Orna episodio 1 Agora com essa coisa de máscara, que a gente só consegue ver os olhos das pessoas, Mané lembrou-se de uma garota por quem se apaixonou em Israel. Mané, aos 18, sentia um pouco de medo de Orna, 23. Ela era sua chefa no Kibutz e ele se apaixonou no primeiro dia que a viu. Ela gritava suas ordens e Mané a atendia prontamente, fosse ele um cachorro certamente abanaria o rabo. Orna era durona, mas também gostava de Mané que tinha muita dificuldade de expressar seus sentimentos em função da língua. Ele a amava em português e ela gostava dele em hebraico, muita coisa se perdia no caminho. Mesmo assim engrenaram um romance, passeavam à tarde pelo deserto, assavam bolos e tomavam chá antes de dormir. Eles passaram alguns meses felizes e comprometidos apenas em agradar-se mutuamente, mas durante todo o tempo Mané expressou seu desagrado pela falta de compreensão total, ele queria que ela soubesse plenamente o quanto a amava e ela, mais experiente, ria da aflição do garoto. Um dia, “pra acabar definitivamente com essa coisa de compreensão”, disse ela, “vou falar pela última vez que você não precisa me dizer nada pra eu entender qualquer coisa que você queira expressar, eu já entendi tudo desde a primeira vez que você olhou pra mim”. Diante do olhar de estupefação de Mané, ela emendou: “sim, como os cachorros, eles falam com os olhos, como você fez. E só faltou você abanar o rabo”! Romântico, né? 10/05/2020 Orna episódio 1.1 Mané fez parte de um movimento juvenil sionista. Ao chegar ao fim da adolescência quem quisesse podia ir passar um ano em Israel e vivenciar a experiência socialista em um Kibutz. Mané foi. Todos os jovens ao chegarem ao Kibutz, ganham “pais adotivos”, uma família que lhes facilite a aclimatação. A mãe de Mané era nutricionista, administrava toda a parte alimentar, aí inclusa a cozinha industrial e todos os armazéns de víveres. Na primeira visita, antes de começar a trabalhar, Mané falou para sua mãe que gostaria de ter um trabalho que o deixasse mais em contato com as pessoas, não queria, por exemplo, passar o dia colhendo batatas, laranjas ou trigo. A mãe, perscrutando Mané, tomou-o pela mão e foram até a casa do gerente de recursos humanos a quem falou que estava requisitando para si um dos sul-americanos, que não deveria escalá-lo para a lavoura e apontou para Mané. O homem perguntou o nome e fechou a porta sem esboçar nenhuma reação. Depois foram até a área onde moravam os jovens, bateram na porta de uma casa de onde saiam os acordes de Proud Mary Credence Clearwater Rollin, Rollin, Rollin on the river e de lá saiu Orna que olhou com estranhamento para os dois. A mãe foi curta, disse que a partir de amanhã esse sul-americano ia ser seu ajudante. E virando pra Mané lhe disse para estar amanhã as seis em ponto no refeitório e em seguida desapareceu na noite. Orna e Mané ficaram se olhando por três segundos ela deu boa noite, não antes perguntar se ele aceitava um chá mas ele respondeu não, obrigado e antes de ir, disse a ela que também gostava de Credence e que suas músicas prediletas eram Have you ever seen the rain e Suzie Q. Bom pra você, sul-americano, como é mesmo seu nome? 21/05/2020 – publicado 22/05 Orna episodio 1.2 No dia seguinte Mané chegou ao refeitório vazio e ficou circulando por ali. As seis e quinze apareceu Orna com os cabelos em desalinho e pesadamente agasalhada. Passou por Mané sem falar nada, internou-se na cozinha e Mané ficou ouvindo barulhos de panelas e talheres. Pouco depois Orna apareceu e perguntou se ela não viria. Tomaram o café que ela tinha preparado e depois de esvaziar a xícara Orna disse que sem café ela não funciona, nem fale comigo antes do primeiro gole. Virou as costas e disse para que a seguisse, foram até o refeitório onde ela explicou que ele devia chegar as seis, limpar as cinqüenta mesas, abastecer os portas-guardanapo e passar o esfregão em tudo. No verão, tinha que aspergir os mosquiteiros com repelente, mas só no verão. Depois você tem que abastecer a cozinha e as classes das crianças e só depois voltar para o desjejum. Mané escutava a tudo, mas não conseguia se concentrar, a moça era bonita e ele teve devaneios de acordar ao lado dela e lhe preparar uma xícara de café. Venha, chamou, está dormindo? Está pensando em que? Saíram da cozinha pela porta de trás e foram até um local onde estava estacionado um tratorzinho. Esse é o seu instrumento de trabalho. O trator, a carreta, você sabe dirigir e cuidar de um trator? Você vai receber e descarregar os alimentos da cooperativa, guardar nos armazéns, distribuir, enfim eu já disse isso. Vem, vamos ver os armazéns. Ela subiu no trator, ligou o motor e Mané pendurou-se no estribo. Na volta, com Mané dirigindo, ela observou: você vai ter que aprender a dirigir trator, hoje à tarde vamos treinar. Quantos anos você tem? Acha que precisamos de outro sul-americano para te ajudar ou talvez uma sul-americana? Tomaram o desjejum com a equipe da cozinha, nove meninas e mais duas sul-americanas do grupo de Mané. As locais falavam em hebraico muito rápido, Mané e as duas meninas do Brasil ficaram boiando, mas ele conseguiu entender quando uma delas parabenizou Orna por ter finalmente contratado um escravo. 21/05/2020 Orna episodio 1.3 Mané era o nome mais chamado na cozinha. Preciso de um saco de arroz aqui, a farinha acabou outra vez? Hoje à noite teremos língua, você sabe trinchar línguas? De vez em quando ele fugia e saia com o trator inventando alguma tarefa. Ia tapar algum buraco no armazém ou fazer o manejo das carnes no frigorífico. Passava o tempo escutando o silêncio do deserto e pensando nela. Orna! Não hesitava em levantar um saco de trinta quilos de arroz ao mesmo tempo em que produzia bolos deliciosos para o deleite de todos. Dava broncas o dia inteiro e para Mané, confidenciava que as duas sul-americanas eram meio lerdas e desse jeito iam ficar descascando batatas o resto do ano. Um dia, estava no frigorífico arrastando caixas, carne nova pro fundo, carne mais antiga na frente, quando Orna apareceu. Ambos paramentados com casacos e botas abaixo de zero, uniram forças para acabar o serviço porque Orna precisava do trator para ir até o deserto. Apesar do frio, a trabalheira e a proximidade de Orna, fizeram Mané suar por baixo da roupa. Está cansado, ela perguntou aproximando-se. Ficaram se olhando a centímetros de distancia olho no olho e ela enterneceu, disse que ele tinha olhos bonitos. Desprevenido, ele respondeu que ela era toda bonita. Ficaram sem jeito e ela se afastou um pouco e disse que estavam parecendo esquimós. Ele riu, ela riu. Você sabe como beijam os esquimós? Mané disse que sim e ela falou que como ele vinha trabalhando duro merecia um premio, ia lhe dar um beijo de esquimó e aproximou seu nariz do dele, esfregou a ponta de um no outro depois abriu a porta e saiu. Mané a encontrou sentada no chão tirando a roupa e as botas de frio e fez o mesmo. Enquanto ela o observava falou: vamos, temos que encontrar Khaled, nós vamos precisar dele. Mané não tinha a mínima idéia de quem fosse Khaled e muito menos porque precisaria dele, mas agora que dominava perfeitamente o trator, saiu dirigindo feliz pelo deserto com Orna montada no estribo apoiada nas suas costas o que fez com que Mané sentisse seus peitos que não pareciam grandes, o que o deixou meio contrariado. No caminho ela gritou, para superar o barulho do trator: quantos anos você disse que tinha? 21/05/2020 Orna episodio 1.4 Khaled tinha ido à cidade então eles esperaram sentados numa pedra. Eu casei quando tinha dezoito anos, ela disse, casei com um pára-quedista e fui para o exécito. Chuka foi um dos que tomaram Sharm El Sheik na guerra do Yom Kipur. Saltaram por trás das linhas inimigas, foi um rebuliço. Ela contou que depois do exército, voltaram pra casa mas o casamanto não deu certo e resolveram se separar e então, ela resolveu tentar a vida aqui. Sabe como é, conheço Chuka desde criança, impossível ficar casado, mas é impossível também ficar longe, de vez em quando ele aparece, ela disse. Mané continuou riscando a areia com um pauzinho quando ela perguntou se ele tinha namorada e ele disse que sim, tinha, mas ela estava no Brasil o que era equivalente a não ter. Ela perguntou se ele a achava velha e apontou para duas rugas muito charmosas ao lado da boca. Mané pensou um pouco para responder, mas de súbito ela gritou: aí vem Khaled! E correu pra conversar com ele. Na entrada da tenda beduína, discutiram um pouco, pacotes trocaram de mãos e logo ela voltou sorrindo. Vamos, depressa, ainda tenho que decidir o que vamos comer amanhã, você sabe trinchar frangos? No trator, com Orna novamente às suas costas ele lhe disse que a achava velha sim, mas não muito, disse também que