sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Que Mané trabalhou por muitos anos num grande banco, cujo prédio ficava na Praça do Patriarca, no centro velho de São Paulo, isso todos já sabem. Era o começo dos anos 80, ele estava em início de carreira e não lhe causava espécie o fato de ter que freqüentar todo dia aquele pedaço deteriorado da cidade. Da sua janela privilegiada no 18º andar assistiu às grandes e pequenas coisas que movimentaram a vida dos paulistanos naqueles anos. Lá do alto viu, por exemplo, o coronel Erasmo Dias reprimir passeatas de estudantes com cassetetes, bombas de gás e brucutus, foi testemunha de um grande quebra-quebra ocorrido na Rua Direita e imediações, e também espectador privilegiado das grandes passeatas e dos comícios em prol das diretas-já no Vale do Anhangabaú. Até tentativas de suicídio presenciou. No verão, todo final de tarde testemunhava aquele aguaceiro que interrompia trânsito e fechava uma passagem de carros que tinha entre o final da Nove de Julho e o início da Tiradentes, conhecida como "O Buraco do Adhemar", depois substituído por um túnel, mas que ainda transborda a cada chuva. Alguns destes acontecimentos passaram para a história e outros, por serem de somenos, ficaram para as calendas. Certo dia, da privilegiada janela, onde observava um pôr do sol glorioso, que se dava no distante Pico do Jaraguá, detectou um ajuntamento de pessoas na esquina da Praça do Patriarca com a Rua São Bento. Havia um homem agachado que parecia procurar alguma coisa, os outros, inclusive uma dupla de policiais, observavam e conversavam entre si. Como a pequena multidão não se dispersava, Mané desceu para conferir o que se passava. Um senhor idoso, suado e nervoso, tinha levantado do chão e tentava espanar o pó das calças. Passava a mão pelos cabelos brancos e, a cada segundo, punha a mão no bolso a verificar se faltava alguma coisa. Perguntei para um dos que assistiam se tinha havido um assalto, e este me respondeu que não, que o homem vinha andando pela rua em direção da Praça da Sé. Como sabem, essas ruas são muito cheias, de forma que as pessoas andam nelas em mãos de direção, como se fossem carros, e é muito difícil passar de uma mão para outra o que, devido ao movimento intenso, pode até ser perigoso. Se você está à esquerda e quer entrar num prédio que fica à direita, tem que pensar na estratégia com antecedência sob pena de não conseguir efetuar a manobra. Pois o tal senhor idoso, percebeu tardiamente que perderia a entrada do local onde pretendia ir e, num gesto brusco, tentou atravessar a corrente humana que vinha em sentido contrário e acabou levando uma trombada de uma senhora gorda. Tendo sido acertado na boca do estômago, curvou-se de dor ao mesmo tempo em que abria a boca para tentar respirar e nesse movimento, acabou deixando cair sua dentadura, que foi ao chão. Ele dizia ao policial que, da última vez que tinha visto a dentadura, ela estava sendo chutada por um cavalheiro bem vestido. Que ele tinha certeza que fora sem querer e que os dentes tinham sido chutados na direção da Praça da Sé. O guarda perguntou se a dentadura tinha alguma marca ou identificação que facilitasse o reconhecimento, pois ele precisava do maior número de detalhes para que fosse tudo esclarecido no BO. A vítima, com as bochechas chupadas, respondeu que além do fato dela ser de acrílico e ter a cor de dentes amarelados e gengivas, não possuía nenhuma marca particular e o guarda desanimado respondeu que assim não dava que ele tinha que descrever melhor os fatos para que a polícia pudesse ajudar. Já abatido e sem esperança de reaver a sua dentadura, com a mão na boca para evitar perdigotos e a vergonha de estar sem dentes na boca, o senhor tentava de toda maneira encerrar o episódio. A senhora gorda que tinha atropelado o homem, disse que aquele que chutara a dentadura tinha sido visto entrando no Metro da Estação São Bento e um boy jurava que uma dentadura quebrada tinha sido achada bem pertinho do Pátio do Colégio e que uns moleques tinham-na entregue ao pároco da Catedral da Sé. O guarda, que não conseguiu lavrar o BO, ainda tentou ser conciliador e fez menção de avisar o pessoal da limpeza pública que podia achar o artefato na varrição diária que faziam. Enquanto se afastava, Mané ainda ouviu o homem dizer que não fazia mal, a dentadura estava frouxa mesmo senão não tinha caído. Voltou à sua janela para terminar o que fazia trancar as gavetas, pois, como disse anteriormente, este acontecimento não teve a menor importância. 10/12/2020

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