sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Uma garota ruiva - episódio 1/5 Na juventude, Mané fez parte de um movimento juvenil sionista que, além da sua função social, promovia a educação do jovem pelo jovem com ênfase nos laços com o Estado De Israel. Com atividades culturais semanais e acampamentos nas férias, uma atividade muito difundida neste meio era o “ataque à bandeira”. Não era lá aquelas coisas em termos pedagógicos, incitava competição e podia ser meio violento, mas era bom. Consistia na formação de dois grupos, sendo que um atacava e outro defendia e o objetivo era roubar/defender a bandeira de algum acampamento que estivesse ocorrendo e servia para fortalecer o companheirismo e a união, além de ser divertido. Poderiam ser dois grupos do mesmo acampamento ou um grupo externo que vinha “atacar” o local. Aos vencedores cabiam algumas regalias e depois tudo acabava em confraternização. Parece bastante emocionante, não? Toda essa introdução serve para contar que num mês de férias, num passado agora distante, Mané e mais quatro amigos zanzavam pela cidade sem ter o que fazer. Um deles teve então a brilhante idéia: "vamos atacar as cariocas em Teresópolis"? As cariocas em questão eram as meninas da sede do Rio, o sonho de consumo dos meninos de São Paulo. Todas lindas, pelo menos assim se achava, tinham feito amizade alhures num acampamento de férias de âmbito nacional. Decidiram rápido. O patrono da idéia era o único que tinha carta de motorista e, sendo assim, resolveram "roubar" o carro dos pais dele e encararam uma viajem de quase dez horas até Teresópolis. É claro que deu tudo errado, chegaram ao local de madrugada, todos dormiam e a bandeira jazia abandonada ao pé do mastro. Ao invés de roubar a bandeira, foram assaltar a despensa. Satisfeitos e mortos de sono, entraram nos dormitórios, procurando um lugar para dormir. Com todas as camas ocupadas, vagaram de quarto em quarto em busca das suas amigas. Ficaram surpresos de não encontrá-las e logo descobriram que tinham atacado o acampamento errado. Estavam, na verdade, na atividade de grupo pouco mais novo, pessoas que não conheciam direito. Não se deram por vencidos e escolheram, a esmo, um dos quartos que estava ocupado por cinco garotas. Entraram, disseram olá e, depois de esfarrapadas explicações e tentativas de identificação, perguntaram às apavoradas jovens se podam dormir ali. Acirradas argumentações tiveram curso na tentativa de convencê-las. Elas acabaram concordando oferecendo-lhes o chão empoeirado para deitar. O mês era julho, o local Teresópolis, o frio polar e o chão não parecia muito bom para dormir, na verdade parecia péssimo. Argüiram dizendo ser desumano deitar no chão, corriam o risco de pegar uma pneumonia, precisavam de camas para dormir, afinal de contas tinham viajado por dez horas seguidas, etc, etc. As donas de cinco pares de olhos que olhavam assustadas não pareciam comovidas com a peroração, no entanto, uma delas, uma ruiva com a pele muito branca, resolveu perguntar, então, qual seria a sugestão. Responderam que gostariam de dormir nas camas delas, um em cada, junto com elas, é claro que numa boa, no maior respeito, só para dormir. Ouviu-se um rebuliço no quarto, "nem pensar" foi a coisa mais agradável que disseram, mas, a ruiva, que achava ter reconhecido Mané, contemporizando, disse que concordariam, desde que dormissem totalmente vestidos, cada um dentro de seu sleeping, numa distancia que não provocasse roçadas indesejáveis durante a noite. Toparam de imediato, as meninas demoraram um pouco mais, mas o fato é que assim foi feito. Cruzando com o olhar esverdeado da ruiva, Mané se apressou a esticar o sleeping ao lado dela que já tinha escorregado para o canto oferecendo espaço. Com a cabeça ao lado dos seus pés, esticou-se no colchão, tentando fazer-se confortável. Depois da agitação que se seguiu enquanto todos se ajeitavam, cessaram os protestos e indignações e o quarto já ia mergulhando no silêncio, quando Mané sentiu vontade de fazer xixi. Perguntou onde ficava o banheiro e a ruiva, mal humorada, indicou o local no fim do corredor. Quando voltou, aliviado, já