quinta-feira, 26 de setembro de 2019
Há uns anos [luz] atrás, Mané logrou convencer uma garota que vinha perseguindo, a ter com ele algo mais do que os inúmeros cinemas e barzinhos que vinham frequentando. O fato é que num belo dia, daqueles de frio com sol, viram-se aninhados na cama dela, debaixo de lençóis e cobertas a saciar a sede que os acometia, completamente nus e entregues, totalmente dedicados um ao outro, num daqueles momentos em que nada pode atrapalhar ou interromper dois seres viventes. Nada a não ser uma campainha tocando insistentemente que demoraram a perceber até que a garota levantou, colocou um roupão e foi atender a demanda pois a essa altura a pessoa já tinha passado a esmurrar a porta. Mané permaneceu na cama, tenso, mas não teve que esperar muito pois logo ela voltou acompanhada de uma amiga aos prantos, que sentou na beirada da cama enquanto era consolada pela mesma que momentos antes estava quase se entregando a Mané. Este, tratou de puxar as cobertas até o pescoço e, como já tinha broxado mesmo, tentou entreter-se com os acontecimentos. Mané não entendeu muita coisa mas a moça continuou chorando e a determinada altura ela se desculpou por estar atrapalhando e perguntou se podia ficar com eles e, diante da afirmativa de ambos, ela começou a tirar a roupa, fato que alarmou Mané mas que teve o efeito imediato de trazê-lo de volta para a animação de momentos antes da campainha começar a tocar. O fato é que a moça ficou pelada, no que foi imitada pela companheira de Mané e, ato contínuo, ambas entraram debaixo das cobertas, uma de cada lado do sortudo. Aconchegadas, uma em cada ombro, começaram a tagarelar, uma a se lamentar e a outra a consolar, enquanto ambas faziam carinho distraidamente no peito, pescoço e outras partes de Mané, levando-o quase à loucura ao mesmo tempo que mal se davam conta da sua presença. Conforme Mané ia perdendo a paciência e a prontidão a história da garota foi ganhando dramaticidade e Mané, que já não estava aguentando mais, pediu licença e foi ao banheiro e quando voltou espantou-se ao ver as meninas, abraçadas e adormecidas e, diante da inexorabilidade do fracasso, voltou pra cama, desta vez numa beiradinha e também adormeceu inquieto. Pouco depois acordou e quando virou para se ajeitar deu de cara com Salma que lhe disse "calma, sono agitado"? Mané olhou pro lado assustado e, como não viu mais ninguém, respondeu não, "só um sonho"! 24/09/2019
Há poucos meses Mané operou a catarata dos dois olhos. Precoce, disse o médico, Mané é muito jovem. Ele que disse. Mas o fato é que o olhar de Mané para o mundo mudou. Antes, por 50 anos, ele tinha que por os óculos para enxergar longe e os tirava para ler. Agora, ele não usa mais óculos para enxergar longe, aliás, enxerga muito bem de longe, mas, agora ele tem que por óculos para ler. Doutor, não pode tirar a catarata e me deixar como sou óculos pra longe e nada para perto, perguntou Mané já prevendo as dificuldades. Impossível, decretou o kaiser da visão. Ok, então vamos a isso. Dois minutos depois de acordar Mané já estava enxergando a km de distancia. Mané começou a enxergar detalhes que nem desconfiava existir. Começou, por exemplo, a perceber que todos os seus conhecidos tinham rugas que antes passavam despercebidas. Comentou isso com Salma enquanto olhava de través para ela, mas Salma lhe disse para não ousar dizer o que estava pensando. Mas para a leitura, enfim, Mané percebeu que precisava de uma numeração para ler e outra para enxergar o computador. O médico disse que era isso mesmo, até sua visão estabilizar, compre aqueles óculos de 20 reais numa banca, enquanto as consultas de controle se sucediam. Mané agora tem dois óculos perto do computador de casa e mais dois no escritório. Tem outro par no criado mudo, um no braço do sofá e um no banheiro. Por precaução tem um que fica no carro, dois na mochila para o metrô e agora que a visão de Mané estabilizou, ele mandou, a pedido do médico, fazer um par bem bom, multifocal, que custou uma fortuna e que Mané carrega para qualquer lugar que vá. No outro dia, Sara a mãe de Mané, enquanto este reclamava da confusão com os óculos, observou que, finalmente, podemos enxergar os seus lindos olhos verdes, agora que você não usa mais óculos para longe. Ficou suave. 19/9/2019
A semana de Mané começou azeda, na verdade, pegou carona com o final da outra, varou o fim de semana e continuou azeda. Mané arrumou confusão em todas as áreas de atuação. Azedume no trabalho, família, compras, corridas de táxi, celeumas no facebook, tudo deu errado. Mané não quer fazer chorumelas, já fazendo mas, o importante é que essa devastação durou só até hoje e ela teve fim através de um whatsaap que mané recebeu de alguém a quem ele tentou ajudar meses atrás, basicamente fornecendo algumas informações sobre a imigração da família. Falou o que sabia, disse pro cara procura aqui, procura ali e pronto. A mensagem em questão dizia: "suas informações fizeram toda a diferença, consegui tudo o que buscava e já posso dar andamento à minha vida, você me abriu a porta que faltava". Mané não precisava de mais nada. Ganhou o mês gastando zero de energia. Fazer a diferença é bom e faz toda a diferença. 18/9/2019
Qual sera o nome do distúrbio que faz com que pessoas que tenham ido embora do Brasil, emigrando para outro país por diversas razões, voltem pouco tempo depois, em visita, e fiquem atazanando os que ficaram com observações como: "nossa que cidade mais suja, credo esse prédio parece uma fortaleza, que absurdo seu filho não pode ir a pé para a escola, não se pode atender um celular na rua, que horror" e outros quetais sobre a situação pavorosa em que se encontram nossas cidades e nosso país, como se nós que ficamos fossemos culpados e eles que viveram por décadas por aqui não tivessem a mínima responsabilidade ou desconhecessem a situação. Todos somos responsáveis sim, inclusive eles, assim como petistas, os índios, negros, judeus, católicos, pessedebsitas e bolsonaristas, pela situação em que se encontra o país, como diria o poeta, o Brasil é a nossa cara e é também a cara dos que o abandonaram porque aqui estava muito difícil viver mesmo com muito dinheiro, que dirá com pouco. Sinto saudades de vocês que se foram, tenho bons amigos morando no exterior e eu mesmo só não fui embora porque minha configuração familiar não permite, fora o horror que eu tenho de me sentir imigrante, coisa que já fui e não quero ser de novo, então, vivam bem, sejam felizes no lugar que escolheram viver mas não precisam vir aqui apontar nossos defeitos, já os conhecemos de sobra. 17/9/2019
