domingo, 13 de janeiro de 2019

Na infância, no seio da sua família judaica oriunda do Egito, a avó de Mané falava com ele em árabe, contava-lhe histórias, que nunca acabavam bem, em árabe, e lhe ensinava musiquinhas infantis, tudo em árabe. Vem daí a memória afetiva de Mané, toda vez que escuta essa língua, apesar da inimizade perene entre árabes e judeus. Corta pra hoje. Mané está dentro do seu carro parado num sinal. Do lado de fora tem cinco sóis para cada um, o asfalto arde. Mané vê sentado numa mureta na calçada adiante, um homem aparentando 75 anos, bem vestido, com uma boina xadrez na cabeça, segurando um lenço branco que às vezes passa no rosto para secar o suor. O homem lembra a figura de seus tios, bigode, narigão, enfim. Mané não tem certeza mas parece que ele chora. Mané hesita, não quer se envolver, mas encosta o carro e desce com sua garrafinha de água. Vai em direção ao homem que a esta altura soluça e se lamenta...em árabe. Mané se aproxima e começa a falar em árabe com o cara. O que houve, quem é o senhor. A cara do homem se ilumina, ele segura as mãos de Mané que lhe oferece água. O homem bebe. Resenhando: o refugiado sírio veio ao Brasil encontrar o filho, houve uma confusão de datas, o homem se perdeu há três dias, chegou nem sabe como até ali, Mané o achou. Deu-lhe água, comida e estudou um papel que o sujeito tinha na mão que continha um número de celular, um endereço perto dali e um nome, Khaled, filho de Hassan que agora sorria confiante para Mané. Entraram no carro com ar refrigerado, Hassan ficou impressionado. Pouco depois, Mané toca num prédio e alguém responde em árabe. Khaled desce esbaforido, os dois se abraçam, choram e gritam. Khaled briga com Hassan por ter se perdido. Hassan briga com Khaled por tê-lo deixado se perder. Mané assiste a tudo embevecido, parece assistir a cenas de sua família se reencontrando. Pouco depois os dois chegam perto de Mané, Hassan quer beija-lo mas Khaled o puxa, Mané sente um clima estranho mas, apaziguado, despede-se, entra no carro não sem antes escutar Khaled sussurrar ao pai: «yahud», judeu. Mané, que segundos atrás estava completamente feliz, sente vontade de dar marcha a ré e atropelar os dois, mas acelera enquanto tenta pensar como eles poderiam ter sabido. Enquanto o ódio vaza por seus poros, Mané lembra da bandeirinha de Israel grudada na traseira do seu carro: «yahud». Mané ficou com gosto ruim na boca, ia dar um gole na garrafa de onde Hassan tinha bebido mas preferiu jogá-la pela janela. 12/01/2019

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