ia deitando quando ela diz que, se dormissem do avesso, ela corria o risco de levar chutes no rosto e sugeriu que Mané dormisse na mesma posição dela. Disfarçando a emoção, ele virou o sleeping e deitou acabrunhado ao seu lado, colocando os braços por trás da cabeça, para dormir virado de barriga para cima e o mais longe possível da moça. Minutos depois, Mané começou a escutar sua respiração compassada e, percebendo-a adormecida, relaxou e se ajeitou melhor, mesmo que com isso tenha sido obrigado a encostar uma coxa na sua, mas só um pouquinho. É claro que Mané demorou pra dormir, é claro que sua imaginação voou para distancias estelares, mas o suave ressonar da moça não deixava dúvidas sobre o que acontecia ali. Horas depois, quando conseguiu conciliar o sono, ela resolveu se virar e, nesse movimento, seu braço acabou agarrando o pescoço dele, mas, mesmo sufocado, tentou não se mexer para não acordá-la e, além do mais, aquele estranho abraço passava uma ótima sensação de intimidade. Quando acordou, o sol já ia alto. Lá fora dois membros do grupo de Mané tentavam dar explicações aos enfurecidos monitores. Depois da tensão inicial, risadas! No final, tudo acabou bem. A ruiva, que entrava no quarto neste momento, dirigiu-lhe um melodioso bom dia e acusou-o de roncar durante a noite. O dia passou agradável e, de tardezinha, pegaram a estrada de volta para São Paulo. Da sua aliada, com quem passara a noite, só teve notícias tempos depois. 28/12/2020 Uma garota ruiva - episódio 2/5 Dois anos e meio após os eventos em Teresópolis, Mané se encontrava numa excursão pelo deserto do Sinai. Estava indo para o Monte Sinai a comemorar a libertação dos judeus do Egito do jugo dos Faraós, no exato local da ocorrência dos fatos. Além do cunho espiritual, a viagem tinha também motivações terrenas. No caminho para o sítio onde foram entregues os Dez Mandamentos pululam balneários paradisíacos às margens do Mar Vermelho. Águas cristalinas e piscinas de coral rivalizam com o significado espiritual que têm os caminhos percorridos por Moisés e sua turma. Mané e sua própria turma, porém, além de dispor de menos do que 40 anos para o passeio, estavam mais interessados, nas praias de Dahab, Nueba e Sharm El Sheik, ninguém pensando muito em sarças ardentes ou Tábuas da Lei. Dentre os balneários citados, Nueba despertava maior curiosidade, não que fosse mais belo ou pitoresco, mas por se tratar de uma praia onde se praticava o nudismo. Não que fossem tarados, apenas adolescentes curiosos. Chegando à praia, os monitores os reuniram perto do ônibus para algumas instruções. O guia, um argentino, informou estarem numa praia de naturismo onde andar pelado era natural, que ficassem todos à vontade. Risos. Podia-se olhar as pessoas, porém isso não deveria ser feito de maneira acintosa ou ofensiva. Risinhos. Caso aparecesse uma mulher com tudo à mostra, deveríamos agir com naturalidade e respeito. Mais risinhos. Para as meninas, alertou para o fato de poderem se deparar com rapazes com “el pene" aparente, e isso não deveria ser motivo de espanto. Muitos risinhos e cochichos. Em pequenos grupos partiram a explorar o paraíso. Demorou algum tempo até que aparecesse alguém pelado. Os primeiros foram dois homens. Vinham na direção contrária, trajados de tênis e de mochila nas costas. Era possível ver os "penes", balançando ao sabor da caminhada. Reagiram com naturalidade aos poucos nudistas que passavam por eles e a verdade é que, em pouco tempo, a novidade quase perdeu a graça. Quase. Mané resolveu passear sozinho e se dirigiu para uma curva da praia que parecia deserta. Caminhava pela beira da água deixando as ondas lamber os pés quando, ao longe, viu duas pessoas deitadas na areia. Aproximou-se devagar tentando ver se eram conhecidas. Conforme chegava, pôde ver que uma delas possuía uma cabeleira ruiva. Eram duas mulheres, uma ruiva e outra morena, tomando sol. Peladas é claro! Imaginou reconhecer a ruiva, mas, depois, pensou que era impossível. No entanto, passando ao lado delas, deparou-se estupefato com a garota de Teresópolis. Fez-lhe sombra com o corpo e saudou-a animado. A primeira reação dela