domingo, 26 de abril de 2020
Hoje fomos levar víveres pra minha mãe e ela perguntou se a solidão ia durar pra sempre. Também me passou um monte de boletos pra pagar, disse que a Lali estava ficando muito velhinha e que o Bolsonaro era uma besta. Disse também que era pra eu me ressarcir das despesas que fiz pra ela e que da próxima vez ela ia me obrigar a entrar.
Usando a ciência, como dizem que vem fazendo as autoridades, Mané descobriu hoje que para arrumar uma cama de casal com perfeição precisou contornar a mesma exatas 18 vezes, estica aqui, desentorta ali. Mané se colocou uma meta, até o fim da quarentena, de cumprir essa missão contornando a cama no máximo 7 vezes, como fazem as mulheres judias ao redor do marido quando casam. Mané está convencido de que é possível e ele não pretende dobrar a meta.26/04/2020
sábado, 25 de abril de 2020
Hoje o pessoal do pkc reuniu-se pela segunda vez no isolamento. Foi mais organizado que da primeira, Sura, a secretária do grupo, conseguiu mandar os convites de primeira mas essas reuniões nunca são totalmente tranquilas. Iasmin se atrapalhou pra entrar e demorou pra conseguir destravar o microfone, teve que chamar o marido que apareceu seminu e ficou mexendo na tela de mau humor e depois deu um tchauzinho e se foi, ainda bem. Jamile chegou rápido à reunião mas pra variar teve que sair mais cedo por uma razão qualquer, como na vida real. Gibran e Mané foram perfeitos, chegaram na hora, conectaram-se sem percalços de câmera ou microfone, falaram quando tinham que falar e só trouxeram assuntos interessantes. Também se fez presente lá pelo meio da conversa, o sr. Spacely, de Manaus que, depois de levar uma lavada do computador, conseguiu conversar um pouco com os amigos. Tudo acertado começaram a bater papo mas descobriram tardiamente que o Zoom só permite conversas de 40 minutos e quando se encontravam em velocidade de cruzeiro só restavam 8 minutos disponíveis. Vão tentar novamente no sábado que vem se todos estiverem vivos. 25/04/2020
sexta-feira, 24 de abril de 2020
O dia de ontem, por alguma razão, foi pesado. Custou a Mané lavar as três louças do dia e, por diversas vezes teve vontade de deixar toda aquela porcaria acumulando na pia. Claro que acabou lavando tudo, mas a louça remanesceu parada e suja na pia por mais tempo que de costume. Só conseguiu ligar pra mãe quando já era final da tarde, quase não tiveram assunto, mas também, quem é que tem alguma coisa pra contar nesses dias tenebrosos. Mané percebeu que o desanimo se espraiou pela casa, todos os membros da família fizeram as coisas com mais vagar e desânimo. Samira só saia do quarto para comer, durante o plantão virtual mal olhava para ver se algum aluno a chamava, Mané teve que arrancá-la da cama à força para que viesse lhe dar uma explicação sobre o skype e, mesmo assim, só saiu atraída pelo pedaço de ovo de páscoa que lhe ofereceu. Anuar disse que ia terminar de escrever uma história, também só saiu à luz para comer e tomar banho, Mané viu que ele falou ao telefone algumas vezes. E Salma, ah Salma; quando Mané foi ao quarto por volta das 19 hs para tomar banho depois da caminhada, percebeu horrorizado que a cama estava desfeita tal qual a havia deixado as 6:15 quando acordou pela manhã. Irritado com Salma por ter obliterado sua função, começou a esticar os lençóis e o edredom e ficou em dúvida se colocava a colcha por cima já que daqui a pouco teria que removê-la quando fosse dormir. Fez a cama mal e porcamente, com certeza sentiria os vincos deixados no lençol de baixo quando deitasse, nem ao menos afofou os travesseiros. Lá pelas 22:00, Mané resolveu desistir finalmente do dia e foi dormir. Quando removia a colcha escutou uma reclamação; olhou para os lados para ver quem falava com ele. Era a cama que reclamava veementemente pela bagunça: “mas já vai me desarrumar de novo, mal pude me recuperar da noite anterior, você acabou de me arrumar!” Mané sentou no lençol engruvinhado enquanto vestia o pijama e não deu ouvidos às reclamações do leito que em pouco o receberia. Mané deitou, acendeu o abajur, abriu o livro e sentiu as dobras do lençol e os travesseiros socados. Então levantou, tirou toda a parafernália de cama, esticou tudo de novo, afofou vigorosamente os travesseiros e deitou novamente, mas a essa altura já tinha perdido o sono.24/04/2020
