domingo, 23 de fevereiro de 2020
Num dia como esse, anos atrás, Salma entra no banheiro e se depara com uma poça d’água. Aflita, vai acordar Mané que, de péssimo humor, encontra a fenda por onde minava o líquido pelo forro de gesso. Enquanto Mané determinava que o culpado era o vizinho de cima e espalhava panos e baldes pelo local, Salma pegou a lista telefônica e procurou o número do tal vizinho. Falou com o cara que se mostrou solícito e fechou seus registros para ver se estancava a sangria. Passadas duas horas a água continuava a pinga-pingar e Salma ligou novamente para o vizinho, já com o estopim da paciência acabando. Meu Deus, disse o cara, vou tentar arrumar um encanador pra ver isso. O encanador chegou, fechou toda a coluna do prédio, mas a água não parava. Vou descer aí com o zelador, latiu o vizinho, e estou levando os vizinhos de cima porque o encanador disse que pode ser dos apartamentos acima do meu. Minutos depois toca o telefone: estamos aqui tocando a campainha, eu, 5 vizinhos, o encanador e o zelador, porque vocês não atendem? E Salma: como assim, ninguém tocou nenhuma campainha! Mas a senhora não é do 102? Sim, sou! Pois estamos aqui na porta de serviço. Salma vai até a porta, constata que não tem ninguém e volta ao telefone (fixo): não tem ninguém na porta. Nisso Mané que ainda batalhava com rodos, baldes e panos, pega o telefone e pergunta: o Senhor mora na rua XXX no apto 112 do número 1192? E o cara responde: moro na rua XXX, apto 112, mas no número 1129. E Mané lívido responde numa rajada: desculpe foi engano. tu tu tu tu tu...23/02/2020
sábado, 22 de fevereiro de 2020
Na infância de Mané, a vinda da sua família expulsa do Egito para o Brasil, era assunto que permeava as conversas ao mesmo tempo que ninguém se aprofundava pra valer no tema. Falava-se superficialmente de como era a vida, da extensa parentada, dos amigos, dos estudos, dos poucos problemas, das férias, enfim. A curiosidade de Mané cresceu junto com ele, e, às vezes, cercava os pais e a avó com perguntas e estes nunca contaram mais do que os grandes contornos da aventura, os preparativos, a consecução da nova nacionalidade, o navio, a estadia na Itália, parecia uma epopéia distante e fantasiosa. Certa vez Mané falou pra sua mãe que queria saber das miudezas, dos sentimentos, os preparativos, do dia da partida. Sara lhe contou que acordaram naquele dia e tomaram o desjejum que ela preparou, pão, leite, queijo para o marido e para a irmã Farida e uma mamadeira caprichada pra Mané. Lembrava de ter feito as últimas arrumações e o pai, acertos de última hora. Com carro que os levaria ao porto já carregado com as malas, não houve despedidas de vizinhos nem de familiares, grande parte destes já estava no Brasil. Ela disse que sobrou comida na geladeira e tapetes, móveis, objetos e tralhas foram abandonados dentro da casa. No caminho para o porto divisaram lugares e paisagens que não sabiam se iam rever, a escola, o clube, a sinagoga, o açougue, o boteco da esquina. Depois dos trâmites alfandegários e revistas, subiram pela ponte de embarque e quando o navio se preparava para partir, sua mãe percebeu que estava com a chave de casa na mão. Olhou para o molho, procurou alguém pra entregar e sem saber o que fazer, num impulso, atirou tudo no mar. Mané contou essa história para uma repórter que o entrevistava por ocasião do lançamento de livro e quando finalizava o episódio com o dramático gesto da mãe atirando a chave ao mar, olhou pra moça e viu que ela estava com os olhos marejados e só então percebeu como foi triste esse acontecimento. Mané arrependeu-se de ter insistido em saber dos detalhes, entendeu que certas tristezas tem que ser esquecidas, caso contrário elas passam a fazer parte de você. Foi isso que seus pais e avós tentaram fazer. Não conseguiram.22/02/2020
