terça-feira, 30 de março de 2021
Ah, que beleza, a história. Da até pra confundir a cabeça, pensou Mané. O navio de 250 mil toneladas encalha lá no meio do Canal de Suez, a poucos km de onde Sara o pariu, e ameaça atrapalhar toda movimentação de mercadorias do mundo, aumentando ainda mais as mazelas no meio dessa pandemia. Enquanto o mundo se preocupa com os 10 bilhões de dólares por dia parados naquele canalzinho ridiculamente estreito, Mané fica pensando em como o mundo está despreparado. Ou os navios passam pelo arcaico Canal ou se entregam aos piratas das costas africanas. Chega uma hora que você quer que alguém te aqueça no inverno e que tudo mais vá pró inferno. No momento em que no hemisfério norte chega a primavera, a alegria tinha que ser imensa porque é chegada a hora de comemorar a Páscoa. Para os escolados:
שִׂמְחָה רַבָּה, שִׂמְחָה רַבָּה,
אָבִיב הִגִּיעַ, פֶּסַח בָּא!
שִׂמְחָה רַבָּה, שִׂמְחָה רַבָּה,
אָבִיב הִגִּיעַ, פֶּסַח בָּא
Mas aí Mané pensou: gozado esse navio ter encalhado perto de Pessach, dizem que foi porque, além do navio ser muito pesado, a maré estava muito baixa. Mais gozado ainda: quem liberou o navio foram os valentes trabalhadores egípcios e uma repentina maré alta, fato já fartamente conhecido pela ciência e que ocorre naquelas paragens nessa época do ano. Mmmmmmm. Maré baixa, maré alta, navio encalha, navio flutua. Alguém aí lembra de outro episódio, ali mesmo naquele lugar, talvez um pouquinho mais pra lá, ou um pouquinho mais pra cá, há uns muitos anos atrás onde uma maré baixa permitiu que uma turma atravessasse o mar e uma maré alta afundou uma outra turma que os perseguia? Hein? Hein? 30/03/2021
Anos atrás Mané entrava na cidade de Tiberiades-Israel, a família inteira dentro do carro alugado, todos animados por já estarem na esquina do hotel, não tinha Waze na época. O farol fecha e se aproxima um pedinte. Salma se assusta e comenta que não sabia que tinha mendigos em Israel. Mané, que não gosta que pensem mal da terra santa, tenta amenizar dizendo que tem poucos, que talvez fosse uma pessoa passando por dificuldades momentâneas. O rapaz se aproxima e pede esmola em hebraico mas quando percebe que eram turistas, repete o pedido em inglês, francês, alemão e numa outra língua que Mané não entendeu. Mané jactou-se com Salma e disse: “tá vendo? O cara é mendigo mas está bem vestido e é poliglota”. Mané se animou e apanhou um punhado de moedas no console e estendeu a mão ao pedinte que as apanhou e depois, em espanhol gritou: ¿Tienes el descaro de darme esta miseria? E, ato contínuo, atirou todas as moedas de volta pra dentro do carro. A família ficou chocada e foram embora sem falar nada. Mais tarde, no hotel, Anuar e Mané tentaram achar as moedas e recolheram 5 Shekels que, à época, equivalia a 5 Reais. Anuar comentou que o mendigo argentino era muito cara de pau. Ontem, contrariando as ordens do prefeito, Mané andava na Alfonso Bovero quando foi abordado por uma senhora que lhe estendeu a mão pedindo esmola. Mané, que nunca deu tanta esmola na vida como nessa pandemia, pôs a mão no bolso e deu 5 reais para a senhora desvalida. Ela não reagiu e permaneceu com a mão aberta segurando a nota de 5 com o dedão. Houve um impasse e Mané fez menção de continuar andando quando a senhora falou: “eu pensei que o senhor ia me pagar o almoço.” Mané, constrangido, pegou outra nota de 5 e colocou na mão dela que não se mexeu e continuou: “ali na esquina o prato é 15”. Mané começou a responder que se fosse ao Bom Prato ela comeria 10 vezes com esse dinheiro mas não sabe se ela ouviu porque Salma já o puxava pelo braço. De qualquer forma, ele viu quando ela dobrou as notas e as colocou por dentro da blusa, como as mulheres faziam antigamente, quando a vida ainda era bela. 27/03/2021
