domingo, 28 de junho de 2020
Quando a família de Mané foi expulsa do Egito em 1957, receberam um documento chamado Laissez-Passer onde constava a observação «sans retour», sem retorno, fim da história de vocês no Egito. O pai de Mané, pessoa mansa e cordata, tomou aquilo como uma ofensa pessoal e passou a vida toda dizendo: «sem retorno, quem eles pensam que são? Nasci no Egito, meus filhos também, que história é essa de sans retour»? Trinta anos passados, Israel e Egito já mantendo relações diplomáticas, a família de Mané saiu do Brasil e foi ao Egito revisitar a sua história. No Cairo, no controle de passaportes todos estavam tensos com o que pudesse acontecer. Vão encrencar com a gente? Vão perceber que somos egípcios com passaportes italianos e brasileiros? Depois de todos passarem sem problema, o pai de Mané volta até o agente egípcio e falando em árabe, saca do bolso o laissez-passer antigo e começa a dar uma bronca no cara: «olha aqui, sabe o que é isso? Vocês escreveram sans retour mas eu estou de volta»! Mané tentou tirar o pai de lá mas ele estava furioso e o policial, cara de boa gente, por sorte entendeu o que se passava, abraçou o pai de Mané e lhe disse baixinho: « senhor, não se importe com essa burocracia governamental, sei que isso mudou a sua vida e da sua família mas entre e fique a vontade, vocês saíram expulsos do Egito mas o Egito não saiu de vocês, seja bem-vindo»!27/06/2020
Nesses dias de prisão domiciliar o estresse por vezes se instala no solar de Mané que olhou com desalento para a 300a pilha de louça que iria lavar e Salma, quando percebeu que ele iria perorar, disse que não estava afim de ouvir reclamação que se ele estava cansado de lavar louça ela estava cansada de por a mesa e esquentar comida e ficar gritando «tá na mesa» «tá na mesa» umas vinte vezes pra todos se dignarem a aparecer pra comer e ainda falou que o único que a atendia imediatamente era o cachorro e que por isso era melhor todo mundo comer calado sem reclamar. Um pesado silêncio instalou-se no recinto e Mané performou a lavagem de louça de número 300 num mutismo digno de um monge. Mais tarde saiu para caminhar com Anuar e entrou numa lojinha da Heitor Penteado que vende bugigangas e deparou-se com esse objeto que lhe iluminou o dia. Confidenciou a Anuar suas intenções que o apoiou de imediato e ao chegar em casa entregou a campainha para Salma que o mirou com curiosidade e, diante disso Mané se sentiu na obrigação de lhe dizer que: «pronto, não precisa ficar gritando tá na mesa vinte vezes, apenas acione esse botão duas vezes que nós viremos comer imediatamente». O clima desanuviou mas Salma anda estranha, Mané está pensando em lhe dar outro tipo de presente se o vírus demorar muito pra ir embora. 26/06/2020
Desde o começo da pandemia tem um cara vendendo brigadeiros a R$2,00 na esquina da casa de Mané. É um menino baixote, de olho verde e com uma cara simpática. Uma vez, na volta de sua caminhada, Mané comprou algumas unidades e ofereceu pras pessoas da casa. Samira reclamou porque gosta de brigadeiro mas não gosta do granulado. Anuar e Salma acharam bom mas notaram que metade da massa ficava grudada na embalagem. No dia seguinte Mané falou pro cara que o gosto estava bom mas o doce era muito grudento. O sujeito ficou lívido, agradeceu Mané e disse que ia alterar a receita. Então Mané pediu a ele R$ 40,00 reais em brigadeiros mas que fosse uma bolona grande dentro de uma embalagem descartável. Desde então, toda semana há 8 semanas, ele traz uma quantidade de massa de brigadeiro, sem granulado e deixa na portaria de Mané, que passou a lhe pagar R$ 50,00 porque percebeu que a quantidade tinha aumentado. Samira e Salma passam a semana comendo de colherzinha e Anuar disse que sente falta do granulado e então ele prefere comer bolo de maçã com canela que vem da avó. Junto com o brigadeiro o sujeito manda origâmis e/ou poemas pra Mané e este já está ficando preocupado pois teme que o cara esteja a fim dele e acabe virando um grude. Por enquanto, cada vez que que algum membro da família passa por ali, ele acena vigorosamente e pergunta se todos vão bem. E quando Mané passa ele grita a plenos pulmões: boa tarde/dia sr. Mané, bom passeio, até amanhã e Mané se sente bem, só que não! 23/06/2020
