domingo, 4 de fevereiro de 2007

Um dia na vida - décimo fragmento - 11:16

Pelo adiantado da hora percebi que o dia ia ser muito pior do que imaginara quando acordei há pouco mais de cinco horas. A avenida diante de mim estava vazia como se fosse um feriado mas bastava olhar pelo retrovisor para ver a turba ensandecida de automóveis que se arrojavam pelo asfalto e que, como eu, tentava repor os minutos perdidos enquanto os bombeiros tentavam remover do asfalto os destroços do caminhão acidentado. Enquanto acelerava eu tentava me concentrar naquilo que faria primeiro ao chegar ao escritório e, aproveitando a onda de sinais verdes que se abriam adiante, priorizei as atividades de acordo com a urgência e prometi para mim mesmo que não me desviaria nem um milímetro do planejado pois este atraso deixaria o meu dia ainda mais curto, levando-se em conta que eu teria que pegar meu filho na escola no fim da tarde. Eram 11:18hs quando tive que diminuir a marcha porque adiante, já quase no Paraíso, um dos semáforos ficou amarelo. Decidi que logo ao chegar despacharia com o contador para resolver de uma vez por todas aquele problema da Certidão do INSS. Em seguida ia tratar da folha de pagamento. Depois ia ligar para o banco. Não poderia esquecer de cobrar do contador aquele assunto da aposentadoria da faxineira. Nem a contratação do motorista da Kombi e, caso nenhum dos que já tinham aparecido servisse, pensei que talvez fosse o caso de colocar um anúncio. O sinal fechou às 11:19hs e eu fiquei tamborilando impaciente no volante enquanto observava os pedestres atravessarem a faixa à minha frente. Achei que não ia dar tempo de fazer tudo antes da reunião da tarde a não ser que eu pulasse o almoço, mas não queria pular o almoço porque depois eu ficaria morrendo de fome, e acabaria mandando alguém comprar sanduíches na padaria e aí, no dia seguinte, seria obrigado a fazer tempo extra de bicicleta ou esteira, atividade que andava me deixando cada vez mais impaciente; então resolvi que iria almoçar bem e, por isso, engatei a primeira marcha assim que o farol ficou amarelo e me exasperei ao ver que neste exato momento dois velhinhos iniciaram uma vagarosa travessia da avenida, exatamente do lado oposto de onde eu me achava. Quando o casal de idosos alcançou a metade da avenida o farol ficou verde e eles tiveram um momento de vacilação, mas, por sorte, um marronzinho que apareceu não sei de onde, impôs a sua autoridade e segurou os motoristas, entre eles eu, até que os dois chegassem assustados, mas, a salvo à calçada. Quando parti, fiquei me maldizendo pelo grau de hostilidade, ferocidade e agressividade a que esta cidade leva seus moradores, que estão sempre pensando apenas no próprio umbigo, a ponto de pensar, como eu pensei, se dava tempo de passar na frente dos velhinhos, para não perder dez ou quinze segundos. Depois fiquei rindo sozinho pois eu mesmo duvidei que seria capaz de fazer aquilo, mas, não resta dúvida que cheguei a cogitar e isso bastava para me tornar um completo idiota. Às 11:20hs, já na Vila Mariana, fiquei imaginando uma maneira de me redimir e achei que, já que estava tão difícil chegar ao trabalho, que talvez eu devesse simplesmente não ir trabalhar e, ao invés disso, passar o resto do dia fazendo boas ações, postar-me num cruzamento perigoso e ficar auxiliando as pessoas a atravessar a rua, como faziam os sobrinhos do Pato Donald, ou então, ir até o Bom Retiro e prestar trabalho voluntário por um dia em alguma instituição. No fim, enquanto esperava na Domingos de Moraes a outro sinal abrir, resolvi parar de ruminar tolices e me concentrar naquilo que eu tinha que fazer e tentar fazer bem feito, porque, até aquele instante, meu dia tinha sido de um vazio abissal e, fora o fato de ter levado minha filha até o ônibus da escola, eu não conseguia elencar nenhuma outra atividade produtiva que eu tivesse feito. Talvez o pão fresco que eu comprara na padaria pudesse ser considerado como atividade produtiva? O super sanduíche e o Nescau que preparara para o meu filho no café da manhã? Minha habilidade para driblar problemas financeiros logo cedo? Não sei! Às 11:23hs estacionei o carro em frente ao escritório e repassei minha estratégia da melhor forma possível de aproveitamento do tempo. Não consegui encontrar a chave da porta então toquei a campainha e fiquei esperando enquanto escutava os passos miúdos e arrastados da faxineira que ia ser aposentada aproximar-se com dificuldade para abrir a porta. Durante alguns segundos ela lutou contra um acesso de tosse a poucos centímetros de mim do outro lado da porta. Depois travou uma pequena batalha com o molho de chaves ao tentar escolher aquela que faria girar o miolo da fechadura. Os barulhos se repetiam conforme suas tentativas e erros e, já percebendo de que se tratava da minha pessoa a demandar entrada, desculpava-se chorosamente culpando sua precária visão, depois a tosse e por fim sua falta de ar. Permaneci impassível na minha posição ereta enquanto se desenrolavam os acontecimentos e lamentava o esquecimento da minha chave que causava tamanho sofrimento à faxineira, o que levou meus pensamentos para os velhinhos claudicantes que atravessavam a avenida enquanto eu me impacientava ao volante e, nisso, as duas impaciências ficaram girando na minha cabeça e, por uns instantes, tive ímpetos de fugir dali, porém, às 11:26hs, a porta foi aberta pelo contador, que na verdade não é só contador e sim um faz tudo, a me dizer: “graças a Deus que você chegou! Tô com um problemão!”
continua...

Nenhum comentário: