sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Nos últimos sete meses Mané esteve umas dez vezes no escritório. Num cenário vazio, foi pegar algum documento, um teclado pra substituir o de casa que quebrou, salvar arquivos em um pendrive pra levar, resolver alguma treta com os plantonistas e sentiu-se como se estivesse saqueando o que outrora fora sua vida. Seu gabinete de trabalho, que está sob chave, antes era um local agitado de onde muitas vezes Mané sentiu vontade de fugir. Hoje repousa ali muita poeira apesar dos esforços semanais da Kelly ou da Maria em deixar o local com algum ar de vida. Nesses meses longe da ONG, Mané fez tudo de casa, pagou salários, encargos e contas, pra ser exato três milhões oitocentos e noventa e seis mil novecentos e quarenta e um reais e setenta centavos, saíram do computador de casa desde o dia dezessete de março e tudo isso sem ver a cara das pessoas, sem uma briga, nem nenhuma desavença ou quiprocó. Também não aconteceram as festinhas dos aniversariantes, não houve alvíssaras, apesar de existirem motivos, sequer uma mijadinha no banheiro recém lavado foi despejada neste período. Toda vez que Mané adentra àqueles espaços vazios se pergunta se algum dia a coisa vai voltar ao que era, pensa que uma interrupção dessa nesse momento, com essa idade pode trazer consequências definitivas, a vida vai se transformando numa coisa irreal, um filme distópico ao qual parece assistir. Mané termina o que veio fazer e levanta da sua cadeira vermelha e percebe que a manga do seu moleton branco que estava apoiada no tampo da mesa ficou suja e antes de sair resolve dar uma chamada na garota dos serviços gerais e ela diz que nem sempre a sala está aberta, "quer que limpe todo dia?", mas Mané responde que não, que deixe pelo menos o pó aproveitar o espaço. Saiu de lá achando que, assim como ele, ela não está entendendo nada. 18/10/2020

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