foi abrir os olhos. Colocou a mão na frente para tapar o sol e depois, numa fração de segundos, levantou-se de supetão, tentando cobrir o peito e a virilha. Completamente nua e sem graça, ela respondeu: "nossa, que coincidência!" Mané lhe ofereceu uma camiseta para que se cobrisse e saísse da posição contorcionista enquanto a morena ia se vestindo disfarçadamente. Voltando pelo caminho que ele tinha vindo pouco depois, ela contou que estava lá de férias e tinha dado uma fugida pro deserto. Juntou-se à excursão de Mané por aquele dia. À noite, debaixo das mesmas estrelas que guiaram o povo judeu rumo à Terra Prometida, deitou para dormir ao lado de Mané, sobre as areias do deserto. Atirada, sugeriu abrir os sleepings para que ambos deitassem sobre um deles e se cobrissem com o outro, praticamente uma cama de casal. Enquanto lucubravam sobre a estranheza desse encontro, tão ou mais estranho que o primeiro, ela se aninhou nos seus braços. Fazia frio. Aconchegados um no outro e tendo só o firmamento por testemunha, ela sussurrou que tinha percebido muito bem que Mané encostara-se à coxa dela, naquela noite em Teresópolis. Ele respondeu que só tinha encostado por ter percebido suas intenções ao pedir para dormir cara-a-cara e também por causa do forte abraço que lhe dera durante a noite. Riram um pouco e um clima romântico se instalou na escuridão quando ela lhe deu um beijo. Lutando contra o sono, Mané começou a falar sobre a magia do lugar, sobre o significado de reencontrá-la ali e sobre tudo aquilo que teve vontade de lhe dizer em Teresópolis, mas não tinha tido chance. Enquanto falava, julgou escutar aquele ressonar delicado, ao qual ele já estava se habituando e, olhando para se certificar, percebeu que a moça dormia. Tentou não se mexer para que ela não acordasse, nem mesmo uma pedra que lhe furava as costas tirou, para não incomodá-la. Sem pregar o olho, nem ligou que ela babava no seu ombro. Ao invés, considerou ser um sinal de confiança e entrega. No dia seguinte o grupo de Mané se aprofundou no deserto do Sinai enquanto ela voltou para o norte. Da sua companheira de deserto, só teve notícias tempos depois... Continua...29/12/2020 Uma garota ruiva - episódio 3/5 Mané estava formado há um ano. Trabalhava num banco cuja sede era no Rio de Janeiro. Pelo menos uma vez por semana tinha que ir ao Rio para uma reunião, pois a matriz estava para ser transferida para São Paulo e ele fazia parte da equipe de transição. Apesar do ritmo puxado, as viagens eram prazerosas, Mané era solteiro e, às vezes, passava dois ou três dias por lá, sempre com bastante mordomia. Fazia cinco anos que tinha voltado de Israel e a ideologia, assim como as lembranças do que tinha vivido, estavam tão longe quanto o Oriente Médio. Numa dessas idas ao Rio liga uma amiga que tinha estado com ele naquele ano em Israel. Ela pergunta quando é que ele voltava para São Paulo. Mané responde que em dois dias pegaria uma ponte aérea no final da tarde. Ela pergunta se ele se importaria em cancelar o avião e voltar com ela, pois estaria indo para São Paulo levando um carro. Pensando bem, Mané achou que não fazia diferença, era uma amiga querida, seria até agradável pegar a estrada, colocar a conversa em dia. Ela vibrou, estava com medo de ir sozinha, agradeceu e disse que ligava depois para os detalhes. No dia marcado ela liga, dizendo que tinha havido um problema e que ela não poderia viajar. Inicialmente Mané ficou bravo, pois já tinha devolvido a passagem e não sabia direito o que fazer assim encima da hora, ao que ela fala para ele não se preocupar, pois ela não poderia ir, mas o carro não só poderia como deveria, e se Mané se importava em levá-lo. Cariocas, pensou, não se pode confiar neles! Sem opção passou na casa dela para pegar o carro e enfrentar a solitária viagem de volta. Ele a encontra feliz e sorridente dizendo que tinha resolvido tudo e que ele não mais viajaria sozinho. Tinha falado com uma amiga que, por acaso, estava indo a São Paulo e se dispôs a acompanhá-lo. "Mas eu nem a conheço", protestou. "Que é isso! Você vai amá-la, ela é sensacional e, além do mais, vocês vão ter seis horas para