estava perdidamente apaixonado por ela, que acordava e dormia pensando nela, que amava suas rugas, seus cabelos desalinhados, seu short puído e suas botas de trabalho, mas ela não respondeu nada mesmo porque ele falou tudo em português e só percebeu quando ela perguntou se ele estava cantando uma música brasileira. Ele disse não, é um poema, mas não brasileiro. Ele a deixou perto de casa foi guardar o trator e voltou para o alojamento. Naquele dia não jantou, não tomou banho e nem saiu mais do quarto. Ficou estatelado na cama em estado de paixão só pensando nela. 21/05/2020 Orna episodio 1.5 Acordou com Orna sentada na cama com a mão na sua testa. Vamos limpar as mesas? Mané olhou o relógio e viu que eram 4:30 da manhã mas não reclamou. Você esta doente, ela perguntou. Ele disse que não, depois disse que sim, mas levantou-se e vestiu as roupas de trabalho. Ela tinha ficado preocupada com o sumiço de Mané e veio verificar se o escravo dela tinha fugido para o Brasil. Saíram pela madrugada fria e caminharam lentamente em direção ao refeitório. O vigia perguntou se havia algum problema e ela disse que não e ele então respondeu que pelo jeito haverá. Ela riu, o vigia riu, Mané ficou tentando entender, mas riu também. Não foram para o refeitório. Caminharam até a borda do deserto encostaram-se a uma ravina e ele contou pra ela como é que tinha chegado até ali. A saída do Egito, a temporada na Itália, a chegada em Santos, a falta de dinheiro na infância, a escola, o movimento juvenil, duas namoradas, a família super protetora. Depois de um tempo o sol começou a nascer e ela se levantou de chofre dizendo que precisava tomar café. Quando Mané terminava a última mesa ela pousou uma xícara com o café fumegante e lhe perguntou o que ele ia fazer hoje. Trinchar frangos? Caçar ratos? Descarregar sacos de arroz? Tenho uma proposta, ela disse, achei que o frigorífico ficou mal arrumado, eu queria verificar se pusemos todas as carnes mais antigas pra frente. Ele reclamou, disse que tinha verificado tudo muito bem que era péssimo ficar naquele congelador por horas, mas ela tomou a xícara de sua mão e fulminou: as 11 no congelador, não se atrase. As 10:55 ele estava cochilando ao sol do lado de fora do frigorífico e Orna chegou dando-lhe um chutinho nos pés e sentando ao lado dele. Você percebeu que você passa o dia todo olhando pra mim, ela disse. As pessoas já estão falando, o que você quer, porque só fica me olhando? Já sei, ela continuou, quer bolos toda tarde, quer a melhor parte da torta no almoço, quer mais um beijo de esquimó, talvez ou prefere ir passear no deserto? Você é muito criança, mas eu não sei o que se passa quando você me olha daquele jeito. Ela aproximou seu nariz do dele, ele encostou o nariz no dela e ficou absorvendo seu perfume. Ela disse que não estavam no freezer para dar beijos de esquimó então eles se deram um beijo do deserto mesmo. Quando voltavam ao refeitório ela sentenciou: hoje à noite vou dar uma festinha em casa para a equipe da cozinha, esteja lá as nove, vou tocar Suzie Q. 21/05/2020 Orna episodio 1.6 Mané não foi à festa. No dia seguinte iam para um curso intensivo de hebraico no norte do país e ele quis dormir cedo. Não dormiu, é claro. Ficou pensando se devia ir à festa, chegou a ir até a casa dela, mas estava uma barulheira, tudo cheio e achou que ninguém se daria conta da sua ausência. De manha cedinho ele fez a limpeza das mesas, tomou um café e comeu um pão com manteiga de pé na cozinha e saiu de mochila para pegar o ônibus que os levaria. No estacionamento, aquela algazarra de gente indo embora. As brasileiras da cozinha disseram a ele que Orna perguntou por ele, a festa estava boa, tinha onze mulheres. Mané assentiu, disse que estava com sono, enfim, era uma festa para mulheres. Já sentado numa janela ele ouve alguém bater no vidro, ele abre e coloca meio corpo pra fora. Eu não mandei você ir à festa? sorriu Orna. Para onde vocês estão indo? Kiriat Shmona? muito longe, mas é bem pertinho da minha casa. Quanto? 45 dias, ficou maluco? Olha daqui a dez dias vou visitar meus pais, eu passo lá. Mas porque você não veio à festa, desce aqui, vem conversar. Mané desceu, foram pra trás de uma oliveira. Não tinham te dito que você é meu ajudante e que você precisa me obedecer? Eu mandei você ir à festa e você não veio. Quer um beijo de esquimó, de despedida? Não? Prefere um do deserto, então? Depois ela encostou a cabeça no peito dele e perguntou como é que ela sobreviveria sem alguém para dirigir o trator, limpar as mesas, carregar sacos pesados e lavar a cozinha no fim do dia? Daqui a dez dias eu vou te buscar em Kiriat Shmona, ela disse enquanto ele subia para o ônibus. A viagem durou praticamente quatro horas. O lugar era muito longe e inóspito. O prédio onde ficariam hospedados era praticamente um bunker, entrava-se pelo térreo e os andares 1, 2 e 3 eram para baixo. Mané ficou no quarto com um cara que gostava de fazer ginástica, foi dormir pensando nela e amanhã, iria explorar a cidade. 22/05/2020 Orna episodio 1.7 Mané foi acordado de madrugada por um barulho insistente, um ferrinho batendo no chão. Era seu colega de quarto fazendo flexões. Meu, são três e meia, ficou louco? Preciso fazer flexões todo dia, essa viagem bagunçou meu treino. No café da manha Mané se sentiu numa colônia de férias, pessoas fazendo barulho, guerra de bolotas de pão, quase insuportável. Após o café fizeram teste de hebraico para saber em que nível iriam estudar iniciante, médio ou alto. Mané não sabe como, mas foi classificado como alto nível, as aulas começariam à tarde. Na parte da manhã dedicaram-se a explorar os arredores. Kiriat Shmona é uma cidade que faz fronteira com o Líbano, mas esqueça a idéia que se faz de fronteira, aquele lugar amplo, longe e onde não se vê nada nem ninguém. Andando pela rua principal, olhando para o lado esquerdo e um pouco para cima se avista a cerca de 300 metros, um paredão montanhoso; estão vendo aquela casinha lá no alto e aqueles três caras conversando, perguntou um dos monitores, pois então, ali é o Líbano e eles são libaneses, nossos inimigos. Ele os estimulou a dar um tchauzinho e espantaram-se quando os libaneses responderam. O monitor continuou: nesta cidade moram imigrantes russos, soldados e putas. De vez em quando aparecem pessoas como vocês para um curso rápido de hebraico. Ali fica o vendedor de Schuarma e Falafel, ali é o cinema, nessa rua tem também umas lojinhas de roupa e abrigos antiaéreos, de vez em quando os chefes desses caras que nos cumprimentaram os mandam atirar katiushas pra baixo e Israel responde com ataques aéreos, dependendo da gravidade. Mas na maior parte do tempo, nada acontece por aqui. Em todo caso, respeitem os alarmes e nessas horas, melhor não saírem do prédio ou, se estiverem fora, procurem abrigo. Vejamos... hoje esta passando Emanuelle, talvez possam vir assistir já que esta película esta censurada no Brasil e saiu assobiando a musica tema.. "mélodie d'amour chantait le cœur d'Emmanuelle... Mané pensou nas ruguinhas de Orna ao lado da boca e, na modorra da tarde, durante a aula na classe avançada, se deu conta que os dez dias que faltavam para ela chegar iam se transformar em cem. 22/05/2020 Orna episodio 1.8 Quinze dias tinham se passado. Mané andava casmurro pelo bunker/escola e não aproveitava as aulas. Fora o filme com a Silvia Krystel que assistiu no segundo dia, nada parecia valer a pena. Mané estava irritado com os argentinos e uruguaios, não agüentava mais os treinos da madrugada de seu companheiro de quarto, tinha ficado com saudade e estava morto de vontade pela Orna que, aliás, tinha dito que vinha em dez dias, mas não veio. Conversou com monitores e professores, ele queria voltar para o Kibutz. Da professora escutou que ele já podia se virar em hebraico, talvez com pratica intensiva melhorasse. O monitor foi contra, disse que ele fazia parte de um grupo, que ele tinha que ficar, mas Mané fez ouvidos moucos para o lerolero. Argumentou que tinha vindo para viver o ideal socialista, estava cansado daquela cidade, dos russos, das putas, dos soldados e das katiushas que faziam, dia sim dia não soar o alarme de ataque. Ficaram de conversar. À tarde uma uruguaia botou a cabeça pra dentro da sala de aula e lhe avisou que tinha uma visita. No inverno do norte de Israel não é raro persistirem dias cinzentos, nublados e chuvosos. Quando Mané saiu da sala e se deparou com Orna a lhe sorrir, iluminou-se o dia e o sol se pôs a brilhar. Decidiram voltar juntos para o Kibutz, ela garantiu aos monitores que lhe ensinaria tudo que ele precisa de hebraico para sobreviver. Naquela hora o último ônibus já tinha saído então, depois de um passeio pela fronteira com o Líbano, arrumaram um colchão, Mané lhe cedeu a cama e se deitou ao seu pé . Ao companheiro, que ia ficar com o quarto só pra si, Orna falou que fosse fazer ginástica em outro local e ele foi. Todos obedeciam a uma ordem de Orna. Ela disse para Mané dormir ao lado dela na cama, mas ele pensou que melhor não, ainda. Mais tarde, enquanto conversavam, Mané adormeceu. Orna ficou fazendo cafuné nos seus cabelos. Naquela noite reinou o silêncio no bunker, não houve katiushas nem alarmes, tampouco o barulho do treino dos abdominais. 