quinta-feira, 23 de abril de 2020
Depois de se atirarem farpas por conta dos cactos na mesa perto da janela, Salma e Samira foram juntas até o correio despachar os livros do sebo. Anuar foi junto e ficou no carro com Salma, enquanto Samira se postava a dois metros do último da fila. Num dos grupos de whatsapp de Salma, uma pessoa postou uma fake news, daquelas que são tão fakes que até sentimos vergonha alheia por quem postou. Salma, que odeia fake news, imediatamente postou a comprovação de que aquilo era um boato e achincalhou a pessoa, entre outras coisas, dizendo que postar uma coisa daquela era sinal, no mínimo, de ingenuidade, que aquilo resvalava pro mau-caratismo, pra não falar coisa pior. Enquanto o pau quebrava no grupo Anuar chamou a atenção de Salma para um quiprocó na fila do correio: um sujeito chegou e encostou bem perto de uma mulher que agora ocupava o último lugar e a mulher, incomodada, pediu para que o sujeito se afastasse dois metros. O sujeito, com cara de poucos amigos disse que se ela estivesse incomodada que saísse da fila, que ele não era covarde pra usar máscara e ficar com esse fricote de se manter longe por causa “dessa gripezinha”. A mulher foi pro lado e lhe disse que ele só podia ser bolsonariano ao que o cara respondeu que ela tinha jeito de esquerda caviar. Ela respondeu que ele não tinha nada a ver com seus pendores políticos e que, mesmo que não fosse perigoso ficar encostado em alguém no meio da pandemia, ele não tinha nada que ficar fungando no cangote dela. Ele respondeu que devia fazer muito tempo que ninguém fungava no cangote dela e que ela devia lhe agradecer por isso. A coisa ia ficando cada vez mais feia, parecia até que ia ter agressão física quando, Samira, que já tinha sido atendida e tentava sair do correio e se via impedida de fazê-lo por causa da briga, gritou a plenos pulmões: próximo! 23/04/2020
terça-feira, 21 de abril de 2020
Hoje a função atrasou porque faltou luz das 8 as 13 e Salma teve que ir ao dentista. Também por isso o almoço teve só salada e uns restos que Mané desprezou. Samira comeu toda a maminha na cerveja que tinha e também o lombo que veio da mãe de Salma, Muna. Anuar ganhou um omelete e Mané vai sentir fome daqui uma hora e trinta.
Em casa Mané descobriu que se da com a família muito melhor do que pudesse supor e que seus filhos e esposa são pessoas muito melhores do que ele já achava. Além de trabalhar um pouquinho em home office ele já lavou a louça 84 vezes, arrumou as camas umas 25 e, finalmente, aprendeu a lavar banheiros. Tem feito caminhadas de uma hora por dia pela Vila Madalena, saído pra dar uma volta de carro com Anuar e para atender necessidades da sua mãe de 86 anos sempre se mantendo longe de seres humanos. Também vai ao mercado uma vez por semana em horários mais vazios, de máscara e bem rápido. Quase todo dia cozinham e senão, também pedem comidinhas por delivery. Tem lido, menos que de hábito, visto filmes na Netflix, passado muito tempo no Facebook e WhatsApp e falado longamente ao telefone, coisa que já não fazia há tempo. Não fosse a impressão ruim de estar preso e a ameaça de ficar doente, Mané acha que poderia viver assim pra sempre.14/04/2020
sábado, 11 de abril de 2020
Mané tem dois sobrinhos gêmeos: Halim e Faruk que já são velhinhos, 45 anos em dezembro. Desde que nasceram Mané sempre achou que eles, assim como Samira, 32 em outubro e Anuar, 26 em maio, pertenciam a uma geração de privilegiados, que viveram, nos limites da sua bolha, tempos de paz e prosperidade. Mané, 65 em novembro também não tem do que reclamar. As dificuldades pelas quais passou sua família não o atingiram diretamente, Aslan, 98 se vivo e Sara, 86 em julho, cuidaram para que as mazelas não atingissem os filhos ou pelo menos que os atingissem de forma atenuada, mas, enfim, do período pós-guerra até hoje, não houve deslocamento emigratório, fome, blackouts ou qualquer outra mazela pelas quais passaram nossos pais e avós. Por isso Mané se preocupou, no início da pandemia sobre como ia reagir essa geração de ouro, cheia de vontades e de mimos, de repente privada, no mínimo, de sua liberdade. Halim escreveu um texto, se ele quiser pode