As pessoas estão preocupadas com tudo que estão deixando de fazer nesta pandemia, negócios, dinheiro, contatos inter- pessoais adiados, tudo isso vai dando uma sensação de perda irreparável, de vida descontinuada, uma tragédia sem com data incerta para terminar porque ninguém sabe quando vai ficar pronta a vacina. Mané tá louco de vontade que tudo isso acabe, quer retomar a sua antiga vida de merda, pegar trânsito ou metrô lotado na hora de pico, ah que saudade da fumaça lhe irritando as mucosas. Mané sente falta de tomar um expresso nos copos sujos da padaria, de comer um pastel frito na feira e andar a esmo sem máscara, Mané já sorri tão pouco que dirá sorrir com os olhos. E comer um bolo de aniversário depois de cinco pessoas terem ajudado a assoprar as velinhas? Tem muitas outras coisas que Mané sente falta, não vale a pena se alongar, Mané não quer ser chato como as pessoas que ele acha chatas então ele vai terminar dizendo que tem esperança de ter tudo isso de volta e dizer que, o que realmente preocupa Mané, são coisas que ele gostou de deixar de fazer e ver na pandemia e que ele não quer de volta quando tudo acabar. Mas ele acha que isso é ilusão, quando todos saírem da quarentena, as coisas ruins também vão. 22/06/2020
*DIREITO DE RESPOSTA - SALMA ESCREVE*
Quando Salma conheceu Mané ela achou que ele tinha, digamos assim, um gosto peculiar. Achou até simpáticas as meias brancas que ele usava com tudo, o colete rosa ela achou moderno, e um dia, qdo ele apareceu na praia com uma sunga roxa ela deu uma baqueada, mas estava apaixonada, e o amor é tão lindo....nesses quase 40 anos de relacionamento, puxa, como o tempo passa rápido, tantas coisas pra pensar, o trabalho, a casa, os filhos, Salma não teve muito tempo pra comentar, menos ainda pra discutir, por causa dessas estranhezas no gosto visual de Mané. Até essa quarentena....Com tempo de sobra pra olhar para Mané, tem reparado nas combinações esdrúxulas que ele se empenha em aprimorar dia a dia, já comentadas por aqui (Salma não tem Facebook mas sabe). Hoje ele se superou: voltou do passeio com Anuar com uma sacola e, feliz da vida, tirou o tênis e calçou seus novos chinelos. Salma olhou pra eles e decretou: vou ali na esquina comprar cigarros. Foi vista pegando um Uber na porta de casa. Será que ela volta? 21/06/2020
Onde vc vai, perguntou Salma. Vou descer com o cachorro, respondeu Mané. Com essa roupa ridícula? Não combinamos de incinerar essa bermuda vermelha? Esse blusão aí, já tem quantos anos, seis, sete, todo roto e esticado, não tínhamos jogado fora? Também estou cheia de ficar em casa mas você precisa ficar com esse visual pandemia todo dia? Mané achou que ela tinha razão e no passeio da tarde mudou o visual pandemia para o corona look. A reação dela foi dizer que não tinha nada pra jantar e que a louça do café ainda não tinha sido lavada. Samira no entanto, defendeu o pai e disse que ele não estava ridículo e que mesmo se estivesse, e daí? Anuar se absteve. 17/06/2020
Mané tinha acabado de levar um fora e andava casmurro pela cidade. Tinha levado o pior dos foras, na verdade a mãe de todos os foras, que é quando a menina chega e fala: “não é você, sou eu”, pois foi o que ocorreu. Um casal de amigos, compadecido, resolveu lhe apresentar uma amiga. Mané, que andava meio sem ação, aceitou o convite para saírem os quatro a jantar. O encontro se deu na casa da candidata que apareceu na sala quando todos já se encontravam ali, de pé no chão e com os cabelos molhados. Mané descobriu que ela era de Recife, uma morena roliça e totalmente desejável, que segurou as longas madeixas negras ao se abaixar para lhe dar um beijo e saudá-lo com aquele sotaque cantado, além do cheiro de banho que lhe penetrou as narinas. Conversa mole, jantar, Mané vai pular tudo isso. Mané não vai dizer que se apaixonou