22/05/2020 Orna episodio 1.9 No ônibus para Tel Aviv Orna disse que demorou pra vir porque passou mais tempo com os pais do que imaginava. Além do mais estava com raiva dele por ter faltado à festa. Ela riu, ele riu. Você conhece Tel Aviv? Nós vamos dormir uma noite na cidade! Mané disse que faria qualquer coisa que ela mandasse, estava com medo do que ela pudesse fazer se ele desobedecesse mais alguma ordem e, nesse embalo registraram-se em um pequeno hotel a três quadras da praia. Pediram um quarto com cama de casal, Orna lhe disse para não ficar com medo e que ela seria boazinha, ele não tinha nada a temer. O atendente riu e Orna falou pra ele cuidar da vida dele. No elevador Orna perguntou se ele já tinha tido uma lua de mel e ele respondeu que aquela devia ser a segunda ou terceira. Ela deu um tchauzinho pra câmera e depois um soco no braço dele, o elevador parou no quarto andar. Naquela tarde foram passear pela orla até Jaffo onde tomaram suco de romã e comeram Schuarma e Falafel. Depois foram molhar os pés no Mediterrâneo, mas Orna não suporta água fria e preferiu ficar olhando a vista no calçadão. Mané quis visitar seu tio, mas Orna se negou peremptoriamente e disse que ainda era cedo para eventos familiares. Orna passou toda a tarde lhe dando aulas de hebraico enquanto passeavam e assim, quando voltaram ao hotel Mané já não agüentava ouvir hebraico. Ela determinou, entre outras coisas que, para compensar a festa à qual ele tinha faltado, daria outra hoje de caráter particular à noite entre essas quatro paredes e perguntou mais uma vez se ele já tinha estado em alguma lua de mel e ele disse pra ela falar mais devagar porque estava cansado e não conseguia entender direito. Ela pareceu ficar sem jeito, mas logo se recompôs e disse que não importava, logo ia descobrir. 22/05/2020 Orna episodio 1.10 Tel Aviv é uma cidade grande. Exausto, Mané acordou as quatro da manha sentindo frio e ouvindo uma barulheira do lado de fora. Gente falando alto, coisas caindo e caminhões manobrando. Orna estava de pé olhando pela janela enrolada no único cobertor e envolveu Mané no casulo quando este se aproximou. Veja, estão abrindo as barracas do Shuk Hacarmel, o maior mercado a céu aberto de Tel Aviv, nós vamos lá antes de tomar o ônibus. Deitaram de novo e ela falou que essa moleza ia acabar amanhã cedo, daqui pra frente trator, limpeza e aulas de hebraico. Mané então falou pra ela, respondendo à pergunta que ela tinha feito ontem, ele nunca tinha tido uma lua de mel e ela fazendo muxoxo, disse: verdade? Se você não fala eu nem teria percebido. Ela riu, ele riu. Ela perguntou se ele tinha ficado receoso e ele disse que não, mas por outro lado ele estava com medo agora, depois se corrigiu medo não, ansiedade. Ela levantou, vamos passear e foi ao banheiro ligar o chuveiro. Tomaram um banho demorado depois voltaram pra cama para mais um pouco de lua de mel, segundo ela disse. Acordaram de repente e a manhã já andava pelo fim, tinham perdido o ônibus para o deserto então pegaram carona até o inicio da estrada e de lá para BeerSheva onde esperaram por mais de uma hora pela saída do último ônibus para o kibutz. Ficaram sentados sobre as mochilas na plataforma, comeram pistaches e beberam coca-cola. Ela perguntou se ele fumava, ele disse que não. E cigarros, ela disse? Também não, ele respondeu. Quer experimentar? Aqui, ele se espantou? Nesse momento o ônibus buzinou e eles correram para entrar. De Beersheva para o Kibutz Sde Boker são 50 minutos de viagem, uma reta de asfalto com areia dos dois lados. O ônibus faz paradas no caminho. Beduínos sobem e descem e saem caminhando pela areia deserto adentro e Orna ficava se perguntando como eles sabiam onde descer no meio desse nada. No inicio da tarde, o ônibus chegou ao portão e o motorista perguntou se eles podiam levar o correio e filme que ele trazia para a secretaria. Naquela noite teve sessão de cinema no Kibutz, ia passar “O Enigma de Kaspar Hauser”, mas Orna e Mané não assistiram. 22/05/2020 Orna episodio 2 Orna, que foi a dona de Mané durante o tempo que durou o idílio, era guia de turismo especializado no deserto do Negev, sul de Israel onde se encontra o kibutz onde estavam. Depois que terminavam o trabalho ela insistia em fazer longas caminhadas pelas areias da redondeza. Mané não percebeu logo de cara, mas Orna precisava treinar então ela o fazia de degrau e isso não o amofinava nem um pouco. Andavam pelos caminhos pedregosos, aprendiam a reconhecer pedras que eram apenas pedras e pedras que eram tocas de cobras ou escorpiões. Andavam pelos oásis próximos, observavam as famílias de cabras selvagens, comemoravam quando encontravam um novo filhote e preocupavam-se caso algum dos bichos faltasse. O deserto ao entardecer ganha vida, Orna queria observar os camelos e os abutres, mas Mané só tinha olhos pra ela. No calor tomavam banho nas cacimbas e no final do passeio faziam uma parada num abrigo construído por alguém e mantido por diversos jovens casais do kibutz, uma perua kombi velha tinha sido transformada num quartinho com colchão e outros objetos empoeirados mas era um abrigo com privacidade e muito adequado para hormônios em ebulição e, quem afinal se importava com as aranhas e os pequenos roedores que moravam dentro dela? Com a noite já indo alta, voltavam como dois criminosos para assaltar a cozinha e esbaldavam-se com as sobras do jantar, frango frio, espigas de milho e quem sabe não tinha sobrado um pouco de gulash? Banho, canseira, lençóis limpinhos e enquanto Mané já se entregava ao sono, Orna recitava que iriam amanhã até a cratera de Ramon, tinham que percorrer o leito seco de um rio, ela tinha que encontrar um...mas você já dormiu? 11/05/2020 Orna episodio 2.1 Ela quis que ele se mudasse para a casa dela, mas Mané preferiu manter o seu próprio alojamento mesmo que ficasse sem muito uso era agradável pensar que tinha um local para onde ir quando quisesse ficar sozinho ou para guardar as suas coisas, aos 18 nada é muito definitivo. Mané retomou o seu trabalho e ficou cercado de israelenses por todos os lados já que o grupo dele continuou estudando hebraico na fronteira com o Líbano. Hebraico que, diga-se de passagem, Mané aprendeu na marra porque ou falava hebraico ou não falava nada. Orna pegava no pé dele, sentia-se responsável por ê tirado das aulas, mas enfim, ninguém é de ferro, ela dizia depois você vai embora e a gente perde essa chance que caiu na nossa cabeça então vamos aproveitar. Um dia, voltando do incinerador, Mané a viu fazendo sinais frenéticos e parou para ver o que era. Vem me leva de trator até o deserto, me comprometi de arrumar uma coisa lá. Antes passaram no armazém e pegaram um colchão de casal novo, alguns panos para servir de cortina, lençóis e cobertores, além de alguns utensílios de cozinha, o suficiente para se esquentar uma água para fazer chá ou café e algum material de limpeza. Depois foram até a proximidade do acampamento beduíno onde tinha uma carcaça de Kombi abandonada. Fizeram uma faxina em regra e ao final da função a Kombi tinha se transformado num quarto de motel, segundo Orna uma reivindicação dos jovens que queriam um lugar para ficar sozinhos, você sabe, ela disse. Mané quis experimentar, mas ela se negou, disseram eles tinham a própria casa, que era para jovens, mas depois cedeu porque, “às vezes esqueço que você é uma criança”. Depois, enquanto olhavam para o teto, Mané disse que queria lhe mostrar uma música, pegou o toca fitas portátil no trator e logo puderam escutar os acordes de Hotel Califórnia, recém lançada. Orna lhe disse que aquela era uma trilha sonora perfeita para um passeio no deserto e então eles foram passear no deserto. 