Passei a pandemia toda tentando mudar de assunto, escrevia reminiscências, romanceava casos da vida real, mazelas cotidianas, enfim, mas, tudo agora vira política de baixo calão. Quando devíamos estar radiantes por existir a possibilidade de ter uma vacina com IFA nacional, vem essa discussão sobre a autoria da vacina que não faz o menor sentido e atrapalha a nós mesmos. Os que atacam Doria, o calça apertada, são naïves ou mal intencionados? Todos vamos precisar de vacina contra covid daqui pra frente, todo ano, então pouco importa de quem é a vacina ou se o Doria a roubou durante sua viagem a Miami. Não tem nada no mundo de hoje que se possa dizer que é exclusivo de um um único país, os processos produtivos são globalizados, ninguém faz nada sozinho, só merda e, mesmo assim, ela respinga em todos. Que a participação brasileira no processo se limite apenas ao fornecimento dos ovos, já está valendo. As galinhas verde-amarelas são nossas, apesar de tomarem remédios estrangeiros! Precisamos de 400 milhões de vacinas por ano, acordem! E foi muito bom o Doria anunciar essa vacina, a Butanvac, qualquer que seja a autoria, porque fez o bozó e o astronauta se mexerem pra mostrar outra, exatamente como aconteceu com a Coronavac. Tomara que outras autoridades sejam pegas com a boca na botija, roubando mais e mais vacinas. Ainda vai aparecer alguém criticando o massacre de pintinhos brasileiros para produzir vacina! 27/03/2021
Estão vendo essa mochila bem no meio entre a TV e uma garrafa de vinho verde vazia? Ela está aí nessa posição há um ano exatamente. Era a mochila que Mané usava para pegar o metrô e ir ao trabalho. Levava ali seus documentos, algum papel importante, carregador, chaves, o livro do momento e um lanchinho para comer no horário da fome. A mochila está empoeirada e criando bolor e Salma quer que Mané a tire de lá mas Mané não vai tirar e isso vai criar um atrito com Salma. A mochila hoje está cheia de coisas que Mané um dia vai levar de volta para o escritório. Cartuchos de tinta descarregados, documentos, um livro emprestado de um colega que precisa ser devolvido além de muitas outras coisas, a bem da verdade Mané vai ter que levar uma mala. Se é que vai! 17/03/2021
Salma, a Formiguinha elétrica, e Ratão, eram os primeiros da fila que se formava por ordem de tamanho toda a manhã no pátio da escola. Os próximos eram, Toco de Cigarro Aceso, que era ruivo, e Baleia, mas essa última não gostava do apelido. Depois do hino nacional, às vezes tinham que cantar o hino da escola e, caso a diretora Luciana estivesse presente, cantavam também aquela música da Evinha: Luciana, Luciana, sorriso de menina, enfim, era difícil imaginar aquela senhora conhecida por Velha, travestida de menina que nasceu na paz de um Beija Flor ou que tivesse olhos de mar. Aliás, olhos de mar era o apelido da terceira da fila feminina, uma loirinha de olhos azuis, mas muitos também a chamavam de Docinho de Côco, era bonita, porém parecia uma pessoa triste e desbotada. O outro loiro da classe era alto, forte e ostentava uma densa cabeleira amarela, Cotonete Usado era sua alcunha. Leiiite Quennnte, era de Curitiba e seu pai tinha sido transferido para São Paulo. Ele detestava a cidade e queria voltar para o Paraná. Leiiite era o melhor amigo de Zé Bundinha que costumava reagir com socos a quem o chamasse por esse nome e ficasse por perto. Era gordo e forte e tinha um estrito senso de liderança sempre mantida a pulso. Poucos o desafiavam. Estrela jurava que seria atriz