Mané está com problema para marcar compromissos pela manhã. As pessoas adoram marcar coisas as nove da manhã, quiçá antes. Num WhatsApp com o oftalmo, o doutor queria que ele comparecesse as 8:30, Mané disse que só conseguiria as 11, acabaram fechando as 13. Reuniões de trabalho: só depois das 10:30, os adversários ficam possessos e Mané sempre tem que se defender, senão vejamos: Mané acorda todo dia as 6:30. Quando não vai ao parque, faz as suas abluções e fica na sala lendo ou no computador aproveitando a sublime quietude matutina da casa. Pelas 8 a família acorda, Mané se troca e desce pra passear o cachorro e comprar pão fresco, entretanto, Salma prepara o café. Quando Mané vai ao parque, acrescente meia hora ao processo. Mané termina o breakfast pelas 8:45/9:15, escova o dente e combina o dia com Salma. Tem que pingar colírio, passar hidratante nas pernas, protetor solar no rosto, pagar boletos, separar uma fruta, água e outros muitos pequenos detalhes. Já são 10 da manhã. De carro ou de metrô são, com sorte, 30, talvez 40 minutos até o escritório. Qual parte do "só posso depois das 10:30/11:00hs", as pessoas não entenderam? 28/8/2019
É de tarde. Mané finalmente consegue se recostar e abrir o livro na página que parou ontem. Ele lê as últimas linhas para recuperar o clima da história quando escuta o telefone gemer. Ele olha, é um WhatsApp, uma mensagem de voz. Mané odeia mensagens de voz. A pessoa fica ali pensando no que vai falar, geme, resfolega, até que 15 segundos se tornem duas horas. Mané fica olhando para a mensagem como se fosse uma bomba. Se escutar, vai sentir aquele odiozinho e vai ter que responder. Se não responder a pessoa poderá magoar. Ele pensa, é sábado a tarde, a pessoa deve estar querendo saber o que estão fazendo, o que vão fazer. Então Mané, sem ter ouvido a mensagem, tem uma ideia é começa a digitar uma resposta padrão. “Estamos em casa, vamos ao cinema à noite, etc”, e volta para o livro. Em dois minutos, outra mensagem. De voz. Como um flash, Mané diz “que acha que não, que prefere ir ao cinema mesmo, que liga amanhã”. E assim foi durante uns vinte minutos, Mané foi respondendo às mensagens de voz sem sequer saber o que o interlocutor queria. Incomodado, Mané largou o livro de lado e lamentou-se por não ter lido nem uma linha, agora a pessoa deveria estar achando que ele era louco ou pior, então foi até a geladeira e pegou um dos iogurtes de Anuar e tomou de um trago só. Depois zanzou pela casa vazia e encarou o cachorro para ver se lhe dava alguma luz mas Milu deu-lhe as costas e deitou. Então Mané voltou ao livro, mas as letras estavam embaralhadas e por fim resolveu telefonar para a pessoa que o tinha atormentado mas, nesse momento, Salma ligou e perguntou se ele tinha combinado ir ao cinema com o tal casal, que a moça tinha ligado e pedido que comprasse mais dois ingressos para eles, já que não tinha conseguido terminar a conversa comigo nem saber qual filme iríamos assistir, “o que aconteceu”, Salma estranhou, “você não disse que não queria sair”? 18/8/2019
Isso escrevi pro meu pai quando ele já tinha morrido e interpretei o texto no púlpito da sinagoga no fim do luto. Essas miudezas eu nunca falei pra ele em vida. Se você tiver um pai, fale com ele!
Eu prestei vestibular em 1974 e eu preciso dizer que ninguém, nem mesmo eu, nem ninguém da minha família acreditava que eu iria entrar um dia na faculdade.
Tenho que confessar que eu fui um péssimo aluno, um aluno horrível e isso fez com que no dia em que saíram os resultados dos exames e finalmente se verificou que eu tinha entrado na faculdade, meu pai, quando chegou a casa estranhou a festa que acontecia, telefonemas,o jubilo, todos muito felizes e surpresos com o meu feito.
Meu pai chega e pergunta “mas o que aconteceu”?
E minha mãe: “mas você não viu”? Titi (este sou eu) entrou na faculdade, não viu no jornal?
Vi que meu pai ficou cabisbaixo e, como fazia todo dia se retirou pro quarto em silêncio e não falou mais nada...passou.
20 anos depois, em 1994, estávamos eu e meu pai na maternidade, naquela vitrine onde ficam os bebes admirando meu filho que acabava de nascer. Ele do meu lado olhando o menino de repente diz, “lembra naquele dia que você entrou na faculdade, que eu cheguei em casa e estranhei a festa toda, sabe o que aconteceu? Naquele dia eu sabia que ia sair o resultado e eu achava que você não ia entrar então eu não comprei o jornal e fiquei o dia todo pensando num jeito de te consolar. Na verdade eu não acreditei em você, eu tinha certeza que você não ia entrar”. Ficamos os dois em silencio observando o bebe por alguns momentos e então ele disse: Parabéns filho!
Ao que eu respondi: Obrigado pai, o menino é bem bonitinho né?
E ele me disse: o menino é bonitinho, mas eu estou te dando os parabéns por ter entrado na faculdade, desculpe a demora!
Então, esse era o meu pai. Ele foi uma pessoa que passou a vida no maior silêncio. Não me lembro dele metido em nenhuma confusão, nenhuma polêmica, pouquíssimas e breves discussões, sempre em voz baixa. No dia a dia, nas coisas da vida ele parecia sempre meio deslocado, fazia as coisas discretamente e sempre tomando cuidado para não atrapalhar os outros. Só tinha um jeito de vê-lo à vontade: diante de um livro ou lá na sinagoga da abolição.
Podiam colocar uma mesa cheia de delícias na frente dele, mas ele só pegava uma colherzinha disso e um pedacinho daquilo.
Meu pai trabalhou em todos os dias da vida dele até o dia em que ele teve um AVC há sete anos. Que me lembre foram raros os sábados em que ele não foi à sinagoga da Abolição onde ele rezava, estudava e onde fazia uma das coisas que ele mais gostava de fazer que era explicar as minúcias e os detalhes de uma nova descoberta que ele tinha feito nos livros de reza.
Eu tenho certeza que eu não fui o filho que ele idealizou, mas meu consolo é que eu aprendi depois de ser pai também que ninguém tem os filhos que idealiza. Simplesmente a gente aprende a gostar dos filhos como eles são.
Ele também não foi o pai que eu idealizava. Na verdade eu demorei pra entender, mas ele foi um pai melhor do que a expectativa. Mas tem uma justificativa pra isso, o meu pai era uma pessoa que demorava muito pra demonstrar seus sentimentos e se fazer entender, não demorou 20 anos para me parabenizar por ter entrado na faculdade?
Meu pai teve um começo de vida difícil, com seis meses perdeu a mãe. E um fim de vida muito difícil também com toda essa doença.
Nesse intervalo de 90 anos acho que eu minha mãe, minha irmã fomos uma boa companhia pra ele, com todos os altos e baixos.
Além da leitura, meu pai gostava muito da minha irmã, muito mais do que gostava de mim. Mas eu não guardo mágoa, isso é muito fácil de entender. Minha irmã é uma linda pessoa doce e prestativa, já eu...bem, quem me conhece entenderá.
Com minha mãe nem precisa falar: eu sei que eles não viveram uma vida glamurosa, mas juntos foram valentes e se complementaram de uma forma quase perfeita, porque nada na vida é perfeito.
Meu pai não era um homem rico, em termos materiais, mas eu herdei dele o amor pela literatura e essa é uma grande, enorme herança.
Eu só espero que em qualquer lugar que ele esteja agora, se estiver em algum lugar, tenha um monte de livros pra ler. Obrigado
Este é o texto gravado na pedra do seu túmulo.