27/05/2020 Orna episodio 2.2 No Kibutz as pessoas se locomovem de bicicleta. Na hora das refeições o estacionamento do refeitório fica lotado. Orna deixava a dela na parte de trás e Mané, que não tinha bicicleta a pegava emprestado quando precisava. A bicicleta de Orna era baixa para Mané e ele começou a pensar se não deveria ter sua própria bicicleta e discutiu o assunto com ela. Sou uma pessoa que cresceu na cidade, Orna disse, quando queremos uma bicicleta a gente vai até a loja e compra, mas aqui, sabe como é, somos uma sociedade socialista, tenho uma idéia: semana que vem tem assembléia de moradores, você comparece, não tenho bem certeza se você tem direito e reivindica uma bicicleta, se você tiver direito e sorte em, no máximos três ou quatro semanas a bicicleta chega. Mané fez um muxoxo, um mês para conseguir uma bicicleta não era a melhor das perspectivas. Orna o consolou você sabe, a vida num Kibutz pode ser tediosa, então nós precisamos arranjar motivação para que não queiramos nos suicidar daqui a seis meses, talvez a espera pela bicicleta seja a sua motivação. E se pôs a gargalhar. Naquela tarde Orna estaria ocupada com um curso de nutrição então Mané aproveitou e foi com ela até a cidade e enquanto ela estudava perambulou pelas redondezas e justo ao lado de sua pizzaria predileta encontrou uma oficina de bicicletas. Com alguma dificuldade conversou com o iraquiano e acabaram fechando negócio numa bicicleta por 300 liras israelenses, preço que Mané achou uma baba. Feliz, enquanto esperava por Orna, circulou pela cidade na sua nova aquisição e notou a cara de espanto que ela fez quando o viu a esperar do lado de fora montado na magrela. O que você fez fofiinho? Sim, estou vendo que é uma bicicleta, vai voltar pedalando de Beer Sheva até o Kibutz? São cinqüenta quilômetros, meu pequeno! Eu não falei que era pra você solicitar uma bicicleta na assembléia? Ah, não pode esperar três semanas? Sério, essa foi uma atitude muito capitalista da sua parte! Parece um bebê mimado! Na rodoviária Orna convenceu o motorista e ficou acertado que a bicicleta pagaria meia passagem e eles a acomodaram no final do corredor. Alguns problemas aconteceram, gente que queria passar reclamava aos gritos, mas o motorista respondia que a bicicleta tinha pagado passagem e que ela tinha o direito de estar ali como qualquer outro. No Kibutz ninguém pareceu se dar conta da bicicleta de Mané. Orna que resolveu passar a noite no alojamento dele, chamou-o de porco capitalista enquanto o imobilizava com uma chave de pernas. Antes de adormecer ele a ouviu dizer que amanhã, como castigo, iriam fazer um pedal no deserto. 28/05/2020 Orna episodio 2.3 Orna apareceu com dois capacetes e dois pares de joelheiras. Diante do olhar de Mané ela disse que os caminhos do deserto são traiçoeiros, nunca se sabe quando um pneu pode escorregar, um tombo poderia causar muitos danos, melhor ficar protegido. Planejaram pedalar até um sítio a quatro quilômetros de distância, pouco depois do túmulo de Ben Gurion, fundador do Estado de Israel. Aliás, claro que você sabe que ele morou aqui no Kibutz até morrer, mas o que você não sabe é que estão precisando de voluntários para fazer a limpeza da casa dele, que vai se transformar num museu, uma vez por semana você pode se voluntariar? Mané disse que ia pensar, já tinha limpeza o suficiente para fazer, mas ela disse, pense bem, você vai poder contar para os seus netos que limpou a casa do fundador de Israel, não é pouca coisa. Pegaram a estrada vazia e pedalaram para o sul. Depois de algum tempo saíram do asfalto e embrenharam-se no deserto. Com alguma dificuldade por causa de pedras e areia fofa, chegaram a um platô que descortinava o fundo de uma cratera. Na boca do abismo podia se enxergar a paisagem ao longe, marcas de rios secos e duas pequenas gargantas que formavam um oásis. Orna tirou da mochila um binóculo e apontou para a direção da borda do precipício e Mané viu pelas lentes algumas carcaças de animais. Orna lhe disse que era um cemitério, os bichos do deserto vinham até ali pra morrer. Espere mais um pouco você vai ver. Ficaram lá um tempo comendo bolachas e bebendo chá, os bichos continuando mortos à sua frente. Súbito, Orna deitou de bruços e fez sinal para que Mané a imitasse e colocou o indicador na boca pedindo silêncio. Um bando de pássaros apareceu, abutres sobrevoando as carcaças. Mané viu quando aterrissaram e se acercaram dos bichos. Comeram tudo que tinha pra comer e depois ficaram vagueando saciados. Mais uns minutos e então um a um, os abutres correram para a borda do abismo e se atiraram no vazio para pouco depois emergirem já planando e batendo as asas a voar para longe. Orna em êxtase explicou que esses abutres quando comem não conseguem levantar vôo, pois estão muito pesados então a natureza sábia faz os outros bichos virem morrer aqui na beira de um abismo, onde os abutres podem se alimentar, limpar o deserto e depois se atirarem no abismo onde as correntes de ar quente os ajuda a alçar vôo sem o esforço que seria despendido numa decolagem normal. Voltaram pedalando devagar cada um imerso em seus pensamentos, Orna pensando nos abutres e Mané a desejando. Mané acelerou numa descida, Orna pediu para ele esperar, apostaram uma corrida até em casa, quem ganhar terá um desejo atendido. Chegaram ofegantes e ela já não pensava nos abutres. Ele, por ter ganho a aposta, teve o desejo atendido. 28/05/2020 Orna episodio 2.4 O dia amanheceu nublado. Nuvens pesadas e cinzentas se espalhavam pelo firmamento. Nada a se estranhar a não ser o fato de estarem no meio do deserto, lugar onde supostamente não chove. Depois do café, já trajando Orna apareceu esbaforida dizendo que pelo jeito do céu, a chuva ia ser forte e o deserto ia inundar. Como assim inundar? Aqui chove uma vez por ano, o Kibutz se localiza na área mais baixa da região, a areia do deserto não absorve tanta água e ela vai para o leito dos rios secos. Lembra do oásis lá no refeitório doas abutres? Então, hoje é o dia que ele vai encher e a água vai durar até o ano que vem. Pelo meio da manhã, desabou, em meio a ventanias e ciclones de areia, um dos maiores temporais de que Mané já teve notícia. Tão entretido estava a curtir a chuva que Mané nem notou que Orna lhe acenava freneticamente: inundação, inundação. Todos começaram a correr em direção a carros e tratores. Mané subiu na garupa do tratorzinho de Orna e seguiu apreensivo com a agitação. Ninguém, no entanto parecia preocupado, ao contrário, tudo indicava que estavam indo para um happening. A chuvarada diminuindo, Mané notou que homens, mulheres e criancinhas animadas batiam palmas e gritavam: "Chitafón", "Chitafón", inundação, inundação, enquanto o céu começava a desanuviar. Pouco tempo depois chegaram ao canyon. Estavam lá reunidas dezenas de pessoas. Todos deitados perto do local da vigília aos abutres, à beira do oásis boquiabertos, como também ficou Mané, assistindo a um espetáculo que tem apenas uma apresentação anual: "Chitafón", inundação. No meio do deserto, o sol brilhando, escutávamos o barulho de uma enorme cachoeira que se formou após o temporal. Toda a água que caiu sobre o deserto dragada para o mesmo lugar. Caindo por entre os rochedos, vinda das partes altas e depositando-se no vale. A cachoeira levaria poucas horas para se extinguir, mas a água trazida até aquela piscina iria durar por um ano, até a próxima chuva. Orna e Mané depois de toda aquela gente ir embora, desceram até a ravina, tiraram a roupa e deram um mergulho revigorante na piscina de águas límpidas. Foram observados por duas famílias de cabras selvagens que esperavam pacientemente a sua vez. 29/05/2020 Orna episodio 2.5 Quando Mané terminou o turno e estava guardando o trator, Orna apareceu e perguntou se ele podia ajudar. Tinha planejado um banho, mas enfim, foi caminhando com ela pelas alamedas do Kibutz. Ela ia meio que abraçada meio que empurrando Mané que se arrastava com preguiça sem saber o que o esperava. Passaram no armazém e pegaram materiais de limpeza, vassouras, panos e buchas e em poucos minutos estavam na casa/museu de Ben-Gurion. Eu nos inscrevi como voluntários para fazer a limpeza, Mané quis reclamar, mas ela não lhe deu bola e continuou a empurrá-lo pra dentro. No interior tudo estava quieto, escuro e frio. E sujo. Areias que tinham se infiltrado pelas frestas, marcas de pessoas que tinham visitado e um cheiro de coisa velha no ar. Orna colocou uma vassoura na mão de Mané e começou a abrir todas as janelas. Com a luz emergiu aquele que foi o último lar do fundador de Israel. Lá estava a saleta de visitas com quatro poltronas, quem tinha estado sentado ali? Que planos traçaram entre xícaras de café e cinzeiros. Sua mesa de trabalho com um livro aberto e óculos ao lado. Mané pegou os óculos e testou: Ben-Gurion não era míope. Orna lhe deu uma bronca, o que você esta fazendo? Esses óculos estão na posição em que ele deixou. Não estão mais, disse Mané e se pôs a ler as anotações escritas nas bordas da página em que o livro estava aberto. Tudo em polonês, incompreensível, Mané fez menção de virar a pagina, mas Orna deu-lhe um tapa na mão: vem varrer, para de mexer nas coisas do velho. Foram limpando cada cômodo, ajeitando uma coisa ali, outra aqui, até chegarem ao quarto, uma caminha de solteiro encostada na parede, um criado mudo com mais livros. Mané sentou na cama para ler as lombadas, mas Orna gritou que ele era maluco, saia já da cama, esta arrumada como ele deixou e então Mané puxou-a pra si e disse que queria experimentar a cama do velho. Orna se debateu, disse que não podiam fazer aquilo ali, mas quanto mais ela se debatia menos resistia. Um pouco mais tarde, quando já se fazia o entardecer, não foi com pouco cuidado que eles rearrumaram a cama do político, esticaram cada pontinha do cobertor e afofaram o travesseiro. Orna ficou preocupada e continuava chamando-o de maluco e depois, quando fechavam as janelas e davam uma última olhada para ver se tudo estava em ordem, empurrou Mané para fora da casa porem, antes de sair, mudou a posição dos óculos encima da mesa. À noite, no refeitório, comeram em silêncio e olhando de soslaio para as pessoas, como convém a uma dupla de contraventores. 