se tornarem íntimos". Enquanto fazia um lanche, Mané ficou remoendo a confusão em que se metera e, nesse entremeio, a tal amiga chegou. Pensava sobre o que poderiam conversar dois estranhos durante uma tão longa viagem e não logrou ter nenhuma idéia. Enquanto comia tentando se conformar, levantou a cabeça no momento em que elas entravam na cozinha e, para seu deleite, deparou-se com a garota ruiva do Sinai e Teresópolis. Ficou alguns segundos sem fala, sem perceber que estava com a boca aberta, deixando à mostra pedaços do pão semi mastigado. Depois de recobrados da coincidência, preparam-se para a viagem e mergulharam no transito em direção à Via Dutra. Matraquearam sem parar durante algum tempo, relembrando os dois encontros anteriores, da audácia de Mané em Teresópolis, sete anos e meio atrás e do arrojo dela no Sinai, cinco anos atrás. Ela reclamou que, no episódio de Teresópolis, tinha só 16 anos, que absurdo invadir a cama de jovens donzelas! Ao que eu respondi que no Sinai, no entanto, ela me parecera bastante crescida, apesar dos seus parcos 18 anos! Depois de um bom pedaço de estrada, o motor começou a falhar. Quando encostou no posto, Mané estava quase arrependido. Enquanto aguardavam um telefonema da seguradora, o bom humor dela em relação ao contratempo, fez com que Mané não se abatesse e ele quase nem se importou com o fato de que teriam que passar a noite por lá, pois a seguradora, informava que não havia socorro disponível no momento. Resolveram relaxar e, rindo da fria em que estavam, dirigiram-se para um motel de estrada que o frentista indicou. Foi estranho chegar a um motel a pé. Foi estranho entrar num quarto rosa, carpete vermelho e com espelhos no teto com uma pessoa quase desconhecida. Foi estranho tomar banho de espuma juntos e foi muito estranho deitar com ela num colchão de água redondo. Foi estranho, sem dúvida, mas foi um espetáculo! Pouco depois de jantar, alimentados e lavados de corpo e alma, recostaram-se no tal colchão e ligaram a TV. Mané tomou cuidado para não se fixar no canal onde passava um filme pornô, não queria forçar a barra nem parecer afoito. Ela, contudo, mostrou-se interessada e ficou prestando atenção às cenas de sexo. Sete anos e meio tinham passado desde a primeira vez que a vira. Mané acordou de manhã sentindo-se sugado pelo colchão de água. Ela dormia praticamente encima dele, se não fosse pela tonalidade da pele, ninguém conseguiria saber qual perna era de quem. Mané tentou desfazer o nó com cuidado para não acordá-la e pediu o café da manhã. Mais tarde seguiram viagem rebocados por um guincho. Esparramados no banco de trás do carro que ia sendo puxado, perguntaram-se se iriam, pelo menos uma vez na vida, encontrar-se de um jeito normal. Passando por Pindamonhagaba, ela adormeceu com a cabeça apoiada na barriga de Mané. Ressonava suavemente quando passaram por Jacareí. Pouco depois, em São Paulo, antes de ela descer do táxi, Mané ganhou um beijo na boca e uma recomendação: "Me liga"! Tarde demais percebeu que não tinha o telefone dela. Da caronista que trouxera para São Paulo, só teve notícias tempos depois... Continua...30/12/2020 Uma garota ruiva- episódio 4/5 Mané acordou com pressa. É sempre trabalhoso sair para passeios de qualquer tipo com a família, que dirá para uma viagem ao Rio. Ele queria pegar a estrada logo para evitar o transito e chegar cedo. Mané foi ficando impaciente e reclamou da quantidade de roupas e trecos. Salma replicou que nesta época do ano a temperatura pode cair, então tínhamos que levar roupas para frio e para calor. Frio? No Rio de Janeiro? Para não discutir, Mané foi acordar Samira que não dava sinais de vida. Iam para o casamento tardio de um amigo. Achavam que ele não mais casaria, já habituados a ele como solteirão inveterado. No entanto, com mais de 40, tinha finalmente encontrado a sua outra metade. Ia casar com uma carioca e mudava-se de volta para o Brasil, depois de uma temporada nos Estados Unidos. A noiva tinha exigido que o casamento fosse no Rio. Mané viajou de carro, achou que podia ser agradável, afinal, iam ficar quatro dias por lá, seria bom estar motorizado. Pelo meio