Adoro olhar para minhas prateleiras lotadas, cheias de nomes mais ou menos familiares. Delicio-me ao saber que estou cercado por uma espécie de inventário da minha vida, com indicações do meu futuro. Gosto de descobrir, em volumes quase esquecidos, traços do leitor que já fui. 11/8/2019
Mané está na fila do caixa de uma padaria e vê um aviso grudado na parede: “sr cliente, suas moedas são muito importantes. Troque suas moedas aqui e a cada 200 reais o sr leva o dinheiro em cédulas e ganha um bolo formigueiro”. Quando chega sua vez Mané pergunta: é só trazer 200 que ganha um bolo? E a moça sorrindo: sim senhor! E Mané: se eu trouxer 1000, eu ganho 5 bolos? A moça fez cara de dúvida é disse “ai moço, aí eu não sei”. Mané então questionou a garota: ué, 200 x 5 é 1000, 200 igual a um bolo, 1000 igual a 5 bolos. E a moça se contorce: ai moço, isso eu preciso perguntar. Mané, animado com a conversa lhe diz: peraí, se eu vier as 10hs com 200, eu ganho bolo? Sim! E se eu vier as 10:30 com mais 200, eu ganho outro bolo? Acho que sim! Então eu posto vir 5 vezes ou trazer tudo de uma vez e ganhar os 5 bolos? ...após um silêncio demorado a moça pergunta se Mané quer que ela chame o gerente e Mané diz que não precisa, “podemos resolver isso entre nós”. Aí a moça resolve contra atacar: mas afinal qual a quantidade de moeda que o sr tem? E Mané diz: eu? Na verdade não tenho nenhuma moeda, só esses 75 centavos que você me deu de troco. Fechando a cara a menina enfia os pães de Mané numa sacola plástica e grita: próximo! 10/8/2019
Mané está acostumado a recolher o coco que Milu faz na rua depois de quase treze anos de passeios diários. Ocorre que, talvez por estar envelhecendo, o cachorro mudou o regime de defecação e passou a fazer coco em duas partes: uma logo que põe o pé na rua e outra um pouco antes do fim do passeio. Tendo sido pego desprevenido algumas vezes, Mané passou a levar dois saquinhos plásticos e a coisa se assentou assim. Nas poucas vezes que esqueceu o segundo saco, Mané teve que pegar o primeiro coco e ficar segurando até que ocorresse a segunda revelação, ou seja, Mané fica o passeio todo segurando a coleira com uma mão e uma sacola plástica com um montinho de bosta na outra. Mané tem certeza que hoje, quando encontrou um amigo na rua e o abraçou, uma bolota de merda caiu da sua mão e grudou nas costas da camisa do amigo. Mané não falou nada mas, ao chegar em casa e contar o ocorrido a Salma, esta o obrigou a ligar pro amigo para avisar mas, antes que Mané pudesse falar qualquer coisa o amigo lhe contou que tinha chegado em casa com um pedaço de merda grudado nas costas que talvez fosse coco de morcego porque era bem fedido e como eles tinham ficado a conversar debaixo de uma árvore... Mas o que Mané queria falar mesmo? Mané então desconversou e disse que tinha sido um prazer rever o amigo, que precisavam marcar um café com mais vagar. E desligou jurando que nunca mais esquecerá a segunda sacola para os dejetos caninos. 8/8/2019
Fim de tarde. A casa está vazia e silenciosa. Mané repõe o moletom que tinha tirado, senta na poltrona e levanta o apoio dos pés. A sala está iluminada apenas pela luz de leitura e Mané, depois de devolver o olhar intenso a Milu que o observa, pega o livro que estivera lendo de manhã e abre na página marcada. É um livro policial escrito de forma bem realista e Mané o tinha abandonado contra sua vontade quando saía para o trabalho. O autor descreve acontecimentos e sensações de uma forma tão explícita que Mané pode sentir fisicamente as coisas enquanto lê. Milu está inquieto mas Mané o ignora. Numa determinada passagem do livro o investigador encarregado do assassinato está numa sala cheia e sente uma vontade incontrolável de peidar. Ele sabe que naquele recinto fechado o estrago será considerável então tenta segurar a soltura dos gases enquanto pode mas, em vão. Num momento determinado, ele aderna disfarçadamente para a direita e solta um grande peido, daqueles silenciosos e muito, mas muito fedorentos. De imediato, a sala fica em polvorosa, todos abanando e acendendo fósforos mas o cheiro é insuportável e as pessoas começam a debandar atabalhoados. Enquanto isso, Mané que se divertia com a cena, começou a sentir um cheiro de horrível e por um instante imaginou que o realismo da escrita o estava afetando. Mané encostou o nariz nas páginas do livro para ver se estava fedendo, depois, na medida em que o cheiro não passava, Mané levantou pra ver se não tinha pisado em algum cocô e foi quando se deparou com Milu que o observava com cara de pidão culpado já esperando perto da porta. Mané pôs a coleira no cão, pegou dois saquinhos plásticos para recolher dejetos e saiu. No elevador Milu ainda soltou mais um peido e na rua, enfim, Mané vai poupa-los dos detalhes sórdidos mas ele teve que usar os dois saquinhos. 22/07/2019
No café da manhã, Mané conta que teve um sonho com uma pessoa do passado. No sonho, a menina aparece na casa atual de Mané e lhe diz que eles têm um problema de trabalho para resolver. Salma pergunta se a garota, que no passado tinha trabalhado com Mané, tinha a aparência anterior e se ele sabia qual era o problema. Mané não se lembrava da aparência da menina, nem do problema e ficou olhando com apreensão para Salma que matutava uma alguma coisa. Mané disse para Salma que era impossível essa garota saber onde moravam, que não a via há mais de 30 anos. Salma professoral disse que isso não tinha a menor importância e que, na verdade, aquilo era um aviso do inconsciente de que Mané tinha enterrado um problema não resolvido no passado e que aquela era uma mensagem de que este problema ainda o atormentava. Disse ainda que a moça era a mensageira, que não necessariamente o problema tinha relação com ela e nem com o trabalho. Salma continuou dizendo que todos carregamos nossos problemas ao longo da vida e que, se não resolvidos eles iam sendo estocados, escondidos, colocados de lado, enfim, mas que às vezes eles voltavam para nos atormentar. Mané então resumiu perguntando: então eu tenho problemas não resolvidos no passado que vão voltar para me atormentar apesar de eu não saber quais são, com quem foram e nem suas conseqüências. E Salma disse: exatamente! Mané então levantou da mesa e começou a lavar a louça. Enquanto enxaguava os apetrechos com água geladíssima Mané pensou que, agora sim, tinha um problema. 13/07/2019
Salma e Mané têm personalidades opostas. Têm também alguns pontos em comum. Ambos gostam de ler e escrever por exemplo e, o que também pode ser encarado como defeito, ambos gostam de seus respectivos sogros. Neste ponto, a diferença entre eles é que Salma fatura com o fato. Leiam essa crônica vencedora cujo protagonista é o Aslan, pai de Mané e de coadjuvante, Sara, a mãe.
Livros
Salma Exlibris
Eu vendo livros. Livros usados.
O negócio começou há 10 anos.
Meu sogro era um leitor contumaz, enchia a casa de livros, dos mais variados assuntos e idiomas. Minha sogra, sem saber mais onde armazená-los, ameaçava jogá-los fora. Ele se enfurecia. Sempre terminavam brigando. Ele seguia comprando, e foram os livros que lhe fizeram companhia na velhice, quando não podia mais locomover-se e não interessava-se mais pelas pessoas. Anotava um horário para cada um dos livros que pretendia ler no dia e quando lhe diziam que tinha que marcar um compromisso ele exclamava: “Não tenho horário, estou com a agenda cheia!”
Quando ele morreu, ela mudou de ideia, já não queria mais desfazer-se dos livros. Achava que ele iria ficar bravo com ela, de onde estivesse. Convenci-a de que ele ficaria feliz ao ver seus amados livros circulando pelo mundo, sendo lidos, ao invés de ficar mofando dentro de armários.