30/05/2020 Orna episodio 3 A vizinha de Orna tinha uma cadela de médio porte, castanha, da raça Boxer. Hani era brincalhona e adorava ficar com Mané pela manhã quando todos ainda dormiam. Além de ser afável, Hani era daquele tipo de cachorro que babava, estar com ela sempre resultava em ficar molhado. No dia que a dona de Hani foi ao hospital dar à luz, Orna apareceu no meio do dia e, de supetão, disse para Mané largar o que estava fazendo e lhe informou que iam sair da férias. Agora venha me ajudar a carregar o carro, requisitei o carro há três meses, o kibutz liberou agora, por uma semana, vamos! O Fusca foi carregado com alguma comida, duas mochilas pequenas, água, uma barraquinha e, por último, Hani, que estava aos cuidados de Mané. Viajaram para o norte, caranguejando pelo litoral, acamparam na praia e assaram salsichas e espigas de milho em fogueirinhas. À noite dentro da barraca, Hani virava pro lado enquanto Mané e Orna satisfaziam suas necessidades, mas no meio da noite ela se metia entre os dois e, todo dia, o sleeping amanhecia com uma poça de baba no local onde tinha estado pousada a cabeçorra dela. Orna fica fora de si e Mané era obrigado a lavar aquilo depois secá-lo ao sol, ambas gostavam de locais limpinhos pra dormir. Seguiram vagarosamente rumo à fronteira com Líbano, permaneciam onde achavam bom e, nos outros lugares, paravam apenas para as abluções de Hani. Pelo quarto dia de viagem chegaram a Metula, uma cidade no extremo norte do país. Sentaram no quintal de uma casa onde, logo adiante, tinha um portão amarelo e uma placa que dizia: “Pare. Fronteira à frente. Área Militar. Proibido passar”. Poucos metros depois do portão era possível enxergar algumas casas e uma mesquita de onde saia uma voz que dizia: Alaaaaaah U Akbar. Ficaram um pouco olhando para os vizinhos árabes e, subitamente, Orna se levanta, vai em direção à casa, abre uma portinha de madeira e grita: Mãe, chegamos! Naquela noite, um espantado Mané jantou com os pais de Orna, a mãe o tratando com um bebe e o pai perguntando quem é afinal esse menino? Dormiram juntos no antigo quarto dela e através das paredes finas Mané pôde ouvir diversas vezes o pai perguntar à mãe, "afinal quem é esse menino"? No dia seguinte começaram a viagem de volta, tiveram certo trabalho para colocar Hani no carro que tinha se encantado com a paisagem libanesa. Chegaram ao deserto 2 dias depois, no mesmo dia em que a vizinha com o bebe. Naquela noite Hani entrou na casa de Orna para dormir, lambeu a mão de Mané e deitou-se ao pé da cama. Na casa ao lado o bebe chorava alto e Mané perguntou a Orna se Hani estava estranhando o novo morador. Sonolenta ela responde que não, Hani não estranha nada, me deixa dormir porque amanhã nós vamos até aquele acampamento de beduínos comprar um pouco de haxixe, são 5 km de caminhada. Mané virou pro lado e acariciou Hani, pôs a mão na sua cabeça e percebeu que ela estava deitada encima de um pano. Tentou puxar para ver o que era, mas Hani rosnou baixinho. O pano, com estampa de ursinhos, no dia seguinte enquanto lavava a baba, Mané percebeu que era um cueiro do bebe.. 12/05/2020 Orna episodio 4 Mané está manuseando o container do lixo. É muito difícil prende-lo ao trator, tem que fazer muita força e Hani acha que estão brincando e fica pulando ao seu redor. Mané senta numa calçadinha pensando no que vai fazer, tem que engatar a carreta de lixo e levá-la até o deposito de lixo no deserto. Hani está ansiosa ela adora correr ao lado do trator, mas na volta ela sempre prefere ir de carona com Mané. Ele está ali recuperando as forças, suando e cheirando a lixo e baba de cachorro quando percebe que Orna vem chegando pela alameda. Ela tem um brilho no rosto e Mané credita isso ao fato de que ela o viu e ficou feliz. “Tudo bom, como você está? O que se passa?” Mané explica em poucas palavras as suas dificuldades e ela diz: “vem, vamos engatar esse lixo”! Juntos eles vão até o fundo do depósito e, unindo forças, levantam o engate e, enquanto Mané suspende o aparato, Orna fixa o engate no trator de depois limpa as mãos e diz: “pronto docinho, sempre que precisar de uma força me avise”. Mané sorri amarelo, Hani late e quando ele liga o trator para sair, ela pergunta se ele não estava vendo nada diferente nela e ele para e dá uma olhada, tem aquele brilho no rosto dela, mas não sabe dizer o que é. Ela diz que veio uma esteticista no Kibutz e todas as mulheres tinham feito limpeza de pele, “veja como está lisinho meu rosto. Ele passa a mão no rosto dela enquanto Hani agoniza. Ela encosta a bochecha na bochecha dele, “esta gostoso”? Estava. Hani pula neles, Orna reclama que ele esta fedendo e então sobem todos no trator e vão para o deserto. Anoitecia quando eles voltaram pra casa, limparam a carreta de lixo, encheram o tanque do trator e depois foram tomar banho. Hani cansada, veio nas costas de Mané como uma mochila. Naquela noite depois de jantar Mané experimentou a maciez do rosto dela, ela reclamou que a barba dele estava machucando mais do que antes, estava uma noite quente quando Hani entrou carregando outro cueiro. Da outra casa a vizinha gritou, “Hani, quantos cueiros você precisa” e logo depois o bebe começou a chorar e Orna recitou tudo que fariam amanhã no deserto mas Mané não ouviu nada disso. 13/05/2020 Orna episodio 5 Tinha sido decretado feriado naquele dia. Fora o pessoal da cozinha, que tinha que preparar a refeição das 80 famílias, as pessoas estavam em festa, no dia anterior tinha chegado a notícia do sucesso da Operação Entebe. Mané, que tinha dormido a manhã inteira, saiu de bicicleta com Hani a seu encalço e foi buscar Orna no refeitório. Fez um prato de comida e sentou nos degraus para dividir a refeição com a cadela e Orna chegou apressando-o para irem até a lojinha de frutas na estrada, pois ela precisava pegar uma encomenda com Khaled, o beduíno. Ela sentou no cano da bicicleta e passaram pela área de convivência onde todos congregavam. Havia um cheiro de grama cortada no ar, regadores espargiam água no gramado e o sol desenhava pequenos arco-iris no ar. Crianças rolavam pelo chão e meninas com o cabelo molhado circulavam a esmo. Mané ouviu quando aquele rapaz gritou: “Orna, preciso falar com você, Chuka ligou”, mas quando ela fez um aceno dizendo não com as mãos a bicicleta já ia longe e Mané não tem certeza do que ouviu. Chegaram à banca de frutas e o rapaz que cuidava dela logo soltou Dubi, um doberman preto para que brincasse com Hani. “Ela não esta no cio, está?” Orna e Mané foram para o fundo da loja de onde já se espraiava o deserto. Khaled estava sentado numa pedra, fumando algo muito suspeito, tomando um refrigerante. Ao seu redor jaziam cinco garrafas vazias de Coca-Cola e o cara estava completamente chapado. Orna comentou: “Haxixe com Coca, isso é bom? nunca experimentei!” Ela passou um dinheiro a ele, ele passou um pacotinho a ela. Cada um deu três beijos em Khaled e começaram o caminho de volta para o Kibutz. Mané gritou pro cara da loja que levasse Hani de volta, mas quando pararam para conversar com o sujeito que a havia abordado, Hani já estava junto deles. Mané se afastou com a cadela e ficou observando Orna conversar com o cara. Ambos gesticulavam, não era uma conversa amigável. Mané ouviu as palavras, telefone, falar, não faz sentido e a pior de todas, Chuka. Aquele foi um grande dia para Israel; todos os seqüestrados em Uganda tinham sido libertados e estavam a salvo em solo israelense, mas para Mané, quando encostou a cabeça no travesseiro, permeava o travo amargo da dúvida. Orna estava deitada ao seu lado, disse que estava cansada, mas não dormia. Mané levantou e saiu da casa e gritou por Hani que veio sem o cueiro. Mané lhe ordenou que fosse buscar um cueiro e ela foi, mas quando voltava ouviu-se a vizinha gritar: Hani, quantos