da tarde estavam na Av. Brasil e seguiam as placas em direção às praias. O Rio de Janeiro continuava lindo! No Flat, depois de instalados, Mané perguntou se estavam a fim de pegar uma piscina ou ir à praia. Ficaram na piscina. No dia seguinte fizeram turismo: Pão de Açúcar, Cristo, calçadão, chopp e almoço. Depois de breve descanso, Salma começou os preparativos para o casamento que se daria à noite. Mané saiu com o noivo a fazer os últimos arranjos. Não parecia nervoso e dizia que essa era a única vantagem de casar depois de velho. Sobre a noiva, fazia mistério, disse que Mané iria gostar muito dela, e que ela estava casando pela terceira vez. Disse ainda que era bonita e inteligente, que tinham se conhecido num museu, onde ela trabalhava. Contou que era, claro, carioca, que tinha morado, além dos Estados Unidos, na Europa e também em Israel. Encantado, finalizou dizendo que tinha uma característica física que chamava muito a atenção: era ruiva! Mané ficou com a pulga atrás da orelha. Ruiva, carioca, Israel...Não, não, pensou consigo mesmo, era impossível. Seria uma trágica coincidência! Tentou não focar naquilo e voltou para o Flat em estado de atenção. Procurou pelos seus e os encontrou curtindo o final da tarde à beira da piscina que tinha vista para a Lagoa. Água de coco e a paisagem o fizeram quase esquecer do assunto. Um banho reparador e uma soneca completaram o serviço. O casamento se daria num clube e, para se chegar ao local da cerimônia, uma pequena ilha, os convidados tinham que pegar um barquinho. Muito charmoso! Quando chegaram, as pessoas se acotovelavam a espera da noiva. O noivo, suando em bicas, capitulara ao nervosismo. Quando iniciaram os acordes nupciais, Mané baixou os olhos para não ver. Devagar, foi levantando a cabeça, e viu uma silhueta da qual lembrava. Tinha a cabeleira ruiva enfeitada com flores e no rosto mais sardas mas o cabelo flamejante, continuava o mesmo. Mané não conseguiu acreditar no que via. Na passarela, a poucos metros do seu nariz, lá estava a garota com quem dividira a cama em Teresópolis, o sleeping no deserto do Sinai e um colchão de água num motel da Via Dutra. Mané entrou em transe. Fez malabarismos para fugir dos noivos e ninguém conseguia entender qual era o motivo da sua demora para cumprimentar o amigo. Pelas tantas, sem escapatória, foi cercado pelo casal e, finalmente, seus olhos cruzaram com os dela. Aquele sim foi um encontro muito, mas muito estranho! Eufórico, o amigo dizia que tinha certeza que eles iam se dar bem e, virando para a noiva: daqui pra frente, vocês também serão amigos! Entre sorrisos, Mané apresentou Salma à ruiva e falou algumas bobagens indo depressa se perder na multidão. Tarde da noite, com Samira capotada nos braços, despediu-se do casal que partiria em lua-de-mel. Inexorável e a vida seguiu seu curso. Os dois foram morar a algumas quadras de Mané e tiveram dois filhos. Às vezes Mané a encontra com as crianças na padaria, às vezes iam juntos ao clube e, num dia desses, acabaram por ficar a sós, os filhos bulindo por ali. Mané teve ímpetos de repisar o velho assunto e quase perguntou se podia considerar que a acidentada história deles tinha sido superada. Enquanto a observava afastar uma mecha do cabelo ruivo, percebeu que, depois de tantos anos de um relacionamento tão distante quanto intenso, eles estavam, finalmente, tendo apenas um encontro normal. Nesse momento ela se afastou para acudir um dos meninos e, diante daquela cena maternal, Mané resolveu que o melhor era ficar calado. Continua...31/12/2020 Uma garota ruiva - episódio 5/5 Avesso a festas, Mané resistiu o quanto pôde à idéia de Samira que queria comemorar seu aniversário de 90 anos. Corria o ano de 2045, o mundo tinha finalmente se acalmado depois do terror causado pela serie de pandemias anos atrás. A China finalmente assumiu seu lugar de potência depois da queda do império americano. Israelenses e palestinos encontraram o caminho para a paz depois de 100 anos de luta encarniçada. Dois estados independentes floresciam lado a lado e, levando isso em conta, Mané achou que tinha motivos para comemorar. Ele nunca imaginou chegar