de novela, desde cedo se maquiava e andava arrumadinha, era muito amiga de Chokito, um menino que sofria de acne e que adorava assistir às suas interpretações e jurava que ela teria um grande futuro na TV. Ela teve, mas não foi tão grande. Pirulito e Olívia Palito formaram um casal desde cedo, altos, magros e espigados, quando batia um vento forte as pessoas costumavam segura-los para que não fossem levados pela aragem, às vezes pediam pra Bolota, que era mais pesada, para que ajudasse. Conta-se que casaram mas o projeto durou pouco porque Palito se engraçou com a Dragãozinho, que também era chamada de Patinho Feio mas quando adulta revelou-se um Cisne Negro. Sapeca, Tiquinho, Amendoim, Vassourinha, Sombra, Gasparzinho, Grilo, Bruxão, Aspirador, Orelhão, TopoGigio, Zoreia, Esquilo, Sorriso, Zangada, ZeRuela, Cabeção, por onde será que andam os colegas de Salma? 14/03/2021
Quando Anuar tinha 6 anos, veio uma colega da escola passar a tarde. Salma e a mãe da garota tinham um trabalho a fazer e Mané ficou com a escala. Como se davam bem, passaram quase o tempo todo brincando e Mané pôde treinar algo que só iria experimentar 20 anos depois, o home Office. Pelo meio da tarde os petizes sentiram fome e Mané desceu com eles até a padaria pra comprar um lanche. Andaram pela padaria, escolheram pães e guloseimas e quando Mané está lá pedindo os frios ele vê a garotinha com a cara encostada numa vitrine de doces coloridos. Ela percebe que Mané a observa, vira-se com um ar sedutor e lhe diz: "minha mãe sempre me deixa comer quantos doces desses eu quiser". Adivinhem qual foi o lanche deles naquele dia? De noite Anuar passou mal e vomitou parte do açucar ingerido e Salma quis iniciar uma discussão mas foram interrompidos por um telefonema da mãe da menininha que, maravilhada, queria confirmar se sua filha tinha mesmo lanchado tão bem porque não queria tocar na janta. Mané gaguejando disse que sim e a mãe perguntou, "mas você conseguiu fazê-los comer frutas e mingau"? E Mané: "não foi o que sua filha disse? Então, ela está bem"? A mãe agradeceu e disse que ia mandar a garotinha mais vezes, ela tinha adorado passar a tarde e estava muito bem! 13/03/21
Mané estava planejando sua caminhada com Anuar quando Salma lhe perguntou se podiam levar um livro até a Cônego Eugênio e Mané respondeu que iam sair a pé. Salma então lhe mandou o mapinha e disse que dava pra ir a pé, levava 17 minutos. Mané topou e saiu de casa com Anuar e foi olhando o mapa e se perguntando que praça seria aquela no fim da rua Harmonia que ele nunca soubera da existência. Enfim, foram perambulando pelo sobe e desce das ruas quando Mané percebeu que a tal praça era na verdade o cemitério da Cardeal. Ficaram parados um pouco na porta quando embicou um carro funerário carregado para o qual deram passagem. Depois que o carro entrou eles foram atrás, dar a volta aumentaria o percurso em 1,2km e eles já estavam cansados e com calor. Foram indo atrás do féretro e chegando ao velório o motorista desceu e os cumprimentou gravemente, “meus sentimentos, ainda bem que não foi de covid, pelo menos poderão prestar a homenagem como deve ser”! Mané olhou para Anuar e, antes que fossem abordados pelos familiares que ali estavam, contornaram a capela e saíram pela entrada oposta, na Cardeal Arcoverde, praticamente na boca do endereço onde iam deixar o livro. Mané pensou ter ouvido um “obrigado” mas preferiu nem olhar pra trás. Depois de entregar o livro desceram a Teodoro e começaram a voltar pela Fradique onde tomaram um sorvete, até chegarem de volta pra casa. Foram percorridos quatro quilômetros e pouco e, quando chegaram em casa, Salma perguntou se tinha sido bom o passeio e ambos disseram que sim. E a praça, perguntou Salma, existe mesmo? É linda disse Anuar, um lugar muito tranquilo. 11/03/2021