cueiros você precisa? E logo em seguida o bebe começou a chorar. Mané sentou com Hani ao pé de uma árvore, era uma noite de verão, os coiotes uivavam ao longe, grilos pipilavam e de tempos em tempos o vigia apitava para que todos soubessem que estava tudo bem. Mané deitou na relva, Hani colocou a cabeça na sua barriga e Mané não escutou quando Orna chamou: “bonitinho, onde está você?”14/05/2020 Orna episodio 6 Lá pela hora do almoço, Orna foi até o armazém de secos onde Mané armava ratoeiras. Mané tinha uma relação difícil com os ratos do deserto, ele sentia ódio quando via um saco de 60 kg de arroz roído e contaminado, mas ficava com pena quando achava os bichinhos presos nas ratoeiras, pior ainda quando tinha que afogá-los. Então ele tentou uma negociação com os roedores e deixava punhados de arroz espalhados pelo armazém, a ver se eles comiam o que estava fora do saco, mas ele teve a impressão que a quantidade de ratos tinha aumentado e eles ainda assim atacavam os sacos. Orna deu-lhe um abraço por trás e uma mordida na orelha onde sussurrou: “tem uma ratazana grande aqui atrás pra você caçar”, o que deixou Mané fora de si. Nem se deram o trabalho de trancar o portão do armazém, Mané tem certo prurido de dizer, mas dirigiram-se rapidamente ao estoque de farinha que é mais macio e naqueles vinte minutos gloriosos, Mané nem percebeu que os ratos tinham atacado aquela área também. Enquanto descansavam Mané bolou um plano para combater aquela praga e dois meses depois todo o estoque do armazém estava suspenso em palafitas protegidas por calços de ferro que os ratos não conseguiam escalar. Um ou outro maluco se atirava pelos caibros de cima, mas nesse momento encontrava a morte certa por aprisionamento ou envenenamento. Mané venceu a batalha contra os ratos, mas vislumbrou uma grande derrota quando Orna, que enrolava a penugem do peito dele com os dedos, lhe disse que ia se encontrar com o Chuka amanhã. (Chuka, ex marido, capitão da divisão de pára-quedistas do exército de Israel). Mané lhe perguntou por que, quem precisa se encontrar com ex maridos e ademais que chance ele teria contra um pára-quedista? Orna gargalhou, Mané não sabe se ela achou graça ou de nervoso. O fato é que Mané não quis mais trabalhar naquele dia. Foram para a piscina, deram banho em Hani e mais tarde ela fez um bolo de maçã com canela que foi devorado em poucos minutos. Um pouco antes de dormir, Hani apareceu com seu cueiro, a vizinha gritou, o bebe começou a chorar e Orna falou pra ele ir junto amanhã pra BeerSheva, ela conversaria por uma hora com Chuka, ele passearia com Hani e depois voltavam ao Kibutz, tinha também que passar no Khaled mas Mané não escutou nada disso. 15/05/2020 Orna episodio 7 Orna e Mané fizeram sinal de carona para um carro que passava e este parou, mas quando viu que levavam Hani, não os deixou subir. Orna gritou enquanto ela acelerava que eles é que não iam querer subir num carro que não leva cachorros, mas Mané entendeu porque talvez o cara soubesse que Hani babava muito. Acabaram viajando de ônibus e o motorista cobrou meia passagem para deixar Hani entrar e insistiu para que ela ficasse sentada ao lado dele, mas Hani não obedeceu e viajou no colo de Orna. Na rodoviária eles combinaram de se reencontrar dali a três horas e Mané questionou se não seria apenas uma, então acabaram fechando dali a duas horas. Mané saiu caminhando pela rua lateral no sentido oposto de Orna e foi visitar o sujeito que tinha lhe vendido uma bicicleta no começo do ano. O cara era do Egito, como Mané, e eles gostavam de conversar em árabe, pois, segundo dizia Mussa, as pessoas aqui em Israel não sabem falar árabe direito, elas tem um sotaque selvagem, diferente do nosso, meu querido. Depois foram almoçar numa pizzaria que vendia pizza em pedaços quadrados. Mané comprou dois pedaços para si e um para Hani, mas resultou que ela comeu dois e ele, um. Mussa perguntou se pizza não fazia mal ao cachorro e Mané respondeu que esperava que não. Toda essa atividade preencheu o espaço de uma hora e trinta então Mané se despediu de Mussa e dirigiu-se vagarosamente à rodoviária, mas Orna ainda não tinha chegado. Sentou perto do ponto do ônibus que ia para o kibutz, comprou pistaches, coca cola e uma garrafa de água para Hani. Ficaram ali comendo e bebendo, Hani gostou dos pistaches, mas Mané ficou achando que a dieta daquele dia ia lhe fazer mal. Orna estava demorando e Mané decidiu pegar o ultimo ônibus e viajou amuado os 50 km que o separavam de casa. Hani percebeu o clima e veio quieta sentada no banco ao lado de Mané. Quando desceram do ônibus, Hani correu para o mato e fez coco, depois foram pra casa, Mané tomou banho estando bem ressabiado e deitou-se na cama para ler, mas em poucos minutos adormeceu. Hani saiu e foi buscar um cueiro, a vizinha gritou, o bebe chorou, mas Mané não escutou nada disso. Acordou no meio da madrugada e tateou até encontrar Hani dormindo, tateou também do outro lado e encontrou Orna adormecida também. Ficou feliz de vê-la ali e resolveu acordá-la. Ela sorriu, desculpou-se pelo atraso e perguntou se estava tudo bem. Mané virou para o lado de Hani e disse que, sim, estava tudo bem. Ela disse que queria conversar, ele disse que não então ela fez uma pergunta e desta vez Mané ouviu: Diga-me só uma coisa, mas seja sincero, você pretende vir morar em Israel? 15/05/2020 Orna episodio 8 De manhã, ao chegar ao refeitório, Mané encontrou Chuka tomando café numa mesa cheia. Mané sentou numa outra mesa com dois brasileiros e fez um sinal a Chuka em resposta a um dele. Orna chegou, sentou-se à frente de Mané sem olhar para o pára-quedista. Mané então olhou pra ela e lhe disse que pretendia vir morar em Israel, sim, mas que de qualquer maneira antes de fazer isso ele voltaria para o Brasil para acertar as coisas com a família. Ela respondeu que se fosse acertar as coisas, ele ficaria por la, já tinha visto esse filme. Os outros que estavam à mesa deram bom dia e se foram, Orna levantou-se e foi se despedir de Chuka que já saia e Mané ficou sozinho na mesa diante da comida que esfriava. Depois do trabalho, Orna e Mané foram caminhar no deserto. Orna queria ir até um local onde tinham avistado uma nova família de cabras selvagens, então eles foram em direção à tenda de Khaled. Hani e Dubi vinham correndo atrás. Orna disse de chofre que Chuka ia se casar de novo, fez questão de ser o primeiro a lhe contar, com uma garota cinco anos mais nova que ele. Mané riu. Orna riu. Você estava com medo?, perguntou. Mané disse, sim estava não sei do que, mas estava, o que você disse a ele? O sol ia se pondo por trás dela, Mané podia ver os cachorros correndo ao longe, Orna passou os braços pelo pescoço dele e ele, passando os braços por debaixo da sua bunda levantou-a do chão e perguntou de novo o que tinha dito a ele. Eu disse, ela disse, “que também vou casar com um jovem cinco anos mais novo”. E eles ficaram ali grudados em silêncio girando no topo da colina, ora ele via os cães, ora ele via o poente, até que chegou uma hora que ninguém via mais nada, ele a colocou no chão, começaram a descer a pequena encosta e enquanto esperavam pelos cachorros ela falou: “mas só se ele vier morar em Israel!” Começava a esfriar no hemisfério norte e a volta para o Brasil estava marcada para dali a dois meses. Orna e Mané estavam aconchegados debaixo do edredon, mãos dadas e em silêncio. Mané estava esperando por Hani, a vizinha tinha jogado fora todos os cueiros e a cadela estava inconsolável. Mané procurou debaixo do colchão e achou um dos cueiros que tinha escondido, levantou chamou Hani, deu-lhe o cueiro e ambos entraram. Mané deitou e cobriu Hani, Orna reclamou que ele estava gelado, Mané a agarrou e disse que ia lhe mostrar seu lado quente. Naquela noite a vizinha não gritou, o bebe não chorou, Orna dormiu esparramada encima de Mané e este não pregou o olho. Durante a noite ele falou que, a bem da verdade, não sabia dizer se viria morar em Israel, que sua cabeça estava num turbilhão, que ele estava dividido e que ele a amava muito, mas ela não escutou nada disso. 