Assim nasceu meu sebo, vendendo, a princípio, os livros do sogro. Além de render uns trocados, permitiu-me armazenar livros, sem culpa nem brigas. E revelou-me um mundo de histórias e descobertas interessantes aos longo dos anos.
Descobri que havia lugares no Brasil que nem sabia que existiam, para onde os livros passaram a ser enviados: Formiga, Treviso, Quixadá, Antonio Carlos, Bandeirantes, Vitória de Santo Antão, Cabrobó do Norte, quem sabe onde ficam? Mais curioso é quando o endereço vem com a recomendação: ao lado da farmácia, encima do posto de gasolina, entregar na padaria....
Constatei que as pessoas muitas vezes doam livros que sequer tiveram a curiosidade de espiar, estão intactos, provavelmente recebidos em datas festivas ou comprados no lançamento de amigos e parentes. Pelas dedicatórias, vou inferindo as histórias: “para a querida Ana, espero que este livro te ajude a entender melhor meu trabalho” (parece que Ana não entendeu!), “Maria, já que voce gosta de champanhe, resolvi comprar um livro que conta a história da mesma“ (pelo visto, Maria preferiu continuar só bebendo), “Para o grande amor da minha vida” (que, tudo indica, acabou)... Dentro dos livros, fotos, bilhetes esquecidos, cartões de loteria, contas, revelam mais um pouco de algo ou alguém que foi deixado para trás...
Já o tipo de livro que as pessoas adquirem também é curioso.
Além dos didáticos, que os pais compram para tentar economizar um pouco na longa lista de material escolar (e que muitas vezes são devolvidos, intactos, no ano seguinte) os campeões de venda são os de autoajuda, religião e esotéricos. Ocorre-me que em tempos difíceis as pessoas buscam apoio em si mesmas, num Deus maior ou em forças sobrenaturais. Títulos como “Em busca do sentido da vida”, “Libertação interior”, “Amores que nos fazem mal”, “Tenha medo.. e siga em frente!” ou “Resgatando o cristianismo”, “Os judeus e a modernidade”, “Respostas de Deus para problemas complicados”, estão entre os top 10. Já os esotéricos tem títulos intrigantes: “Terapia de vidas passadas”, “Muitas vidas, muitos mestres”, “Nossas forças mentais”, “O poder da cura psiquica” ou “Tudo o que uma jovem bruxa precisa saber”.
Também livros educativos são muito procurados. Tudo começa com a alegria de “Vamos ter um bebê” ou “O que esperar quando voce está esperando” e termina com a dura realidade de “SOS Babá!”, “Nana nenê” ou “Socorro, meu filho não quer comer!”. Quando os filhos crescem, tudo indica que os problemas só aumentam, entrando na lista “O manual de sobrevivencia do adolescente” ou “Meu filho é uma bagunça”!
Seja qual o motivo, uma coisa é certa: com toda a revolução tecnológica, o livro continua tendo seu lugar no mundo, seja como fonte de conhecimentos, resposta a indagações existenciais, inspiração, ajuda, conforto, ou simplesmente um presente que, espera-se, seja especial.
O livro é mágico, nos leva através do tempo e do espaço, conectando-nos com outros universos reais ou imaginários, outras dimensões.
Meu sogro, homem sábio, sempre soube disso! 07/07/2019
Salma deu algum trabalho até ceder seus encantos a Mané. Foram meses de lero-lero até chegarem aos finalmente. Até outro namorado Salma teve do momento em que Mané a abordou até a conquista definitiva. Mané esteve pensando qual teria sido o golpe de misericórdia e lembrou que certo dia deixou um bilhete na casa dela, um bilhete em forma de poema, que falava do último encontro, coisas que não foram ditas e atitudes que não foram tomadas. Literatura. Salma respondeu com outro poema e a partir daí eles ficaram um tempo trocando poemas e prosa até que uma noite, no estacionamento do prédio dela, Salma deu um chega mais em Mané e lhe disse «vem cá, vamos parar de escrever e começar a desenhar». E eles estão desenhando há quase 40 anos. No outro dia, Mané, jocoso, disse para Salma que talvez, de vez em quando, devessem voltar a escrever aquelas coisas bonitas que motivaram tudo isso. Samira e Anuar também estavam se divertindo com a conversa mas acabado o jantar, cada um foi pro seu canto e não se falou mais no assunto. Na manhã seguinte as 6:30, Mané se preparava para ir ao parque quando notou um bilhete pendurado na geladeira. Mané abriu a folha onde estava escrito «Mané» e, antes de ler, imaginou que Salma iria iniciar um novo duelo literário. De fato lá estava a letrinha caprichada de Salma, um pouco inclinada à direita e, com ansiedade, Mané se pôs a ler a missiva que dizia:
200 gramas de queijo prato, 150 de peito de perú, 3 pãezinhos clarinhos, 1 mais tostado pra mim, um queijo minas fresco e uma manteiga sem sal porque a médica disse que minha pressão está um pouco alta. Te amo! 05/07/2019
Mané namorou com uma menina, uma daquelas meninas que de olhar, as pessoas já se sentiam abaladas, os homens principalmente. Era uma garota quase perfeita, não que alguma namorada de Mané não tenha sido quase perfeita, mas essa era mais do que quase perfeita. De carnes fartas e curvilínea, era o que podíamos chamar de uma mulher gostosa. Mané caiu de quatro por ela, fazia tudo o que ela queria, fosse Mané um cachorro, abanaria o rabo apenas com o olhar de través que ela lhe endereçava. Não é necessário ressaltar que seu principal atributo físico eram as suas nádegas, seu posterior, seu assento, seu bumbum, sua bunda. Bunda. Mané ia dormir e acordava pensando na bunda dela. Quando estavam juntos a mao nada boba de Mané, estivesse onde estivesse, sempre acabava aninhada na bunda dela. Mané apertou a bunda dela de todos os jeitos, por cima, por baixo, pelo lado, com pouca pressão, com muita pressão, com e sem delicadeza a bunda dela era um verdadeiro playground. A menina, claro, gostava da ação. Contorcia-se nos braços de Mané enquanto a mão dele deslizava do ombro para os quadris, do rosto para a base das costas, tudo sempre terminava em bunda. Fosse Mané um presidente teria dito: “nunca antes na história deste país houve uma bunda como aquela”. Fosse ainda Mané um presidente mais à direita teria latido: “Brasil acima de todos e a bunda dela acima de Mané”. Quando andavam na rua, sempre seguiam agarradinhos, Mané cochichava coisas na orelha dela, ela se desmanchava de rir, logo o clima esquentava e eles se agarravam e lá ia a mão de Mané para a bunda dela. Mas às vezes ela ficava nervosa. Ela ciciava: “para de passar a mão na minha bunda, aqueles caras estão olhando”. E Mané: “que olhem, que morram de inveja”. E ele apertava mais aquelas carnes e se deleitava com os olhares alheios, olhares de inveja os homens, ás vezes de reprovação das mulheres. O fato é que essa coisa de passar a mão na bunda dela no meio da rua começou a incomodá-la, teria ela dito a palavra assedio alguma vez?, Mané não lembra. O Que Mané sabe é que Mané adorava a bunda dela, adorava até as celulites que qualquer bunda avantajada tem e foi um choque quando um dia ela resolveu dar um pé na bunda de Mané. Certa vez, já casado com Salma, Mané avista aquela bunda inconfundível na Av. Paulista. Inconfundível. Mané aborda a garota e o encontro é bem caloroso. Abraçam-se, beijam-se e por um triz...vocês já sabem. Ela convida para um café, eles sentam e começam a colocar em dia os assuntos. Ela casou e se separou tem duas filhas, casa, cachorro, trabalho e um namorado e nesse momento ela da um sorrisinho e lança para Mané aquele olhar de través. Mané quer saber o que foi e ela fica sem jeito, mas depois de alguma insistência ela diz: “é que, sabe, às vezes tenho saudade de você porque, sabe, namorei com um monte de caras, mas nenhum deles passa a mão na minha bunda com a devoção que você passava, sinto falta disso”. 01/07/2019