pela moça, mas descobriu que, sim, podia se apaixonar. Descobriu também que ela era bailarina, “mas isso não machuca seus pés”, não, ela disse, é balé moderno, venha assistir uma apresentação. Mané foi. Começaram a sair de vez em quando. Ela também tinha saído de uma relação tempestuosa, consolavam-se, gostavam da companhia um do outro, conversavam, bebiam, iam ao cinema, dançavam em festas, tudo muito divertido e aconchegante. Mas, o pior aconteceu. Aquela centelha que incendeia tudo não deu o ar da graça e eles se tornaram amigos. Na hora em que devia ter um beijo, tinha um cafuné. Na hora em que deveria ter um amasso, tinha um abraço fraterno. Mané não vai dizer que não sentiu nenhum tesão. Era uma possibilidade, mas, os dois, de coração partido, resolveram não arriscar. Perto do fim do ano foram ao cinema assistir Luzes da Cidade, do Chaplin. Na fila pra comprar ingressos Mané encontra um amigo. Este amigo que já era naturalmente feio estava péssimo. Mané pergunta o que houve e ele diz que esta se matando de estudar, vestibular pra medicina em poucos dias, o cara tinha olheiras, o cabelo ruivo ensebado, um horror. Mas Mané viu que ele deu um olhar de banda na bailarina e pasmem, viu que ela também olhou arrevesado para ele. Dia seguinte toca o telefone fixo. É tua namorada, ele pergunta? E Mané explica a ele a situação. Posso, ele pergunta? Onde a acho? Agora? Sim, agora! Ah sei lá, a essa hora ela ta na aula de balé! Onde? Ah, acho que na Rua Alves Guimarães. A Rua Alves Guimarães tem umas vinte academias de balé, mas o estudante de medicina foi lá e encontrou a bailarina. Mané não sabe direito o que aconteceu, mas sabe que hoje eles são casados e têm dois filhos, vez em quando conversa com o casal, Mané se sente um pouco cupido e espera que eles vivam felizes para sempre. 15/06/2020
A garota com quem Mané namorava rolou de uma escada certo dia. Mané, que observava a cena, ficou parado como um idiota sem conseguir segura-la. A garota machucou o cóccix e foi parar no hospital. Quando voltou pra casa ela tinha que ficar deitada em determinadas posições, mas o desconforto que sentia obrigava Mané a manuseá-la, vira pra cá, coloca uma almofada ali, mais um pouco de ibuprofeno, um inferno. Dia desses aparece a melhor amiga dela, uma loira grandona pela qual Mané mantinha um interesse velado. Mané não tinha certeza, mas ele achava que a moça lhe dava bola, mas é claro que a condição de amiga da namorada eliminava qualquer possibilidade, pelo menos momentaneamente. Ela chegou trajada num vestido primaveril curto e com um decote abissal e já foi dando bronca, que a posição estava errada, que a almofada não devia pressionar as costas, se tinha tomado o antiinflamatório, um general. A namorada sentiu vontade de ir ao banheiro e Mané praticamente a carregou até a privada, sentou-a no vaso, não sem antes abaixar-lhe as calças do pijama bem como a calcinha e sentou-se na beirada da banheira enquanto a amiga botava uma ordem nas coisas. A namorada pediu que esperasse fora e Mané saiu recomendando que o chamasse assim que terminasse. Na sala Mané encontrou a amiga deitada no sofá que lhe disse, “vem cá, deixa eu te mostrar como ajeitar o travesseiro” e começou a se contorcer para colocar a almofada de modo que o cóccix não encostasse a nenhuma superfície. Nesse movimento, enquanto ela falava “ajuda aqui” a maior parte de suas pernas e coxas ficaram à mostra e a situação piorou bastante quando Mané enfiou a mão por baixo da bunda dela para ajeitar a almofada, mas o pior de tudo foi quando a calcinha enganchou no relógio e bem, digamos que ela ficou pelada. Ficaram parados olhando um para o outro, Mané até sentiu vontade de beijá-la, mas ela disse “peraí, isso não esta dando certo” e Mané desprendeu a calcinha do relógio, colocou o vestido de volta no lugar puxando-o um pouco pra baixo e finalmente colocou a almofada debaixo do cóccix da amiga que falou; “isso, isso mesmo, um pouco mais pro lado...assim”. Nesse momento a namorada grita do banheiro: “o que esta acontecendo aí”?