15/05/2020 Orna episodio 9 Faltando uma semana para o embarque para o Brasil, Orna e Mané foram ao casamento de Chuka, na cidade onde Orna cresceu. Mané ficou meio deslocado, quem salvou a situação foi Hani que lhe fez companhia o tempo todo. Orna circulava com desenvoltura por entre familiares de Chuka e amigos, Mané teve cinco dedos de prosa com a noiva, cinco anos mais nova, uma russa que falava um péssimo hebraico, mas a conversa foi interrompida por Chuka que, a título de chiste gritou: Orna, venha depressa o menino está querendo trocar de noiva. Em seguida ouviu-se uma gargalhada geral, Mané aproximou-se de Orna e lhe disse que ia esperá-la na casa dos pais. Pelo início da noite, quando Orna chegou, Mané jogava gamão com o pai dela e a mãe estava preparando frango e legumes para Hani. Ela estava de mau humor não quis muita conversa e foi pro quarto. Mais tarde convocou Mané para um passeio pela fronteira e o pai dela lhes disse para tomar cuidado com os campos minados. Que campos minados, perguntou Mané. Besteira, disse Orna. Nos três dias que se seguiram, passearam, comeram, dormiram e foram às compras. De vez em quando o pai dela gritava: menino, você dirige? Sim, então venha quero te mostrar o Líbano. E dirigiam até um chapadão de onde se avistava um vilarejo chamado Marjayun. Nos horários da rezas se escutava “alaaaaah U akbar” e o pai dela dizia que nesse vilarejo tinha mais mesquitas que habitantes. Orna foi levá-lo à Rodoviária no dia que partiu. O motorista encrencou com Hani, mas Orna discutiu com ele e a entrada dela foi permitida desde que pagasse a passagem inteira. Orna ia ficar uns dias com os pais e então Mané voltou com Hani para o Kibutz. Em Tel Aviv, enquanto esperava pelo ônibus para o deserto, Mané foi até a praia. Durante o inverno, o ocaso do dia se dá entre quatro e meia, cinco da tarde. Sentado com Hani numa mureta fria do calçadão, enquanto comiam pistaches metodicamente e observavam a luz do poente que resplandecia até onde alcançava a vista, Mané descobriu que, ao contrário do Brasil, em Israel o sol se põe no mar. Naquela noite Mané questionou-se se aquele era o fim. Tudo estava silencioso, Hani estava na vizinha e Orna em Metula. Mané se lembrou do beijo rápido que trocou com Orna na porta do ônibus, um beijo curto e de lábios frios, se bem que a temperatura estava baixa. Não quero me despedir, ela tinha dito, vai pra casa, mostra pra sua mãe que você se tornou um homem. E depois ela acrescentou: eu vou te esperar muito. Ou teria sido: eu não vou te esperar muito? Mané ficou em dúvida, o motor do ônibus fazia muito barulho, mas bem... Hani entrou com um cueiro. 16/05/2020 Orna episodio 10 O avião pousou no aeroporto do Galeão. Quando Mané pôs o nariz pra fora, não conseguiu respirar. Depois de um ano num clima seco, umidade do ar aliada a um calor de quase 40º, sufocaram Mané que teve que sentar ao pé da escada para não desmaiar. A muito custo conseguiu chegar até a esteira de malas de onde foi direto para a Rodoviária e comprou uma passagem de ônibus para São Paulo. Quem teria siso o idiota que reservara uma passagem para o Rio de Janeiro? Pelo menos encontrou vaga num ônibus leito e o motorista teve que sacudi-lo muito quando chegaram à Rodoviária ao lado da Estação Julio Prestes. Chovia muito e Mané chegou ensopado em casa onde encontrou a avó tomando café. Ué, você chegou quando? Ninguém me avisou. Agora vó, cheguei agora! De onde, da Palestina? Que Palestina, vó, não tem mais Palestina. Dona Colomba, a ajudante de serviços gerais, preparou um lauto café da manhã, Mané contou para a avó histórias sobre o ano que passou na Palestina e no fim ela perguntou por que aquela cara de tristeza, ela achava que era fome e Mané explicou em poucas palavras e no fim a avó perguntou se ele ia ligar pra mãe e ele disse não, vamos fazer uma surpresa quando eles chegarem à noite, tomou banho e disse pra avó que ia tirar um cochilo. No quarto ao desfazer a mala, encontrou o cueiro de Hani e o guardou debaixo do colchão. Hani tinha ido até o ponto de ônibus quando ele saiu do kibutz. A viu sentada esperando, foi até ela e lhe disse pra ir buscar um cueiro, ela foi e trouxe um cueiro. Ele fez um cafuné: boa menina! No Brasil, lá pela três Mané acordou e encontrou a avó tomando café. Ela disse: ué, você chegou quando? Diante do olhar de espanto de Mané ela riu: ainda não estou gaga, vem cá me diga uma coisa: essa Orna, tinha peitos grandes? Como assim, vó, o que importa isso? Importa porque eu sei que você gosta de mulheres com peitos grandes. Eu? Peitos grandes? Como sabe? Ah, a gente arrumou seu quarto quando você foi viajar, encontramos algumas coisas lá, revistas, você sabe. Ele riu. Não, vó, a Orna tem peitos médios. Ah, que bom, ela falou, então você vai conseguir esquecê-la e ficar conosco, meu medo é que ela tivesse peitos grandes, aí ia começar de novo toda essa historia de imigração, chega de imigrações, nós acabamos de chegar ao Brasil. Vem, senta, daqui a pouco chegam sua mãe e seu pai. Sua irmã vem também com os gêmeos. Fim.. Fim. 16/05/2020 Orna, extras. 30 anos depois de ter pisado ali pela última vez, Mané esta na frente do refeitório do kibutz despedindo-se dos antigos amigos. Quase indo embora, o motor do carro ligado, aproxima-se uma mulher que ele não conhecia e lhe pergunta se ele quer o telefone da Orna. Ele estranha e ela explica que são amigas, conhece a história e lhe passa um papel com o número e informa que ela mora numa cidade perto de Tel Aviv. Mais tarde, no hotel, enquanto observa uma nesga de mar, resolve ligar pra ela. Na segunda tentativa, uma voz áspera: “sim”? Tendo esquecido subitamente seu hebraico, Mané perguntou quem falava e ela, antipática, devolve: “com quem quer falar”? Sou eu, do Brasil, lembra, tinham estado juntos naquele kibutz...Ainda seca, ela pergunta se era mesmo a pessoa de 30 anos atrás e, tendo ele respondido que sim, ela falou: “se eu me lembro? porque você acha que eu ia esquecer”? Mané ficou ali, sem palavras respirando e escutando a sua respiração. Depois de um tempo que ele não sabe definir ela perguntou onde ele se encontrava e descobriram que estavam a 20 minutos de distância. Ela se propôs a ir até o hotel, mas ele disse que preferia ir até ela, pensando que, se fosse preciso, podia desistir no meio do caminho e, com o endereço na mão, foi para a estrada e, por diversas vezes no trajeto pensou em abortar a empreitada. A temperatura caiu nitidamente quando chegou. A campainha fez dim dom, dentro da casa uma luz se acendeu e um barulho de chaves fez-se ouvir. Nestes poucos segundos Mané conseguiu se maldizer cinco vezes pela infeliz ideia de ter ido até ali. O que iria falar pra ela? Será que conhecia essa mulher? Será que tinha mesmo acontecido esse romance fortuito ou era fruto de sua imaginação? Enquanto imaginava uma forma digna de sumir dali, a porta se abriu e uma pessoa postou-se sob o batente, parada, olhando fixamente na sua direção. Mané olhou para a mulher e não a reconheceu. A pessoa que abriu a porta teria a mesma idade dela, calculou, no entanto, não parecia ser ela! A mulher começou a falar e fazer sinais frenéticos para que Mané entrasse. Ele reconheceu seu timbre de voz, e a forma impositiva de falar: “Esta frio aí fora, porque está ai parado, entre”! Automaticamente obedeceu à sua ordem e entrou! Aos poucos, enquanto entrava na sala, foi reconhecendo suas feições, um tanto alteradas pelo tempo. Não conseguiu definir se ainda a achava bonita, como da primeira vez que a vira. Os cabelos já não eram negros, tinham uma cor indefinida. Notou o batom vermelho-sangue recém aplicado aos lábios, mesma cor das unhas e, para falar a verdade, parecida com a cor do cabelo. Vestia um agasalho verde e largo, e, nos pés, pantufas. Na sala entupida de móveis, um aquecedor a gás dominava o ambiente e, num sofá, um adolescente assistia à televisão em estado catatônico. A ex namorada sorriu condescendente como aqueles pais que se envergonham das atitudes de seus filhos. Ela serviu chá e perguntou se seria com açúcar ou adoçante. Em seguida passou a dizer que Mané não tinha mudado tanto, que estava apenas mais encorpado e parecia que tinha crescido, parece um homem, disse rindo do seu comentário e começou a falar dos filhos, uma jovem no exército, o menor estatelado no sofá e a mais velha em viagem. Contou que tinha se separado há cinco anos, de Chuka, você lembra, certo? Imagine, casamos e separamos duas vezes. Baixou os olhos e falou que tinha gostado de Mané no passado, mas que o achava muito criança e, porque afinal, não respondera àquelas cartas que ela tinha mandado logo que ele se fora? Aliás, porque Mané não falava nada? Porque não contava como tinha sido sua vida? Passaram algumas horas agradáveis na sala aquecida, às voltas com chávenas de chá e comida. Ao sair trocaram emails e Mané convidou-a a aparecer no Brasil. Deram-se um demorado abraço e assim, Mané virou as costas e se foi novamente. Se é que estivesse buscando alguma coisa, não estava mais ali. 19/05/2020