Mané viu uma moça no carro da frente. Farol fechado, ela lutava para fazer um rabo de cavalo, talvez uma trança. Às vezes Mané gostaria de ter cabelo comprido só pra fazer um rabo de cavalo no farol. Por quase toda extensão da Paulista, Mané foi atrás da moça admirando seus malabarismos para colocar o elástico. A cada abertura de farol, ela parava e no próximo tinha que começar de novo. Lá pelo fim da avenida Mané emparelhou e olhou curioso para dentro do carro dela pronto para se deparar com uma beldade charmosa. Era um homem. 29/06/2019
Samira chegou em casa com uma nova tatuagem. Apesar de ser uma mulher sob todos os aspectos chegou com os olhos em busca de aprovação. Salma e Mané não dizem nem sim nem não, aprovam sem aprovar, aguentam os filhos que nos tornam bobões para o resto da vida. A tatuagem é bonita, ok, mas Mané achou um pouco excessiva. Samira falou que era um peixe-diabo e Salma, com doçura perguntou “não podia ter feito um peixinho fofinho?”, ok, o que está feito, está feito e de pronto Mané afundou-se na poltrona e se escondeu atrás de umas páginas que o atraiam mais do que uma discussão ou uma reprimenda que não cabe, nunca coube. E Mané ficou ali pensando que Samira o contraria desde que nasceu. Naquele dia, ela emergiu da barriga de Salma, um ratinho meio cinza, cheia de muco e sangue pelo corpo, mal chorou o médico até avisou Mané que estava viva, não se preocupe, um bichinho enrugado e feio que olhava com tédio para Mané que procurava, afinal, cadê a princesa que me prometeram? Enfim, Mané dedicou alguns minutos a Salma enquanto levavam aquele pacotinho, depois a enfermeira voltou com o embrulho e a colocou perto deles, ambos ficaram irritados porque a moça os chamava de pai e mãe, enquanto Mané pensava pai e mãe uma ova, aqui só tem Salma e Mané e essa coisinha pegajosa, que nome dar a essa pessoinha? Depois a cornucópia de cumprimentos e familiares com olhares ansiosos e no fim, no quarto, enquanto aguardavam, Mané cochicha para Salma: “a menina nasceu meio feinha, mas acho que não tem importância” e Salma, atordoada, lhe diz para calar a boca, nem deu pra ver nada ainda. E Mané diz que viu sim e que ela é feinha, meio cinzenta, não deveria ser rosinha? Já que Salma tinha adormecido Mané foi até o berçário e soube que a pequena estava ali bem na frente e com medo foi até o canto apontado e se deparou com um nenezinho todo cor de rosa que dormia profundamente com os bracinhos pra cima. Mané bate no vidro e questiona à enfermeira, “cadê minha filha” e a enfermeira diz que é aquela mesmo e Mané encosta o nariz na vitrine e se apaixona imediatamente por Samira que o olhava de olhos bem abertos e fazia um biquinho assim com a boca, Mané achou que ela queria mamar e bateu novamente no vidro e a enfermeira irada lhe disse que já ia levar o bebê. E Mané correu pro quarto e sacudiu Salma que ainda dormitava e lhe disse: “eu me enganei, ela é linda, cor de rosa, não cinza, vamos chamá-la Samira e Salma, com o olhar esgazeado lhe disse: “me deixa, vai pro inferno, por favor”! Diante desses pensamentos, qual a importância de um peixe-diabo tatuado no braço? 21/06/19
Nos últimos dias a #Comgás fez uma obra no bairro de Mané a pretexto de modernizar a rede e que demoraria, a princípio, 12 horas. Ficaram durante uma semana com a rua como se tivesse sido bombardeada, barulho durante o dia, a noite e a madrugada, além um corte no fornecimento de 18 horas até que as coisas voltassem quase ao normal. Além da péssima qualidade do serviço público que disse que duraria 12 ao invés das 168 horas que passaram, Mané quer reclamar da falta de consideração desses desgraçados que deixaram a rua cheia de pedrinhas de asfalto e agora, cada vez que desce para passear com Milu, o cãozinho volta com as patinhas cheias de bolinhas de betume entranhadas no meio dos dedos e Mané se vê obrigado a retirar uma por uma, tarefa que provoca dor no cachorro e em Mané que fica levando mordidas no processo, isso sem contar que, quando o Pet, com as patas cheias de asfalto, se recusa a caminhar ou sequer terminar o serviço a que se propõe quando vai à rua, supostamente cagar e mijar, Mané tem que pegar o bichinho no colo e carregá-lo até em casa, isso três vezes por dia. Milu pesa 10kg e Mané tem uma artrose no ombro, a Comgás vai pagar pelas consequências? Quanto tempo leva para as ruas se autolimparem? 16/06/2019
Mané está pela cidade já que seus funcionários foram dispensados para que não passassem perrengues, a firma esvaziou-se, um dia ensolarado se apresenta, coisas adiadas poderão ser feitas. Nos pedaços onde andou, Vila Madalena, Paulista e imediações, tudo tranquilo, uma certa calma no ar, uma cidade mais humana, tudo funcionando num ritmo mais lento, ruas menos cheias, uma delícia. A depender de Mané, poderia ter greve geral todos os dias.14/06/2019
Ah, 12 de junho. Que lindo dia, o amor está no ar. No facebook, só alegria. Velhinhos de mãos dadas, beijos apaixonados, casais comemorando, viagens deslumbrantes. Mané chegou em casa com amor no coração. Sobre a pia, um Tupperware e um bilhete de Salma: vou atender até mais tarde. Pra você tem essa canja, veja o que as “crianças” vão querer. Depois do consultório vou tomar um chopp com as amigas. Bj. 12/06/2019
Mané acorda antes de todos na casa, menos de Milu. Quando abre a porta ele encontra o cachorro a postos e, quando retorna de suas abluções, o espertinho já entrou no quarto e já se instalou na cama, no lugar de Mané, ao lado de Salma. Certa feita, enquanto Mané decidia se ia tirá-lo de lá ou não, ele vê Salma se virar para o lado do cão e colocar a mão na sua pelagem, que é macia. Milu começou a ronronar baixinho enquanto Salma passava a mão pelo corpinho peludo e, súbito, Mané escuta Salma falar com a voz embargada pelo sono: «mmmm, tá com o cabelinho macio, aposto que está usando meu xampu importado, mas você está precisando ir ao barbeiro, o cabelo já está juntando com a barba ». Mané resolveu não interromper o idílio e retirou-se em silêncio. Mais tarde tomaram o desjejum e ninguém tocou no assunto. Mas Milu é um concorrente de peso. 6/6/2019