a esta idade e, depois de chegar, era quase impossível acreditar que estava tão velho. Seu neto apareceu para algumas providências. Veio acompanhado de uma garota que, em tempos passados, Mané teria achado atraente. Apresentou sua namorada e chamou a atenção de Mané o fato dela ter os cabelos ruivos, condição que o fazia se lembrar de coisas agradáveis, mas ele não sabia o quê! Sua memória andava falhando e Mané ficava rabugento quando isso acontecia. Teve que explicar que não era nada com ela, a menina estranhou o silêncio e o olhar inquiridor que Mané lhe lançou depois das apresentações. Mané observou o quanto era bonita, a pele muito branca e pequenas sardas que emolduravam seus brilhantes olhos verdes. Lembrou-lhe uma garota que conheceu na juventude, aliás, depois de observá-la por um tempo, começou a achar que fosse ela mesma. Responsabilizou seus velhos neurônios pela confusão e decidiu tirar um cochilo enquanto os mais jovens trabalhavam. Na penumbra do quarto foi invadido por antigas recordações, vagas lembranças da época em que Mané se parecia muito com o neto que estava na sala, e do seu envolvimento com uma garota ruiva, igualzinha àquela. Lembrou de episódios estranhos em lugares do Brasil e do mundo. Nas suas memórias, a garota aparecia sempre dormindo, e ele quase podia escutar a sua respiração compassada, um leve ressonar e uma sensação de aconchego. Que diabos tinha acontecido entre eles? Num esforço, conseguiu lembrar que ela tinha se casado com um amigo e que, anos depois, tinham se mudado para Israel e tinham perdido contato. Imagens que misturavam cenas de uma festa de casamento, sleepings, colchões de água e vastidões desérticas invadiam a mente de Mané e ele só conseguia se perguntar se a moça que estava na sala não seria uma reencarnação da antiga garota ruiva que voltava para atormentar sua velhice. Completamente desperto, foi até a sala e a chamou para conversar. Rapidamente descobriu que ela tinha nascido em Israel. Isso justificava o sotaque carregado. Ela ainda explicou que tinha aprendido português com os avós brasileiros. Hmmmm! Mané pediu para que o neto fosse buscar o caixote de fotos. Ele foi, reclamando que não tinha tempo para isso agora, que deixasse para mostrar as fotos noutro dia. Mané procurou uma fotografia de um casamento no Rio de Janeiro. Na foto, ele posava com um sorriso amarelo, ao lado de Salma e Samira, além da garota ruiva e do marido, o amigo de Mané. “Tá bom vô, já sei que você foi jovem, que esta é a minha mãe quando bebê”! Mané mostrou a foto para a menina ruiva e perguntou se ela reconhecia as pessoas. Com cara de surpresa, exclamou: “mas esta foto é do casamento dos meus avós”! Perdendo toda a urgência, o neto sentou para ouvir, já que a moça começou a fazer perguntas. De muita coisa Mané não lembrava, aliás, acabou percebendo que nem tinha muito para contar, já que a história com a garota ruiva tinha sido curta, apesar de longa no tempo. Aliás, longa e intensa, já que mais um episódio tinha acabado de acontecer. Depois de Mané contar tudo que lembrava, decidiu não perguntar sobre a avó dela, com medo de ouvir qual teria sido o seu destino. De qualquer forma, pouco importava o que tinha acontecido, mas sim, o que tinha deixado de acontecer! Foi bonita a festa. Vieram parentes e vizinhos, já que amigos ele não tinha mais. Não conversou muito com as pessoas. Resolveu parecer aéreo como os velhos e ficar apenas seguindo a nova garota ruiva com o olhar e imaginando por quais desígnios ela tinha se aproximado do neto e dele agora no fim da vida, além de se deleitar com aquele presente do destino, a garota ruiva jovem e bela em todo seu esplendor ali, ao alcance dos olhos. Depois de cortar o bolo, enquanto recebia cumprimentos das pessoas, escutou o neto perguntar para a namorada: “mas será que o meu avô comeu mesmo a tua avó num motel da Via Dutra? Que bafão, mas essa sua avó, hein?" Ao que a garota ruiva respondeu: “minha avó? E o seu avô, invadindo o quarto de garotinhas? Bafão vai ser daqui a pouco quando eu falar pro seu avô que a vovó chega amanhã”! FIM

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