sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Mané espera sua condução. No meio daquele recinto cinzento, uma mulher sorria. Não uma qualquer. Tinha a pele suavemente dourada pelo sol. Olhos verdes com grossas sobrancelhas que os emolduravam. Lábios carnudos e um narizinho que não se consegue definir. Uma deusa. Da testa lisa, emergia uma cabeleira negra, parcialmente presa por um rabo de cavalo. De tempos em tempos escorria uma mecha pelos lados que ela delicadamente afastava. A perfeição em forma de mulher olhava e sorria para Mané enquanto ele, espantado, tentava controlar o tremor que ameaçava tomar conta de si. Nunca uma mulher lhe sorriu daquele jeito. Sobem no coletivo e sentam em extremidades opostas. Para onde vai uma beldade dessas? Mané tenta olhar sem ser visto e percebe que ela continua sorrindo. Ela lhe sopra um beijo e faz um aceno. A viagem já está pela metade e o ônibus para numa cidadezinha. Algumas pessoas descem e Mané a perde de vista. Seu coração dispara e ele entra em pânico por tê-la perdido. Quando percebe já chegou ao fim da linha e o motorista olha nervoso esperando que ele saia do transe e desça. À noite, sem vontade de comer, deita com a sua frustração e adormece agitado. Quando amanhece sai para o trabalho. Ele volta todas as tardes para rodoviária a ver se a encontra de novo. Tem taquicardia desde aquele dia. O oxigênio lhe falta. Fala com as pessoas, trabalha, mexe com papeis, faz reuniões. Em tudo a vê. Sente o amor fluir pelo seu corpo, e isso dói! Vai procurá-la todo dia na estação com renovada esperança. Fica lá postado durante horas, até o último ônibus. Nem sinal dela. Já decorou o caminho, cada poste lhe é familiar, cada calçada parece uma velha conhecida. Três semanas consecutivas nesse desatino e nada! Além da esperança perde a confiança em si, passa a duvidar da sua sanidade mental, enlouqueceu por causa de um olhar! O tempo se torna seu aliado e inimigo! Meses depois, só se lembrava da deusa para rir de si mesmo quando, um dia, lá estava ele de novo na tal estação. Entra no ônibus e, então, uma batida na janela. Tenta abrir o vidro e quando consegue, meses de autocontrole saem pelo vão que se abriu. Ela estava do lado de fora e acenava. Linda! Lembra vagamente de sair do veículo e se vê, uma hora depois, sentado na plataforma olhando cada rosto e fazendo perguntas idiotas para os passantes. Alguns olham como se fosse lunático, outros tentam ajudar. Refaz o caminho por onde a viu sair, dez, vinte vezes. Nenhum rastro, nem um cheiro! Mané estava obsessivamente apaixonado. Naquela noite sonhou que eram amantes. Ela lhe ofereceu todos os lábios. Mornos. Macios. Suculentos. Os corpos se colavam, vibravam e suavam. Ela estremecia em seus braços e entregava-se aos seus caprichos, obediente. Parou de viver. Davam-lhe conselhos. Seja sensato! Você alucinou, esquece! Foi grosseiro com quem tentou ajudar: “Não estou interessado em conselhos. Procuro uma mulher linda, como jamais vi. Ela tentou me seduzir e depois desapareceu. Sumiu na neblina. Preciso saber um nome, um telefone ou endereço. Esvaziado e dependente daquela mulher, outros meses passaram. Noite destas, Mané estava sentado numa lanchonete, com dois amigos, de costas para a entrada. De repente, uma inquietação, um sobressalto, um frio na espinha. O sanduíche forma uma bola que se recusa a descer pela garganta, a bebida lhe sai pelo nariz. O coração dispara e Mané começa a suar frio. Por trás, duas mãos macias e cheirosas lhe cobrem os olhos. Ele escuta uma voz doce e cálida: “Adivinha quem é?” Mané tomou suas mãos entre as dele e tentou, com sofreguidão, beijá-las. Mané virou a cabeça para olhá-la e era ela, a deusa, em carne, osso, em toda sua divindade. Difícil repetir aqui as palavras saídas de sua boca, faladas tão de perto precedidas pelo seu hálito morno e perfumado. Enquanto fixava os seus verdes olhos assustados nos de Mané, ela disse: “Meu deus, me desculpe! Nossa, que vexame, me perdoa, por favor. Pelo amor de deus, pensei que fosse o Jamal”!12/12/2020

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