Quando estava prestes a se casar, em dezembro de 84, Mané era um feliz proprietário de uma poderosa CB400, o sonho de consumo de qualquer motociclista. A fim de comprar uma linha telefônica para o lar que montava com Salma, ele se viu obrigado a vender o bólido, coisa que fez com gosto e sem nenhuma hesitação. A moto foi vendida por 5 milhões e 500 mil cruzeiros e a linha telefônica foi comprada por 4 milhões e 800 mil da mesma moeda. Os 700 mil restantes Mané não sabe dizer no que foram utilizados. Instalaram a linha na sala e puseram uma extensão no quarto, pagando uma taxa extra por isso. Salma gostava de chegar em casa à tardinha, tomava seu banho e depois, enrolada numa toalha, deitava na cama e ficava falando ao telefone até a hora em que Mané chegava do banco e a encontrava tagarelando seminua na cama, uma visão inspiradora. Mané se livrava do paletó e da gravata e também ia tomar seu banho e voltava para interromper as conversas de Salma do melhor jeito possível, mas vocês não têm nada a ver com isso. O tempo passou e hoje a casa de Mané tem 5 linhas telefônicas, uma delas esquecida, exatamente aquela que a moto comprou. Quando essa linha toca todos se assustam, só Anuar o atende porque é o único que sabe onde fica o aparelho. Quase sempre é alguém querendo vender alguma coisa ou então quem chama é Muna, sogra de Mané, que até hoje não se acostumou ao celular. No outro dia o telefone milionário tocou e Mané, que por acaso estava do lado, atendeu. Era do consórcio nacional Honda e queriam lhe vender um plano para aquisição de uma moto, Mané tinha sido especialmente selecionado pelo cadastro deles, disse o atendente. Mané respondeu que já tinha uma moto, o cara animou-se e perguntou que moto era. Estamos falando por ela, respondeu Mané. Depois de um curto silêncio o interlocutor falou: “senhor”? Mané repetiu: “eu já tenho moto e estamos falando através dela nesse momento, não quero consórcio para uma moto nova”! Tututututututu....18/05/2019
Mané sempre compra água na rua. Por uma garrafa de 500ml ele já pagou de R$1,00 a R$6,00. Nesse quiosque Mané pergunta o preço e a moça mal humorada lhe diz: quatro real. Mané reclama que essa é uma água muito cara e a moça, que estava com a garrafinha na mão, torna e guardá-la e diz pra ele então ir procurar em outro lugar. Mané não se abala e resolve comprar ali mesmo pois tem sede. A moça torna a pegar a garrafa e Mané lhe entrega uma nota de R$5,00, ato contínuo a moça pergunta se ele não tem troco ao que Mané faz cara de paisagem, já abrindo a garrafa para gerar o fato consumado. A moça então lhe entrega R$6,00, três notas de R$2,00. Mané percebe o erro mas resolve se vingar da mal criada e se vira para ir embora. Depois de andar 5 metros, Mané se arrepende, vai até a moça e lhe entrega uma nota de R$2,00, dizendo “a senhora me deu troco a mais”. Mané olha no olho da moça achando que ela vai perceber o erro, o troco e tampouco a devolução faziam sentido. A moça agradece, guarda o dinheiro e vira-lhe as costas o que é a senha para Mané se afastar satisfeito pelo “instant karma” que o universo aplicou na antipatica engolindo um grande gole da sua água de R$1,00.
Uma musica para comemorar.16/05/2019
Aos 22, Mané teve um caso com uma moça de 37. Mané era estagiário numa empresa de planejamento urbano, ela era a chefe dos estagiários de arquitetura, Mané trabalhava na área socioeconômica. Sobrava para Mané tirar informações com aquela moça solitária e mal humorada para que seu departamento pudesse precificar os projetos que ali eram paridos. Um detalhe: ela era linda e tratava Mané com a indulgência com que se trata uma criança coisa que ele era mesmo. Tornaram-se amigos, apesar de tudo. Ficavam amiúde no escritório até tarde, trocavam idéias e confidências e em pouquíssimo tempo, Mané tinha se apaixonado por ela. Na sua pressa juvenil, Mané logo lhe confessou a paixão, queria agarrá-la, beijá-la, mas ela o rechaçava sorrindo e lhe dizia que não era nenhuma papa-anjo. Mané se retorcia na solidão da noite, ansiava por voltar ao escritório e passava as tardes babando à sua mesa. Começaram a sair para jantar e ir ao cinema quando ela lhe confessou que estava grávida. Uma produção independente, disse. Mané ameaçou desabar, mas ao contrario, sua paixão só fez aumentar e lamentava não ter sido ele o independente. Ela ria dele, “daqui a pouco a barriga cresce e você não vai querer mais saber de mim”. Ele quis. Ficou os seis meses restantes ao seu lado, aconchegava-se na convexidade dela, ajudava-a a se levantar da cama com todo aquele peso, secava-lhe o suor do colo nos meses de calor e beijava seu corpo inteiro quando ela deixava mas ela sempre repetia: “daqui a pouco nasce o bebe e você não vai querer mais saber de mim”! Quem não quis foi ela. Depois de lhe nascer a menina, foi tomada pela maternidade e pela família e Mané ouviu diversas vezes seu pai perguntar “quem é o frangote?”, enquanto espichava seu queixo pontudo na direção de Mané. O clima mudou e Mané, que tinha a vida pela frente recolheu as suas armas, formou-se, mudou de emprego e não mais teve notícia dela. Ou quase. Dia desses Mané esta no shopping procurando uma mesa para pousar sua bandeja. O local estava cheio. Uma senhora sentada numa mesa olha fixamente para Mané que desvia o olhar incomodado e quando vira as costas para seguir adiante tem uma epifania. Mané volta sobre seus passos vai até a mesa onde esta sentada a senhora e senta também. Ela diz: “eu mesma, a papa-anjo”. Pode-se dizer que o almoço foi animado, apesar de Mané mal ter tocado a comida. A certa altura Mané perguntou o que ela fazia ali sentada e ela respondeu que estava esperando a filha e a neta para almoçar. Durante o tempo que ficou Mané evitava olhar seus cabelos brancos e se fixava nos olhos, que ainda eram os mesmos. Um pouco antes de a filha chegar ela passou a mão no cavanhaque branco de Mané e disse que ele estava ficando velho, depois gargalhou alto e falou: “você era pouco mais que um menino quando te conheci, eu bem avisei que você não ia mais querer saber de mim”. Ela ainda perguntou com que idade ele estava, mas quando ia responder ela o silenciou dizendo, melhor não! Sob o olhar da filha, que deve ter puxado ao pai, ela lhe deu um papel com o telefone de casa, mas Mané não sabe onde o enfiou. Mané quis perguntar se a neta também era produção independente, mas achou melhor não e agora pretende desabafar com Salma, mas ela nem sempre é receptiva a essas histórias do passado pois acha que, bem, ela acha que Mané transborda um pouco. 14/05/2019
Um dos sonhos de Mané é que um dia alguém queira entrevista-lo longamente sobre um assunto que domina e que ele possa ver as pessoas que escutam ficarem maravilhadas com o teor de suas respostas e encantadas com a sua sapiência e seu domínio sobre o tal assunto que tanto interesse despertaria à humanidade. Mas isso nunca aconteceu e Mané, a essa altura da partida, desconfia que não vai acontecer. Mané confessa que sabe um bocado de coisas sobre um bocado de assuntos mas as pessoas só lhe fazem perguntas sobre assuntos os quais Mané não sabe nada ou até acha que sabe mas não tem nada a dizer. 12/05/2019