Mané foi dormir macambúzio e sorumbático, carregado com toda essa situação, as mortes e a ameaça do Lulalá, como se não nos bastasse o Bolsonarocá, enfim teve uma noite agitada, não dormiu direito e o ressonar de Salma, que costuma acalma-lo, desta vez o irritava. Acordou mal humorado e decidido a conseguir uma dose de vacina a qualquer custo. Embarcou no seu bólido e saiu pela cidade alucinado. No drivethru da doutor Arnaldo nem passou da porta. Depois de tentar em três UBSs e receber negativas e chacotas, na quarta tentativa, deparou-se com uma moça simpática que lhe deu atenção. “Mas não chegou sua idade ainda”, disse a moça com paciência. “Mas eu quero”, gritou Mané. Nesse momento viu que um segurança se aproximava para terminar com a discussão que ia virar briga. Aproveitando uma distração do vigilante, Mané botou a mão no coldre que carregava na cintura, retirou de lá o revólver e o apontou para a cabeça da enfermeira mais próxima: “everybody be cool this is a robbery”! Um pesado silêncio caiu sobre toda a UBS. O guarda tentou reagir e Mané deu-lhe um tiro no braço que pegou de raspão e ele foi ao chão gemendo. Diante disso, ainda com o revólver em punho, a enfermeira concordou lhe aplicar uma dose. Mané perguntou qual vacina e a moça disse que só tinha Oxford. Mané exigiu Coronavac. A moça disse que só tinha Oxford e Mané, diante do impasse, acabou aceitando. Tomou a sua dose de vacina e saiu correndo do posto com seu certificado de vacinação, tendo jogado a arma num terreno baldio. Ligou o carro e quando saía em disparada notou que uma viatura da polícia se aproximava. Saiu cantando pneus e a perseguição começou pelas ruas da cidade. No túnel da Paulista a 130 por hora, Mané perdeu a direção e bateu num muro, quase atropelando uma penca de moradores de rua. Dentro do carro destroçado, Mané, praticamente morto, gemia quando escutou a voz de Salma: “acorda, vc está tendo um pesadelo, mas o que é esse papel que você está segurando”?10/03/2021
Quando mudaram pra essa casa, há quase 20 anos, Mané montou esse móvel com dois micros para suprir as necessidades dos quatro moradores. Mané, no início, ficou muito orgulhoso de seu feito mas digamos que, com o passar do tempo e o advento de smartphones e laptops, o aparato ficou, digamos, subutilizado. Eis que aparece o coronavírus e, voilá, o monstrengo voltou a ser útil, alguns usam o laptop para reuniões, outros o smartphone para falar no WhatsApp e Mané, que até acrescentou um monitor à sua estação, usa o aparato para trabalhar. Salma também, com seu sebo a todo vapor, não dispensa mais o seu computador de mesa e ontem, ao ligar a máquina, veio perorar: “esse troço não liga”! Troço no caso era o monitor que estava morto e apagado, apesar de o computador estar ligado. Mané lembrou que lá no armário do fundo tinha um monitor antigo e resolveu instala-lo, de olho nos lucros cessantes da lojinha da mulher. Foi ali, pegou o monitor antigo e afastou o móvel para desligar o monitor queimado e colocar o outro, quando se deparou com um impossível emaranhado de fios e tomadas. Mané está até agora tentando descobrir qual fio é de onde e o que está ligado em que. Como é que chegaram a esse ponto, Mané não sabe. Os últimos 20 anos passaram muito rápido. 06/03/2021