Aqui Porto de Galinhas verão 1991. A garotinha é Samira, uns dois anos. Pouco depois dessa foto Mané ligou pra São Paulo e foi informado que Sadam Hussein tinha atacado Tel Aviv com mísseis Scud. Ele ficou alarmado, cogitou, por 5 segundos, interromper as férias e voltar pra casa mas, ó, voltaram pro quarto, trocaram de roupa e foram dar a janta pra menina porque bebês dormem cedo. A guerra acabou logo depois, ou não, Samira cresceu, Mané ficou velho, enfim...25/01/2020
Quando Mané fez 18, seu maior objetivo na vida era tirar carta e ter um carro. Ainda aos 16/17, quando sua mãe o deixava dirigir até determinado lugar, o prazer era orgasmal. Quando Mané se casou, já tinha carro e Salma veio motorizada também. Mané lembra que, às vezes, cada um pegava o seu carro e iam até um posto pra lavar e dar um trato nos veículos e, enquanto esperavam, ficavam namorando e se agarrando por ali, os caras do posto olhando e dando risadinhas. Eles não estavam nem aí e enquanto o carro ia sendo lavado, eles ficavam lá se beijando, depois voltavam felizes com os veículos brilhando pra casa. Hoje, dia de rodízio do carro, ele pegou emprestado o de Salma pra levar Anuar pro trabalho. Uma camada grossa de pó permeava toda a lataria. Na parte de dentro, um saquinho de lixo transbordando, poeira pra todo lado, um caos. Mané pensou em criticá-la depois lembrou que seu próprio carro, comprado há três anos, tinha sido lavado no máximo umas seis vezes. A relação com os carros está mudando. Samira e Anuar não querem dirigir. Quando Samira fez 18, Mané falou pra ela tirar carta e ela foi aos 20. Ganhou um carro do avô e vendeu-o uma semana depois. Não renovou a carta, nunca dirigiu. Mané, no carro emporcalhado de Salma, sentiu uma nostalgia e está pensando em convidá-la a ir lavar os carros no próximo fim de semana.21/02/2020
No idos anos 1980, no início da sua carreira bancária, Mané era o responsável por um grupo de agências do interior paulista. Certa feita, Zé Roberto, um excelente gerente da cidade de Itapira, veio fazer treinamento na capital e Mané o levou para almoçar no antiquiquissimo restaurante Lírico, na Libero Badaró, onde serviam um couvert generoso. Quem é velho como Mané, lembra dessas bolinhas de manteiga que vinham numa cumbuquinha. As porções eram generosas e vinham muitas, mas muitas, bolinhas de manteiga. Pelas tantas, Mané percebe que o pratinho de manteiga está vazio e pede outro ao garçom e assim que o novo é colocado na mesa ele vê o gerente espetar um palito de dente numa bolinha geladinha, colocá-la na boca, mastigar e engolir. E assim sucessivamente, Mané tentou impedir mas nesse momento Zé Roberto disse: “queijinho bão esse aí, né? Meio gorduroso mas uma delícia”! Mané ficou pensando se devia avisar mas ele comeu os três pratinhos com tanto gosto que acabou deixando a coisa assim mesmo. À tarde, no meio do treinamento, Zé Roberto foi muitas vezes ao reservado. Os colegas mangavam por ele ter comido muito: “caipira vem pra capital e acaba se lambuzando”. Ele sorria amarelo, melhor dizendo, verde, e corria pro banheiro: “aquele queijinho era gorduroso que só”.20/02/2020
Mané entra no elevador. São 6:30 e está chovendo. O cão não vai descer porque quando molha as patinhas ele fica com frieira. Mané está entretido no Facebook quando o elevador para um andar abaixo. Entra a vizinha ruiva carregando dois sacos de lixo. Ela está descalça e tem as unhas de seu pé branquissimo pintadas de vermelho Ferrari. Ela fala um bom dia animado, quase grita. Mané responde com um muxoxo. Ela reclama que o botão do 9o andar está com defeito, que no outro dia teve que descer no 8o e subir um andar carregada de compras. Ela reclama que tem que levar o lixo até a garagem, que antes, quando tinham latões nos andares era melhor. Ela aponta para o lixo e pergunta se Mané está sentindo o cheiro, já fazia dois dias que ela não descia com o lixo e, rindo de si mesma falou, "tenho preguiça". Ela reclamou da entrega do jornal, "esse funcionário é preguiçoso, ele sobe com o jornal as 8, quem lê jornal as 8, aliás com a internet, quem lê jornal hoje"? O elevador chega ao térreo, Mané empurra a porta e ela vem atrás, segura a porta e dispara: "o Sr é assim tão calado ou a coisa é comigo"? Mané força o seu melhor sorriso e diz: "da próxima vez, quando o botão enguiçar, você sai no 10o e desce um andar ao invés de subir. Leve o lixo todo dia bem cedinho, como hoje, e pegue seu jornal na portaria e, sim, eu sou calado, nada pessoal." E continuou: "a propósito, adorei suas unhas pintadas de vermelho, um lindo contraste com sua brancura". 