Mané pisa no freio e para no farol demorado. Na falta do que fazer cantarola um pedaço de Hotel Califórnia-Eagles e olha para o lado da calçada onde vê, sentada numa mureta de um prédio, uma garota trajando um vestidinho azul curto e chinelo de dedo, lendo um livro com atenção, de pernas cruzadas, uma coxa sobre a outra. Na tentativa de ver a capa do livro que a moça lia, Mané ficou espichando o pescoço e entortando a cabeça, sem no entanto obter sucesso na sua empreitada. O que Mané pôde sim ver, foi que ela tinha um sublime par de coxas e um pé sedutor, que tinha as unhas pintadas de vermelho. Ela, sentindo-se observada, olhou para Mané com olhos inquiridores e levantou o livro para que ele pudesse ver a capa. Mané, que a essa altura tinha perdido o interesse na literatura sorriu envergonhado e a moça sorriu de volta desdobrando as pernas e revelando um tantinho a mais daquilo que Mané mirava. Súbito, buzinas puseram fim ao idílio, Mané olhou mais uma vez para as pernas dela e afundou o pé no acelerador. A propósito, o livro que ela lia era “o apanhador no campo de centeio” de Salinger, uma garota quase perfeita. 23/04/2019
Há uns anos atrás, na época da segunda (ou terceira?) intifada, Mané resolveu ostentar em seu carro uma bandeirinha de Israel, uma forma naïve de marcar uma posição e demonstrar apoio, orgulho ou o que quer que seja com relação ao fato de ser judeu. Nesse período Mané teve três incidentes desagradáveis, tendo sido agredido verbalmente no trânsito e chamado de «judeu» daquela forma agressiva que o fazem os covardes racistas. Numa das vezes Mané chegou a ir atrás do sujeito e ia iniciar uma altercação mas foi impedido por Salma. Nas outras Mané ficou chateado mas ignorou o ignorante. Hoje, no posto de gasolina, Mané foi abordado por um outro cliente que lhe perguntou se era judeu. Mané estranhou e por alguns segundos perguntou-se de onde o cara podia saber se ele era ou não judeu, mas ao ver o sujeito olhando fixamente para a bandeirinha, respondeu, «sim, sou, porque?» ao que o cara diz que tinha tido um médico judeu que tinha falecido e agora não sabia mais como fazer. Mané o aconselhou a procurar outro médico mas ele respondeu que ele só confiava em médicos judeus e não sabia onde encontrá-los e assim se Mané pudesse ajudar e indicar um clínico geral judeu seria de grande valia. Mané ficou ali sem saber o que fazer, querendo se livrar do sujeito que falava muito de perto e parecia pegajoso. Diante da hesitação de Mané, ele começou a ficar suplicante e não aceitou o argumento de Mané de que a religião não determinava a qualidade do médico, mas o grudento insistiu e Mané, que já ligava o motor, recebeu dele um papel com seu celular e a recomendação de lhe telefonar caso tivesse uma indicação para fazer e arrematou: «eu adoro judeus, o povo de Israel vive, shalom», Mané está pensando seriamente em tirar a bandeirinha do carro. 17/04/2019
Mané anda sozinho no Vila Lobos e a meio metro vê um bicho preto alado e ameaçador debatendo-se no chão. Mané não tem certeza mas poderia apostar que a vespona tem um ferrão e sente um ímpeto de esmaga-la. Mané, superando seu instinto assassino, passa ao largo do inseto e segue seu caminho quando, um segundo depois, sente que foi picado na panturrilha. Mané retorna revoltado para ver a decrepita vespa fugindo, ainda se arrastando pelo chão já tendo cumprido seu papel de vespa e deixando a barriga da perna de Mané em brasa. Mané, com ódio, deu um passo em direção ao bicho e o esmagou com o pé da perna ferida dando um fim à sua existência miserável. Depois checou se estava bem esmagada e, sem nenhuma sombra de arrependimento, seguiu novamente seu caminho. Agora Mané está em casa passando um unguento, lamentando-se não ter seguido seu instinto de esmagar a maldita assim que a viu. 16/04/2019
Um dia após a cirurgia, Mané vai ao oftalmo para uma avaliação. Depois de medir a pressão, olhar dentro do olho e do “consegue ler a última linha?”, o doutor diz “está tudo bem, vc vai pingar isso nesse olho, aquilo no outro e no todo, como você está se sentindo?” E Mané resolve contar ao médico que ontem à noite sonhou com a operação e que no sonho ele se vê chegar à sala de cirurgia e percebe que eles estão colocando uma fita crepe na sua testa e ouve o dr. dizer que ficou ruim então eles tiram a fita e colocam outra para firmar a cabeça na maca e que ele escuta alguém dizer ok e então o médico diz pra Mané “olha pra baixo” e Mané estranha que ele esteja falando com ele já que Mané está anestesiado mas mesmo assim Mané olha pra baixo e o médico fala “isso” e depois disso, Mané diz, “o sonho acabou”. Mané arrematou que achava muito estranho esse sonho, que ele quase nunca lembra de sonhos e então, para sua surpresa, o médico disse que isso não foi sonho, que aquilo tinha de fato acontecido na sala de cirurgia, que Mané estava levemente consciente e diante da estupefação cada vez maior de Mané, o doutor encerrou a consulta dizendo: “não se preocupe, conversei com você também na primeira operação, isso pode acontecer e mesmo semi consciente, você se comportou muito bem”! 11/04/2018
Mané já está na maca trajado com aquele avental ridículo com uma das coxas de fora que ele tenta cobrir mas quando o faz descobre a outra então ele deixa assim mesmo e então a enfermeira vem e coloca um lençol sobre suas pernas e avisa que vai fazer um pequeno furo na veia e daqui a pouco Mané está com uma agulha espetada na mão, um torniquete no braço pra medir a pressão, uma presilha no dedo e um monte de terminais grudados no peito. Já tem um soro gotejando, pessoas paramentadas andam pra lá e pra cá e sorriem cada vez que passam por Mané que está tranquilo mas um pouco tenso e antevê o momento em que irá ganhar a sua dose de sedativo para ser levado para o delicioso abismo da quietude e da escuridão enquanto na vida real alguém vai retalhar seu olho. Pouco depois ela aparece, doutora Alessandra tudo bem eu sou a anestesista qual seu nome data de nascimento qual olho vai operar vou injetar aqui um remedinho e Mané: “doutora eu estava esperando por esse momento, eu adoro sedação, todos mereciam uma dose disso pelo menos uma vez por semana” e nisso a voz de Mané começou a sair com dificuldade, ele queria agradecer à doutora pela anestesia mas seus olhos ficaram pesados e ele ainda conseguiu vê-la sorrir, bonita a doutora, Mané acha que loira mas não tem certeza e, bem...10/04/2018
Mané foi encontrar com dois amigos. Tinha outros dois que iam, mas deram cano no final. Na mesa do bar, os três que não se viam há tempos, os três na faixa dos 60/63, comentam sobre filhos já adultos, um deles, netos e o outro, separado há um ano, sobre as dificuldades de se relacionar nesses tempos modernos. Entre rugas, cabelos brancos ou ausentes, problemas na gengiva e entupimento de coronárias, os três transformam os lamentos em piadas. O solteiro diz que antigamente era mais fácil paquerar. Coisas que fazia antigamente, hoje poderiam ser encaradas como assédio, “a mulherada não tá fácil”. Ele diz que não sabe mais até quando insistir sem que o seu alvo saque de repente uma faixa de protesto e pergunte se ele sabe o que quer dizer “não”, ou “não agora”. Nem as de 60 anos estão facilitando, ele diz, por isso na semana passada resolvi investir nas meninas de 40. Mané perguntou, apontando para seus cabelos brancos, se ele queria uma acompanhante pra velhice ou uma companheira. Todos riram, ele ainda comentou que “os dois”. Paira na mesa um clima nostálgico e Mané fica com medo de sair deprimido do encontro mas eles seguem adiante rememorando aventuras do passado, todas as meninas que tinham comido e a maioria que não, algumas