o dia e, por isso, aliado ao fato de estar morrendo de fome e saber que vou comer daqui a pouco, encontro-me naquele momento em excelente estado de espírito e de ótimo humor tanto que, às vezes, como por exemplo às segundas feiras, quando a empregada ainda não chegou do fim de semana e sou obrigado a esquentar a água e passar o café além de preparar a mesa para a família antes de sentar para comer mesmo estando morto de fome, desincumbo-me destas tarefas com leveza enquanto cantarolo minhas músicas preferidas, geralmente rocks clássicos ou dos Beatles. Depois, com a mesa já posta, costumo abrir com delicadeza as persianas dos quartos, acordo a minha mulher e meu filho, ligo o computador e, aos poucos, vou colocando a casa em movimento. Mas, neste dia, às 8:35hs, enquanto comíamos generosas porções de melão, apenas comentávamos com vivo interesse, um pedaço da conversa que tínhamos tido com a nossa filha no jantar a respeito das diferentes formas que as pessoas dormem e achamos curioso o fato de eu e minha filha termos hábitos parecidas sem que nunca tivéssemos comentado qualquer coisa um com o outro. Por exemplo, para equilibrar a temperatura do corpo durante a noite, se estou com calor, eu durmo com uma perna coberta e a outra não. Eis que, assim do nada, a menina solta que, na noite anterior, tendo sentido um pouco de calor e, a fim de contrabalançar sua temperatura, descobriu uma das pernas, deixando a outra coberta. Eram 8:40hs quando terminei o melão e perguntei à minha mulher se seria possível eu ter passado essa mania para ela através dos meus genes, ao que ela respondeu: “essa e muitas outras”! Fiquei sem saber se aquilo seria uma crítica ou um elogio, mas, como eu estava de boníssimo humor, deixei a dúvida pra lá e, no exato momento em que meu filho apareceu na cozinha com os olhos inchados de sono e o cabelo desgrenhado e em pé, comecei a preparar um copo de café com leite, o que dá um certo trabalho pois leva leite em pó desnatado, adoçante, além do café propriamente dito e tem que ser muito bem batido senão o leite fica empedrado e, quando isso acontece, praticamente inviabiliza o seu consumo.
De pé na porta, meu filho pergunta: “tem pão fresco”? Eu respondo que sim, e falo para ele vir logo que o pão ainda está quentinho. Ele vem e puxa uma cadeira para sentar e a mãe diz para ele ir primeiro fazer xixi e lavar o rosto e ele diz que já fez isso em tom de protesto e a mãe exige que ele se levante de pronto e vá aliviar o xixi matinal e lavar o rosto e, neste ponto, inicia-se uma negociação onde ele aceita levantar-se para lavar o rosto e fazer xixi desde que, enquanto isso, ela lhe preparasse um sanduíche de queijo e presunto e eu um copo de chocolate frio sem pelotas. Nós concordamos e ele se levantou para cumprir sua parte do acordo. Às 8:47hs, enquanto eu comia uma torrada com queijo cottage e bebia meu café com leite, meu filho voltou do banheiro e se pôs a comer, sem muito ânimo, a metade de um pão com queijo e presunto. Enquanto eu pensava se devia comer uma terceira torrada, ele largou o sanduíche, o que gerou protestos vigorosos da sua mãe, e tomou de um gole só todo o copo de Nescau que eu lhe preparara, levantando-se rapidamente da mesa para, segundo ele, ir fazer coco. Às 8:52hs, combinei com a minha mulher alguns detalhes sobre o transcorrer do dia e me dei conta que este seria corrido por causa do rodízio do carro dela, o que me traria algumas incumbências adicionais ao final da tarde. Quando levantei da mesa, perguntei-me até que horas agüentariam as minhas endorfinas e se elas seriam suficientes para atravessar o dia que se apresentava. De qualquer forma, ás 8:55hs, fui para o computador onde encontrei meu filho ocupado com um joguinho e perguntei: “ué, você não ia fazer coco”? “Um minutinho”, foi o que ele respondeu e eu me impacientei um pouco pois já estava atrasado, tinha alguns emails para mandar, tinha que entrar em alguns bancos pela Internet e ele ficava repetindo: “só um minutinho”! “Já vou fazer coco”!
De repente irrompe minha mulher pela sala e diz para o menino: “mas você ainda está aí”? Depois para mim: “você não sabe que nós temos que chegar mais cedo hoje na natação”? “Ele tem exame médico”! Enquanto às 8:58hs eu conseguia de volta o meu computador, comecei a escutar nos interiores da casa uma atividade frenética de abertura e fechamento de portas, escovação de dentes, torneiras aspergindo água, descargas sendo dadas, passos apressados, gritos, protestos, ameaças e muitas idas e vindas da minha mulher, do meu filho e, principalmente, da nossa ajudante doméstica que, ao que tudo indicava, não cumprira nenhuma das tarefas que lhe tinham sido atribuídas. Às 9:15hs, meu filho apareceu sorrindo, elegantemente trajado de roupão azul, touca de natação e chinelos rider e me disse: “tchau pai, bom dia!”! Depois veio minha mulher esbaforida segurando seus óculos escuros na mão. De passagem, enquanto pegava a bolsa, ela perguntou: “tchau, tô atrasadíssima. Você viu meus óculos escuros por aí”?
Continua...