Talvez uma das lições que fique disso que estamos vivendo seja a de que devemos diminuir a pressão sobre nós mesmos. Quando na juventude Mané repetiu de ano duas vezes considerou que aquela página obscura deveria ser erradicada da sua história e passou a ser rígido no cumprimento de suas obrigações. Mané virou um caxias no campo pessoal, profissional, familiar e social. Mané nunca atrasou uma conta, nunca faltou a um encontro e sempre faz exames médicos no prazo. Sempre deu feed Back a funcionários e cobrou o mesmo de superiores. Monitorou e amparou os filhos estritamente e deu apoio irrestrito aos pais, familiares e amigos que necessitavam. Agora nesse mundo diferente, mesmo sem querer, ele anda deixando algumas coisas pra lá. Faz coisas fora do prazo, outras sequer faz e algumas, por incrível que pareça, está fazendo direitinho. Não que isso deva ser uma regra, não deve, mas parece que nós não precisamos correr tanto e nem manter a rédea tão curta no nosso atribulado dia a dia. Mané sabe que algumas coisas vão ficar mal feitas, outras vão sair defeituosas ou ficarem pras calendas mas aí, diante do quadro, ele se pergunta: o que importa? 25/05/2020

Hoje é feriado, amanhã e depois também, sexta feira tem emenda com o fim de semana e o feriado de segunda. Pronto! Semana que vem é Natal e em duas semanas, feliz 2021! Mané está na Av. Paulista a cumprir uma tarefa essencial. As seis ou sete fileiras de carros à frente, também. Mané observa o carro ao lado com uma jovem e um garotinho no banco de trás. O menino tem um sorvete na mão e olha para Mané, o sorvete está derretendo e pinga no batente da janela que está aberta. Mané sorri para o garoto e avisa por gestos que o sorvete está derretendo. O menino olha abobalhado e mais um grande pedaço de sorvete desliza pela porta. Mané se adianta um pouco e faz um sinal para a garota. Ela lança um olhar mascarado e fecha sua janela. Velho tarado! No banco de trás o menino começa a lamber o sorvete que caiu no carro. Ele lambe os dedos, a janela e a própria perna enquanto o que resta da guloseima escoa pela casquinha abaixo. Lá na frente vem um pedinte pelo meio dos carros. Mané fica temeroso, fecha as janelas e depois se constrange com a própria atitude. Na mão do pedinte um cartaz: sou diabético, tenho câncer, dengue, convide e fome. Mané abre um fio de janela e lhe estende uma nota de cinco. Ele se aproxima e Mané teme que ele encoste sua podridão no carro, mas ele apenas pega a nota com a ponta dos dedos e vai em direção ao sorvete do menino o que deixa Mané tenso. Nesse momento o farol abre e os carros avançam. O estropiado fica parado ali no meio, o garoto coloca meio corpo pra fora do carro, lhe atira o resto do sorvete, depois senta na cadeira e continua a lamber a janela. Mané vê a mãe gesticular nervosa enquanto o carro deles vira à direita. Mané abaixa a máscara e respira profundamente. Mané está numa missão essencial e agora ficou com vontade de tomar sorvete. 21/05/2020

Mãe explica detalhadamente como se faz sambucek. Ah muito fácil: você põe um tanto de farinha, manteiga, fermento e um pouco de sal para fazer a massa. Derrete a manteiga e mistura com um pouco de leite depois amassa até chegar no ponto e abre assim no mármore com um rolo vai afinando e cortando do tamanho de uma cumbuca grande preenche um lado com a massa de queijo parmesão ralado que você já fez antes dobra fechando os lados assim com um garfo põe numa travessa no forno já quente e pincelado com gema de ovo e espera dourar. Muito simples meia hora quarenta minutos come quente uma delícia. Você vai conseguir. Se você achar que é muito em vez de um tanto de farinha põe a metade. Entendeu?18/05/2020

Mané acorda pela manhã e constata que ainda esta por aqui. Preservado no seu canto com a família, Mané tem consciência que lá fora as coisas vão mal. Tem gente fora dessa bolha com quem Mané se preocupa, gente que precisa de Mané ou vice versa. No trabalho vive dias turbulentos. Essa coisa de home Office é ótima, só que não. As pessoas ficam mais dispersas, às vezes somem, não respondem emails e o whatsapp me parece que serve mais pra dizer bom dia do que qualquer outra coisa. Mané constata também que a internet funciona, água e luz também estão por aqui, mas às vezes não estão. “O wifi não funciona”, ah, diz o técnico por telefone, liga e desliga o roteador, como vocês estão usando muito às vezes a memória fica cheia. Wifi tem memória? Será que o wifi se lembra de quando não era usado o dia todo? Às vezes ele fica de saco cheio e se auto desliga? E a Netflix não consome todos os pacotes de dados? Mané assistiu a duas temporadas de Fauda em 3 dias, 16 horas de uso, será que tem limite de internet fixa? Mané liga cinco vezes por dia pra sua mãe e ela dá mostras de que ele poderia ligar menos, 2 vezes talvez? Precisa de alguma coisa, guaraná, um bolo, frutas. Não traz mais nada, ela diz, joguei fora um monte de coisa da semana passada. No começo ficavam escolhendo o que iam almoçar e jantar, cozinhavam, pediam comida chinesa com camarão. “O que querem almoçar?” Qualquer coisa, vejamos o que sobrou na geladeira. Mané ainda sai para andar 4 kilometros todo dia. Um amigo que esta preso em Paris, caminha 1 kilometro e chega às margens do Rio Sena, enxerga a Notre Dame e a Torre Eiffel. Mané anda 2 kilometros e chega na Avenida Cerro Corá, depois anda 2 km de volta pra casa. Mané leu em 50 dias apenas 3 livros, em tempos normais teriam sido 15 ou 20, tem uma pilha ali ao lado da cama e Mané nem olha pra ela. Mané não tem mais em quem dar um esporro, daqueles que desopilam, Milu, esta ficando folgado, todos à sua disposição o dia todo, ontem fez xixi na sala porque saímos meia hora fora do horário. A coisa não vai muito bem. No terceiro dia de confinamento Mané disse pra Salma que “isso não vai acabar bem”, mas Salma respondeu para ele deixar de ser pessimista, temos casa, comida e roupa lavada (passada, não), vamos sair dessa. A morte da Lali abalou Mané que passou a estragar mais ainda seu próprio cachorro. E hoje, mal humorado enquanto fazia suas abluções, Mané leu no jornal uma manchete em que dizia o presidente da XP que na classe alta, o pico da pandemia já passou. O que ele quis dizer com isso? Será que o Corona transformou todos em idiotas, presidentes, governadores, prefeitos, empresários, homo sapiens, viraram todos idiotas? Os investidores da XP estão a salvo, Mané vai abrir uma conta lá. 06/05/2020

Dezesseis anos atrás levei uma cachorrinha vira lata pra minha mãe. Eu e minha filha queríamos dar um nome melodioso pra ela então a chamamos de Lali e a tiramos de um pet shop onde tinha sido abandonada, tinha uns três meses. No pit stop que fizemos em casa antes de levá-la à minha mãe, ela mijou e cagou pelo tapete umas seis vezes. Não foi sem alegria que a entreguei à sua nova dona. Três anos passados Lali engravidou e eu herdei um dos filhotes, o famigerado Milu. Lali era preta, teve dois machos, um preto e um branco e uma fêmea, branquinha. Nós ficamos com o preto, por ser igual à mãe, mas, para nossa decepção, com 3 meses ele ficou cinza e hoje ele é mais branco ainda. Lali teve câncer nas mamas, há uns anos, foi operada e tratada. Mais recentemente teve problema nas costas, fazia acupuntura, tomava um montão de remédios e foi perdendo a vivacidade. Andava pela casa atrás da minha mãe, esperava-a na porta do banheiro quando não entrava junto. De vez em quando, "Lali está passando mal", e la íamos nós ao veterinário, injeções, pílulas, mais acupuntura, ração especial, Omega 3, um arsenal. Uma semana atrás não se levantava mais, fazia as necessidades sobre si própria, não comia, um inferno. Foi internada, soro, exames, picadas. Não quisemos que ficasse mais que um dia no hospital e ela voltou pra casa pior ainda, mais remédios, o veterinário sugeriu enfiar um tubo pra alimentá-la, interná-la novamente, mas sem garantia de sucesso ela parecia em estado de choque, não comia, fazia as necessidades, bla bla bla. Voltou pra casa de novo. Ontem ela teve uma consulta de retorno e o médico a desenganou, câncer avançado no pulmão, dores generalizadas, água no pulmão, eu perguntei se devíamos abreviar o seu sofrimento e assim fizemos. E foi uma das piores coisas que fiz na vida. Pedi desculpas a ela enquanto ainda vivia, mas não sei se ela entendeu. As pessoas dizem que foi um ato de amor, mas eu não acredito. No dia anterior, ela dormiu no meu colo por uma hora ou mais, isso era amor. Fiquei com ela até o fim, limpei a ramela de seus olhos que não se fecharam e voltei pra casa de minha mãe sem a Lali. Eu a levei um dia e a tirei no outro dezeeseis anos depois. O Milu, como sempre, senta na minha frente e fica me olhando quando chego em casa. Será que ele sabe o que fiz? Será que ele me perdoa? Morte digna, parar com o sofrimento, como isso estava afetando minha mãe idosa nesses tempos, tudo são palavras ao vento. Não me parece que eu vá me perdoar algum dia, pra onde eu olho vejo o olhar da Lali antes do fim, eu fui a ultima pessoa que ela viu e esse olhar vai me causar calafrios pra sempre. 05/05/2020