quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Isso escrevi pro meu pai quando ele já tinha morrido e interpretei o texto no púlpito da sinagoga no fim do luto. Essas miudezas eu nunca falei pra ele em vida. Se você tiver um pai, fale com ele! Eu prestei vestibular em 1974 e eu preciso dizer que ninguém, nem mesmo eu, nem ninguém da minha família acreditava que eu iria entrar um dia na faculdade. Tenho que confessar que eu fui um péssimo aluno, um aluno horrível e isso fez com que no dia em que saíram os resultados dos exames e finalmente se verificou que eu tinha entrado na faculdade, meu pai, quando chegou a casa estranhou a festa que acontecia, telefonemas,o jubilo, todos muito felizes e surpresos com o meu feito. Meu pai chega e pergunta “mas o que aconteceu”? E minha mãe: “mas você não viu”? Titi (este sou eu) entrou na faculdade, não viu no jornal? Vi que meu pai ficou cabisbaixo e, como fazia todo dia se retirou pro quarto em silêncio e não falou mais nada...passou. 20 anos depois, em 1994, estávamos eu e meu pai na maternidade, naquela vitrine onde ficam os bebes admirando meu filho que acabava de nascer. Ele do meu lado olhando o menino de repente diz, “lembra naquele dia que você entrou na faculdade, que eu cheguei em casa e estranhei a festa toda, sabe o que aconteceu? Naquele dia eu sabia que ia sair o resultado e eu achava que você não ia entrar então eu não comprei o jornal e fiquei o dia todo pensando num jeito de te consolar. Na verdade eu não acreditei em você, eu tinha certeza que você não ia entrar”. Ficamos os dois em silencio observando o bebe por alguns momentos e então ele disse: Parabéns filho! Ao que eu respondi: Obrigado pai, o menino é bem bonitinho né? E ele me disse: o menino é bonitinho, mas eu estou te dando os parabéns por ter entrado na faculdade, desculpe a demora! Então, esse era o meu pai. Ele foi uma pessoa que passou a vida no maior silêncio. Não me lembro dele metido em nenhuma confusão, nenhuma polêmica, pouquíssimas e breves discussões, sempre em voz baixa. No dia a dia, nas coisas da vida ele parecia sempre meio deslocado, fazia as coisas discretamente e sempre tomando cuidado para não atrapalhar os outros. Só tinha um jeito de vê-lo à vontade: diante de um livro ou lá na sinagoga da abolição. Podiam colocar uma mesa cheia de delícias na frente dele, mas ele só pegava uma colherzinha disso e um pedacinho daquilo. Meu pai trabalhou em todos os dias da vida dele até o dia em que ele teve um AVC há sete anos. Que me lembre foram raros os sábados em que ele não foi à sinagoga da Abolição onde ele rezava, estudava e onde fazia uma das coisas que ele mais gostava de fazer que era explicar as minúcias e os detalhes de uma nova descoberta que ele tinha feito nos livros de reza. Eu tenho certeza que eu não fui o filho que ele idealizou, mas meu consolo é que eu aprendi depois de ser pai também que ninguém tem os filhos que idealiza. Simplesmente a gente aprende a gostar dos filhos como eles são. Ele também não foi o pai que eu idealizava. Na verdade eu demorei pra entender, mas ele foi um pai melhor do que a expectativa. Mas tem uma justificativa pra isso, o meu pai era uma pessoa que demorava muito pra demonstrar seus sentimentos e se fazer entender, não demorou 20 anos para me parabenizar por ter entrado na faculdade? Meu pai teve um começo de vida difícil, com seis meses perdeu a mãe. E um fim de vida muito difícil também com toda essa doença. Nesse intervalo de 90 anos acho que eu minha mãe, minha irmã fomos uma boa companhia pra ele, com todos os altos e baixos. Além da leitura, meu pai gostava muito da minha irmã, muito mais do que gostava de mim. Mas eu não guardo mágoa, isso é muito fácil de entender. Minha irmã é uma linda pessoa doce e prestativa, já eu...bem, quem me conhece entenderá. Com minha mãe nem precisa falar: eu sei que eles não viveram uma vida glamurosa, mas juntos foram valentes e se complementaram de uma forma quase perfeita, porque nada na vida é perfeito. Meu pai não era um homem rico, em termos materiais, mas eu herdei dele o amor pela literatura e essa é uma grande, enorme herança. Eu só espero que em qualquer lugar que ele esteja agora, se estiver em algum lugar, tenha um monte de livros pra ler. Obrigado Este é o texto gravado na pedra do seu túmulo. Adoro olhar para minhas prateleiras lotadas, cheias de nomes mais ou menos familiares. Delicio-me ao saber que estou cercado por uma espécie de inventário da minha vida, com indicações do meu futuro. Gosto de descobrir, em volumes quase esquecidos, traços do leitor que já fui. 11/8/2019

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