publicá-lo aqui, que denota o seu estupor diante da situação. Mané leu, achou interessante, mas não achou impactante {o que deixou o menino mimado meio bravo, vale dizer que Halim tem skills em outas áreas que não a literatura} apesar de que o texto o fez pensar no assunto e chegar à conclusão que essa novidade que nos atingiu não afeta somente a geração que viveu muito bem até aqui, o que é estranho. Falando com sua mãe isolada, Mané percebe que Sara que passou por perrengues quando criança durante a segunda guerra, que teve a família expulsa do Egito aos 22 anos com 2 filhos pequenos, que batalhou para criar uma vida num país distante e estranho, está completamente estupefata com a situação atual. Mané e Salma, que passaram por uma infância pobre, os pais lutando para sobreviver, estão completamente estupefatos com a situação. Se há três semanas, alguém contasse essa história, Mané acharia que seria um excelente roteiro de cinema, “o ano em que a Terra parou”, mas já tem um filme com esse nome. Mas, sim, queridos Halim, Faruk, Salma e Anuar, vocês que agora estavam alçando vôo ou já em velocidade de cruzeiro, vão sentir mais o impacto, estamos vivendo a dificuldade e teremos mais dificuldades ainda adiante. O ser humano não cria anticorpos contra maus momentos, como vemos pela reação da mãe de Mané, mas a boa noticia é que ele se adapta a qualquer coisa e se não se adapta, morre. 11/04/2020
Não bastasse o confinamento, aqui na minha linha tenho amigos bolsonarianos e não bolsonarianos [não posso mais chamá-los de petistas, não sei mais como chamar, talvez dorianos, ou é muito pra ele?], mas o fato é que analisando as postagens chego a conclusão que, ou moram em países distintos ou então há uma cizânia nas personalidades das pessoas além de uma profunda dissonância cognitiva.10/04/2020
Ainda a respeito de lembrar do sonho, coisa que não se repetiu nesta manhã, a interpretação que Salma fez foi: [a pandemia proporcionou a Mané entrar em contato com a precariedade do seu controle sobre a vida. Seus mecanismos de defesa foram afrouxados o que proporcionou a emergência de partes do seu inconsciente que batem à porta querendo entrar. Isso se torna particularmente mais difícil para quem é controlador como Mané]. E emendou: [assim como já se enxergam as montanhas do Himalaia pela diminuição da poluição, ela acha que Mané também deve despoluir o espírito para poder aumentar seus horizontes]. Ao contrário do que possa parecer, isso não causou nenhuma crise no isolamento o que por si só, é uma prova que 24 dias de prisão mudam qualquer coisa.10/04/2020
Coisa muito rara de acontecer, hoje ao acordar, Mané lembrou-se do que tinha sonhado. Ele contou o sonho para Salma que é psicóloga das boas e ela fez uma interpretação que Mané não gostou, é claro, porque em casa de ferreiro o espeto é de pau. Salma falou que Mané não gostou porque ela teria acertado o ponto. Mané fez um muxoxo e resolveu contar o sonho aqui, quem sabe algum psicólogo descompromissado jogue alguma outra luz à questão. Então leiam:
[Mané está na casa da mãe em plena pandemia. É hora do almoço. Mané vê que uma prima sua chega com a família para uma visita. À porta, Mané tenta impedir que eles entrem, há uma pandemia não se deve visitar idosos. A prima que sempre foi rebelde insiste, a família está com fome e eles pensaram em visitar a mãe de Mané para comer. Mané não consegue impedir a entrada deles e, quando se dá conta, eles já estão à mesa a comer]. Fim do sonho. Vale dizer que Salma escutou a tudo com um risinho irônico de lado. Mané não vai contar a interpretação que ela fez. Não agora.09/04/2020
Hoje Mané passou uma boa parte da manhã tentando alinhar o tapete com o piso mas não conseguiu. Ficou um tempo ensimesmado sem saber que atitude tomar contra o tapete enquanto os WhatsApp do escritório choviam, alguns irados pela demora na resposta. Num dado momento ele percebe Salma ao seu lado com os olhos marejados e, saindo um pouco do catatonismo alfombrico, lhe pergunta o que foi e ela, quase aos prantos, perorou: “a pilha do meu relógio acabou”.06/04/2020