surpresas: “o que? Você e a XXXX”? “sim, e durou quase um ano”! “sério, mas você não estava namorando com a YYYY”? E todos riram de novo. Num momento de silêncio, o solteiro vira e fala que esta com um problema na perna e que o medico tinha recomendado fisioterapia. Joelho, ombro, próstata, normal, todos têm problema. Os dois o olharam, pois ele parecia querer continuar. “Marquei hora na fisio uma moça de uns 40 anos e logo na entrada vejo que ela é linda. Depois de uma breve conversa ela me pede deitar numa maca e já deitado eu a escuto mandar que eu abaixasse as calças. Rapidamente pensei se a cueca estava limpa ou furada, mas abaixei tudo mesmo assim e fiquei deitado ali naquela situação ridícula. A moça voltou com um aparelho, colocou luvas de látex nas mãos que tinham as unhas pintadas de vermelho, sorriu e começou a trabalhar. Depois do aparelho ela começou a manusear minha coxa perguntando se dói aqui, dói ali? e, conforme fui respondendo ela foi subindo e massageando, apertando, apalpando até chegar bem perto, você sabem...Mané de olho arregalado perguntou, perto quanto? Perto, ele disse, bem perto da virilha. E Mané: “da virilha ou...”? Exasperado ele respondeu, “não vou dizer que chegou no saco mas virilha é virilha, porra”. Todos riram. Mas ele continuou: “sabem o que aconteceu”? Todos prestaram atenção: “nada, não senti nada, nem um frio na barriga, nem uma comichão, nada”! Continuou dizendo que a moça, além de linda era simpática, que a sua mente suja é que exigia que ele sentisse alguma coisa, enfim, saiu de lá com a promessa de voltar na sessão da próxima semana. Ele continuou: “cheguei em casa deprimido e me sentindo impotente então tomei coragem e passei um whatsapp para doutora e de chofre, convidei-a pra sair. Para meu espanto ela aceitou, vamos nos encontrar sábado, mas minhas preocupações agora são diversas, não sei até onde posso ir, se chegarmos às vias de fato não sei se vou funcionar e será que vou ter que arrumar outro fisioterapeuta, tinha gostado dela, já sentia melhora na perna.” Entre as últimas gargalhadas, Mané, enquanto esvaziava sua tulipa de chopp black aconselhou-o a procurar um fisioterapeuta homem, quem sabe funciona? 05/04/2018
Do lado do portão da garagem do prédio de Mané tem uma padaria. Nos finais de semana eles colocam mesas na calçada e quando Mané chega ou sai ele vê a cara das pessoas e o que elas estiverem comendo ali ao lado da janela do carro. No domingo passado quando eram umas onze da manhã Mané saiu e viu um casalzinho, sentados um de frente pro outro, tomando um brunch. Pareciam sérios, um falava o outro respondia, as mãos espalmadas encima da mesa, mas sem se tocar. Mané saiu e quando voltou, uma hora depois, eles ainda estavam lá, mas a esta altura a menina já esboçava um sorriso, o rapaz gesticulava para todos os lados e, entre fatias de presunto e pães de queijo, as mãos já se esbarravam e os olhares se cruzavam com maior intensidade. Uma hora e trinta minutos depois, Mané saiu pra levar o filho até ali e quando olha para a tal mesa, os pombinhos ainda estão sentados, o rapaz já tinha puxado a cadeira para mais perto da menina, tinham pedido uma salada, estavam de mãos dadas e a menina sorria languidamente enquanto o rapaz lhe dizia coisas no ouvido. Mané deixou o filho e meia hora depois voltou pra casa só pra ver o casal entrelaçado à mesa, o braço do rapaz já em volta do ombro da moça, coxas se tocando por baixo da mesa e o pé descalço da moça...Mané se enganou ou ela o esfregava vigorosamente na panturrilha do moço? Essas entradas e saídas de Mané se repetiram mais algumas vezes e, a cada vez, o ambiente se tornava cada vez mais quente entre os dois e Mané se perguntava por que diabos eles não saiam da mesinha e às oito da noite, quando Mané os viu pela última vez, eles se beijavam por cima de uma pizza também endurecida, sentados na mesma cadeira, ela no colo dele. Mané embicou o carro na calçada, o farol alto iluminou o idílio e Mané, com certa inveja, ficou ali observando o amasso por um tempo não definido quando eles, sentindo-se observados, olham diretamente pra Mané com olhos inquiridores e Mané, pego com a boca na botija solta uma pérola: “parece que deu crush, estou feliz por vocês”. O rapaz ensaiou ficar bravo, mas a moça o conteve pondo a mão na sua coxa perto da virilha (Mané também teria sido contido dessa forma). O portão da garagem abriu, Mané olhou pra moça e ele tem certeza que ela lhe sorriu com o olhar, já tinham cruzado olhares muitas vezes, pois era ela que estava virada pro lado da garagem desde as onze da manhã. Mané entrou na gaiola e chegou em casa com um sorrisinho nos lábios. Salma perguntou qual a razão da alegria, Mané respondeu que estava com saudades. 31/03/2019
Mané acordou hoje com a estranha sensação de não mais ser ele mesmo. Contabilizou que nesse momento não tem mais tireóide, falta-lhe grande parte do estômago, tem uma lente de vidro dentro do olho e em breve terá mais uma. Adicionem-se aí algumas próteses dentárias, cicatrizes ósseas, artroses que já existem e outras que virão como será que vão definir Mané os arqueólogos que encontrarem seus restos mortais? Por sorte não encontrarão nenhum peito, bunda de silicone ou outro aparato qualquer. Será que não? 28/03/2019
Todo dia, Mané chega do trabalho por volta das 17 e quando abre a porta Milu já está a postos esperando pra dar o passeio vespertino. Mané, Salma, Anuar e Milu saem pela rua onde o cão faz suas necessidades e depois vão até a padaria pé sujo na outra esquina e sentam numa mesa posta na calçada. Um minuto depois o atendente aparece com um cafezinho com leite para Salma, um puro para Mané e pão de queijo para todos. Ficam sentados de costas para a rua e a verdade é que naquele momento nem parecem estar no meio dessa cidade, da calçada pra dentro da padoca o clima é amistoso, todos cumprimentam todos, o garçom brinca e oferece água para o cão, nem parece que se leva 50 minutos para percorrer 6 km do trabalho até em casa, nem parece que a poucos metros dali tem carros, ônibus e motoristas irados disputando um mísero espaço nos leitos carroçáveis. O idílio passa em minutos, logo voltam pra casa e para a realidade que às vezes pode ser muito dura mas o bom é que amanhã tem mais. 27/03/2019
Um minuto depois de operar, Mané reclama com o médico que não está conseguindo ler as letras do livro e o médico responde pra esperar até amanhã que tudo estaria ajeitado. Mas como assim esperar até amanhã, faltavam duas páginas pra terminar o livro, tudo estava acontecendo, como vou esperar? E o médico: “que eu saiba você ainda é casado com a Salma, certo? Faz 30 e tantos anos, certo? Pede pra hoje à noite ela ler essas duas páginas pra você e aproveite para descobrir mais uma das mil e uma utilidades do casamento”. Mas o que vou fazer nesses dias de repouso? Salma não vai ficar lendo livros pra mim! Vamos fazer um óculos pra perto, pra longe acho que não vai precisar, diz oftalmo. E Mané, “sim, mas e até lá?”. Dona Tatiana, libera o impaciente, te espero amanhã às 13h no consultório. E Mané: “mas...”19/03/2019
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