Dez anos depois, Mané esta andando na Paulista e dá de cara com a amiga. Aquele namoro não tinha ido pra frente e nunca mais tinham se visto depois do episódio, deram-se um abraço caloroso e Mané a convidou para um café, conversaram, atualizaram-se e eis que acerta altura a amiga fala: “ai que vergonha, lembrei agora daquele dia, a namorada agonizando no banheiro e a gente na sala naquela situação”. Mané disse que “olhar agora em perspectiva era engraçado, mas foi uma saia justa, aliás, não tinha nada justo ali, tudo muito solto”. Pairou um clima no ar, Mané lhe disse que tinha pensado muitas vezes naquilo nesses dez anos, ela lhe disse que também. Resolveram então almoçar, ele sugeriu um restaurante ali perto, ela perguntou se ele gostava de espaguete e diante da afirmativa ela disse que sabia preparar uma bolonhesa deliciosa, receita da avó, “eu preparo rapidinho lá em casa, tenho sentido uma dorzinha, quem sabe você não me passa uma pomadinha de ibuprofeno na lombar”? 14/06/2020
Mané prestou vestibular em 1974 e precisa confessar que ninguém, nem mesmo ele, nem ninguém da sua família acreditava que iria entrar na faculdade. Precisa confessar também que foi um péssimo aluno, na verdade um aluno horrível e isso fez com que no dia em que saíram os resultados dos exames e finalmente se verificou que ele tinha passado, seu pai quando chegou em casa, tenha estranhado o ambiente de festa.
O pai chega e pergunta o que aconteceu e a mãe retruca: você não viu, ele entrou na faculdade, a lista saiu no jornal. O pai ficou cabisbaixo e, como fazia todo dia foi pro quarto e não falou mais nada...passou! Vinte anos depois, em 1994, Mané estava com o pai na maternidade, diante daquela vitrine onde ficam os bebes, admirando Anuar que acabava de nascer. De repente seu pai diz, lembra filho, naquele dia que você entrou na faculdade, que eu cheguei em casa e estranhei a festa toda, sabe o que aconteceu? Eu sabia que ia sair o resultado e achava que você não ia entrar então eu não comprei o jornal e fiquei o dia todo pensando num jeito de te consolar. Na verdade não acreditei em você, tinha certeza que você não ia entrar. Ficamos os dois em silêncio observando Anuar por alguns momentos e então ele disse: Parabéns filho! Ao que Mané respondeu: Obrigado, o menino é bem bonitinho né? E ele respondeu: o menino é bem bonito, mas eu estou te dando os parabéns por ter entrado na faculdade, desculpe a demora! O pai de Mané foi uma pessoa que passou a vida em silêncio. Mané não lembra dele metido em nenhuma confusão, nenhuma polêmica, pouquíssimas e breves discussões, sempre em voz baixa. No dia a dia, nas coisas da vida ele parecia sempre meio deslocado, fazia as coisas discretamente, sempre tomando cuidado para não atrapalhar os outros. Só tinha um jeito de vê-lo à vontade: diante de um livro ou na sinagoga. Podiam colocar uma mesa cheia de delícias na frente dele, ele só pegava uma colherzinha disso e um pedacinho daquilo. O pai de Mané trabalhou até o dia em que teve um AVC aos 83. Mané tem certeza que não foi o filho idealizado mas o seu consolo é que aprendeu, depois de ser pai também, que ninguém tem os filhos que idealiza, simplesmente gostamos dos filhos do jeito que eles são. Ele também não foi o pai que Mané idealizava. Na verdade demorou pra entender, mas ele foi um pai muito melhor do que a expectativa. Seu pai era uma pessoa que demorava muito pra demonstrar seus sentimentos e se fazer entender, não demorou 20 anos para o parabenizar por ter entrado na faculdade? Além da leitura, seu pai gostava muito da sua irmã, Mané acredita que muito mais do que gostava dele. Mas disso ele não guarda mágoa pois a irmã de Mané sempre foi bem melhor do que ele. O pai de Mané não foi um homem rico em termos materiais, mas ele lhe deixou de herança o amor pela literatura e isso já foi mais do que suficiente. No túmulo de Aslan tem um frase de Alberto Mangel, que é a seguinte:
“Adoro olhar para minhas prateleiras lotadas, cheias de nomes mais ou menos familiares. Delicio-me ao saber que estou cercado por uma espécie de inventário da minha vida, com indicações do meu futuro. Gosto de descobrir, em volumes quase esquecidos, traços do leitor que já fui.” 13/06/2020
Hoje Mané saiu com Anuar para fazer sua caminhada diária de 4 km, 2 pra ir e 2 pra voltar e passou, como passa de hábito, pela Heitor Penteado onde o comércio de rua reabriu. Mané não pode negar que foi agradável olhar as lojas funcionando, não tinha aglomeração e, imbuído pela data, Mané resolveu comprar um presente para Salma. Entraram numa loja de quinquilharias e, além de comprar uma mochila para Anuar, compraram quatro tuperwares super tecnológicos para Salma que, apesar das dúvidas de Mané, Anuar garantiu que ela adoraria. Mané entregou o presente as 12:30 e Salma só voltou a falar com ele agora há pouco, ao avisar que não tinha nada pra jantar. 12/06/2020