A essa altura do campeonato Mané já arrumou as estantes, gavetas e armários duas vezes pelo último levantamento. Aos 18 dias de afastamento social, ja lavou a louça 54 vezes, isto é, 53 porque Salma usurpou-lhe esse divertimento uma vez. Já fez faxina e lavou banheiro. Salma treinou Anuar a pendurar e tirar roupas do varal e Samira a limpar seu próprio quarto e banheiro. Já exploraram todos os lugares da redondeza onde se vende comida pronta, também cozinharam e fizeram juntos as três refeições diárias. Apesar da dilação do prazo, terminaram a declaração de IR de Samira. Nos dias úteis Mané trabalha um pouco e já ameaçou seus funcionários com o corte do ponto caso não respondam aos WhatsApps rapidamente. A moça dos serviços gerais da casa passa longas mensagens a Salma preocupada com o bem estar da família e perguntando se estão conseguindo se virar, ela agradeceu por ter recebido o salário sem descontos. Mané telefona duas vezes por dia para sua mãe Sara e lê um livro por semana. Samira atende alunos por um aplicativo deitada na cama, Salma conversa com clientes pelo telefone e Anuar quer saber quando vai voltar ao trabalho mas, enquanto isso, ele desenha. Às vezes, no final da tarde, Mané sai com Anuar para dar uma volta de carro e relembram os tempos em que o único perigo de sair às ruas era ser assaltado. Aproveitam esses passeios para deixar na portaria de Sara alguma coisa que ela esteja precisando. Vez ou outra Mané sai para andar a pé pelo bairro mas agora pensa limitar seus exercícios a descer até o térreo pela escada e subir de volta, duas vezes por dia. Ele aproveita esse momento para descer o lixo, são 12 andares até o segundo subsolo. Assistem um filme por dia na Netflix mas Mané tem dúvida de quanto tempo mais poderá aguentar esses privilégios e acha que já está querendo de volta a sua antiga vida de merda.04/04/2020
Em 1998, Salma e Mané levaram os sogros para a Flórida. Viajaram todos, Salma, Mané, Samira 9 anos, Anuar 4, Muna e João. Foram a Orlando e depois fizeram um tour pelas cidades do Golfo do México e Keys. Alugaram uma daquelas Vans enormes, iam na frente Salma e Mané, no banco do meio Anuar e João e no fundo, Samira e Muna. Para enfrentar os quilômetros levaram algumas fitas k7, três pra falar a verdade: uma da trilha sonora de Pulp Fiction, uma com uma seleção dos Talking Heads e outra com músicas infantis em inglês, “Roll roll roll the boat gently down the stream, if you see a crocodile dont forget to scream, ahhh”. A convivência foi perfeita, os sogros, que nunca tinham saído do Brasil obedeciam a todas os ditames de Mané, divertiram-se nos parques e na estrada, cantavam as músicas que tocavam nas três fitas. Nos restaurantes era difícil fazer os pedidos, Mané sendo o único que falava inglês sofria, num de frutos do mar o sogro pergunta: “mas que peixe é esse”? E Mané: “ela disse um nome mas é peixe”. E voltavam pra estrada e para as três fitas, todos decoraram até a sequencia das músicas. Depois de 15 dias, a viagem chegou ao fim, os laços já existentes com os sogros foram fortalecidos e, antes do embarque de volta pra casa, João acercou-se de Mané e disse que tinha adorado tudo, que tinha sido uma experiência fora de série, agradeceu pela paciência, alto astral e disposição e só reclamou das estações de rádio norte americanas que, segundo ele, tocavam sempre as mesmas músicas.29/03/2020
Mané foi até a farmácia comprar um remédio e ficou incomodado. Quando passava perto de alguém na rua a pessoa olhava atravessado e se afastava (a mais dos dois metros regulamentares). Dentro da farmácia, um horror, na fila pra pedir remédio a mulher que estava a frente dele parecia que tinha no seu encalço um tiranossauro, tamanho o pavor que demonstrava. A de trás, ficou a seis metros e nem mantinha o olhar quando Mané a encarava. Na fila do caixa, o mesmo, Mané sentiu-se um leproso da época da Bíblia e resolveu devolver o medo das pessoas com um olhar de poucos amigos o que, diga-se de passagem, não é muito difícil para Mané. De volta pra casa Mané contou o ocorrido pra Salma e comentou, em tom de xiste que, depois que passar o corona, teremos que lidar com a situação mental das pessoas além da econômica. Salma, que a tudo escutava atentamente, respondeu que “esse medo que as pessoas demonstraram hoje na rua, talvez melhore se você, da próxima vez, não for à farmácia de roupão e pijama”.25/03/2020
Assinar:
Postagens (Atom)