12/02/2020
Mané acorda de repente e se dá conta que ainda são 4:15 da manhã. Salma está ressonando ao seu lado. Numa conta rápida, ele pensa que já dormiu ao lado dela umas 13 mil vezes, o que não é pouco e, de tão acostumado, nem imagina o que seja dormir desacompanhado. Lembrou-se da primeira vez que dormiu com uma garota por toda a noite. Seus pais tinham viajado e Mané convenceu a garota a mentir para os dela e arrastou-a para casa. Cozinhou macarrão a bolonhesa pra ela, tomaram vinho, assistiram TV, conversaram e se amassaram no sofá da sala e depois foram pra cama. Fizeram tudo que tinham que fazer e adormeceram agarrados de conchinha. Pelo meio da noite Mané começou a sentir muito calor e não conseguiu se desvencilhar do corpo da garota, que continuava enroscada nele. Suando em bicas, lutou no exíguo espaço da sua cama de solteiro, para fugir do abraço daquela mulher aranha. Depois de muito esforço, conseguiu levantar e saiu trôpego do quarto tendo ido direto pra geladeira onde esvaziou uma garrafa inteira de água. Depois, voltou para verificar se a menina dormia, cobriu-a com um lençol e foi se espalhar na cama dos pais. Acordou com a voz dela a chamar e gargalharam quando a moça lhe disse que tinha dormido muito mal, Mané não lembra o que aconteceu depois. Eram 4:39 quando Mané certificou-se que Salma ainda dormia e então, virou para o lado dela, agarrou-a de conchinha e dormiu até às 6:30, quando a sacudiu e falou: tá na hora! 06/02/2020
Mané leu esse livro sobre o luto e separou uma das últimas frases, muito significativa, quando um personagem pergunta a outro se ele acredita que os mortos de alguma forma voltam ou se comunicam com o mundo dos vivos. Mané achou essa resposta tão épica e espetacular que resolveu publicar. Mané aproveitou muito da convivência com a avó enquanto estava viva, com o pai mais pro fim da vida já que ele foi uma pessoa muito difícil, e outros velhinhos que ele achava que valiam a pena e é por isso que mesmo Mané acreditando que quem morre está morto e pronto, puf, vai muitas vezes ao cemitério conversar com eles uma conversa em que ele pergunta e ele mesmo responde e olha, Mané nem conta mas, aconteceu cada coisa que só de pensar já fica arrepiado.24/01/2020
Mané queria ser dono da verdade. Às vezes acha que é, mas no fundo sabe que não é, e lamenta. Mané queria ser um bolsonariano convicto, queria acreditar que a terra é plana e que a população tem que ter uma arma pra se proteger. Mané queria acreditar que Lula foi condenado injustamente, queria ser um dos que fazia vigília em Curitiba e queria acreditar que o regime da Venezuela é do bem. Mané queria ser vegano e nunca comer ou usar produtos provindos de animais. Mané queria ser carnívoro convicto e não ter pena dos cordeirinhos e das vitelas. Mané queria fumar três maços de cigarro por dia, Mané queria ser ativista pelo fechamento de qualquer indústria que produza cancerígenos. Mané queria ser radical de esquerda. Ou de direita. Mané queria ser nós, Mané queria ser eles. Mané queria acreditar em milagres. Mané queria nunca duvidar da ciência. Mané sente vontade de desbundar, Mané sempre foi comportado. Mané queria ser religioso ortodoxo. Mané queria ser ateu. Mané queria acreditar em Deus, no diabo ou em alguma coisa. 21/01/2020
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