Hoje Mané levou uma bronca quando conversava com uma conhecida e referiu-se a um terceiro conhecido, não importa qual o teor da conversa, dizendo: “ele foi ao protesto porque ele é preto”. Ela passou uma descompostura em Mané dizendo que chamar o outro de preto era racismo, que devia dizer negro. Mané que é judeu e não gosta de preconceito por motivos óbvios, deu algumas explicações à interlocutora e encerrou a conversa que tinha se desviado do assunto. Depois, foi ao Google e digitou: preto, branco, pele preta, pele branca e recebeu as respostas que publica aqui abaixo. Mané tem a pele bege, porque o chamam de branco? É racismo? E porque Mané deve se referir a alguém que tem a pele marrom de negro e não preto? O mundo está muito chato. Mané vai até ali vomitar, dá licença. 08/06/2020
Mané boceja diante de mais uma cena de violência de uma série israelense. Salma pergunta se esta assistindo Fauda de novo, ele diz, não é outra. Mas e essa gente ajoelhada, vendada e com hematomas não são os mesmos de Fauda? Não, alguns eram de Shtisel e outros de Jornada de Heróis. Nesse momento uma amordaçada leva um chute na barriga e Mané resolve escolher um livro pra ler. Ele olha desolado para sua pilha de livros, que preteriu em algum momento, quando se podia sair de casa e entrar numa livraria e ficar olhando para as prateleiras lotadas e dizer ao vendedor que não precisa de ajuda, me deixa em paz, por favor, quero ficar olhando para essas capas e sentindo o cheiro de tinta e papel. Na pilha de Mané livros de mistério, meninas sumidas na floresta e detetives que passam o tempo todo da trama pondo minhocas na nossa cabeça para depois oferecer a solução na penúltima página. Mané está sem paciência, não consegue mais se concentrar e está lendo pouco. Acorda as seis da manha e se põe a cumprir algumas tarefas, passa emails para funcionários e colegas de trabalho e fica bravo porque já são sete horas e ninguém respondeu nada. Às 7:30, fala bom dia no whatsapp. Às 8 alguns respondem bom dia. Tudo isso Mané pensou diante dos livros e não se resolvendo por nenhuum deles, coloca todos de volta no lugar e volta pra sala onde Salma esta vidrada numa cena em que a valente mulher solta as amarras dos tornozelos e dá um chute no saco do seqüestrador. Ele se contorce no chão, a moça levanta e da uma bica no olho dele, ele urra de dor, sangra e agora esta tateando para encontrar o revolver, mas a essa hora a moça já saiu porta afora e...pá, um baque, tudo fica preto e sobem os créditos, Mané boceja, Samira quer saber se podem pedir japonês pra jantar, Anuar diz que sushi nem morto, Salma continua vidrada na TV e Mané diz que vai preparar uma comidinha, ervilhas com cenoura, carne moída e arroz. 02/06/2020
segunda-feira, 1 de junho de 2020
Hoje, depois de 75 dias a titular de serviços gerais da casa de Mané veio trabalhar. Fez um acerto com Salma de vir duas vezes por semana, ao invés de todo dia. Como o salário ficou integral, a moça esta constrangida e quer vir mais vezes, mas Salma e Mané não querem. Ainda. De qualquer forma ela chega, tira o sapato, toma banho, troca de roupa e trabalha mascarada. Se ela esta na cozinha, todos saem, se ela vai pro quarto, todos vão pra sala e assim sucessivamente. É uma logística complicada, mas vá lá, distanciamento em ação. Na hora de atacar a sala, Samira foi pro quarto dela, Salma para o do casal, Mané e Anuar foram andar dois quilômetros pra ir e dois pra voltar. Todos sabem que a família faxinou e limpou a casa neste período, Mané já esta na lavagem de louça número 223, a do almoço de hoje ficou por conta da titular, mas quando ele voltou da caminhada com Anuar a casa estava com um cheiro diferente. Mané demorou a perceber que era cheiro de limpeza. Percebeu também que por mais que se esforce nunca vai ser um bom auxiliar de serviços gerais, nem Salma, Nem Samira, nem Anuar. Com a pandemia Mané também se deu conta de que o que era natural não é mais e que a família é dependente das mãos da titular de serviços para se livrar de sua própria sujeira. Ele sabe que de todo modo, da emprego a uma pessoa, paga impostos, FGTS, etc e que isso é bom, sob certo aspecto, mas a humanidade deveria saber lidar com a sua própria imundície e se livrar deste resquício escravocrata.
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