Até os 23, Mané foi uma pessoa que roía as unhas. Naquele ano de 1978 entrou pra trabalhar no escritório onde estagiava, uma mulher de 29 anos, cientista social, que ia dar assessoria num projeto de planejamento urbano. Ela era linda! Vestia terninhos ou vestidos chiques e usava sandálias de salto alto, diferente de todas as meninas com quem Mané andava, que só usavam jeans e chinelinhos de dedo. Mané se apaixonou por ela de forma fulminante. Nas duas primeiras semanas ela nem se deu conta da presença dele. Quis o destino, porém, que se encontrassem nos meandros do projeto e, numa viagem de prospecção, acabaram ficando juntos. Mané arrastava uma betoneira e ficava de quatro por ela. Ela, bem, como diremos, era condescendente com as investidas de Mané. Começaram a namorar e a mãe de Mané encrencou com a garota, muito velha, não é o seu tipo e “ela vai te engolir”. Mané começou a frequentar sua casa, iam ao cinema, iam jantar, riam, conversavam e se divertiam mas, um dia, Mané acariciava os seus recônditos quando ela fixou o olhar na mão dele e exclamou: “que nojo, você roe as unhas”? Daquele dia em diante ela começou a cuidar das unhas de Mané, tirava as cutículas, lixava, sempre dizendo: “se vai por a mão em mim, as unhas vão ter que estar limpinhas e arrumadas”! O idílio dos dois durou pouco, Mané logo voltou para os jeans e os chinelinhos mas o hábito de lixar as unhas permaneceu e Mané nunca mais as roeu. As namoradas sempre estranhavam quando Mané pedia pra elas lixarem as suas unhas e então ele passou a fazer isso sozinho, uma vez por semana. Anteontem enquanto lixava as unhas, Mané bufou e quando Salma perguntou o que era, ele disse: “odeio lixar as unhas” ao que ela então respondeu: “mas você faz isso desde que te conheço, resolveu odiar agora? Quer que eu lixe pra você”?04/03/2021
Aí vai David levando pela mão sua caçula, a pequena Denise, pelas ruas de Alexandria em pleno ano de 1942. Na Europa a guerra já durava três anos e o Egito está sob ameaça concreta de invasão pelos alemães mas, calma, já sabemos que Rommel foi detido em El Alamein, localidade a 400km do Cairo. De qualquer forma a guerra causou perrengues para a família, teve alguma escassez de víveres, blackouts e ameaças de bombardeios eram comuns mas, aqui pai e filha parecem estar bastante relaxados, talvez estivessem indo às compras ou talvez à sinagoga para marcar a circuncisão do primeiro neto, filho do irmão mais velho de Denise, que acabara de nascer. Denise, daqui a poucos minutos, vai fazer uma birra porque o pai vai se recusar a lhe comprar um falafel uma vez que estão perto da hora do almoço e o pai temia que Rachel, a mãe, implicasse com essa mania de atender todos os desejos da caçula, não via ele que estava gordinha e poderia sofrer, como de fato sofreu, com problemas de peso? Tudo isso passou pela cabeça de David que negociou então com a filha, enquanto esta ameaçava se jogar no chão, que dividissem o sanduíche com a condição de não contarem nada para Rachel mas, sabe-se que Denise não cumpriu a promessa e denunciou o ocorrido à mesa na hora do almoço enquanto comia um prato de macarrão que às quintas costumava ser o cardápio. À tarde, Rachel castigou a filha não deixando que comprasse um doce árabe de um carroceiro que sempre passava na porta mas o homem, chapa da garotinha, deu a ela escondido um pedacinho de kunafa que foi comido avidamente. Naquela noite, antes de dormir, Denise passou mal e vomitou a alma depois do jantar, apesar de ter comido só um pedaço de melancia e queijo branco. À luz de velas, passou uma parte da madrugada debruçada sobre a privada junto com a mãe, que lhe segurava a testa. David, alheio a tudo, roncava no quarto do casal enquanto lá fora reinava o silêncio e a escuridão na cidade adormecida. Ouviram-se algumas explosões ao longe mas disso, ninguém lembra.02/03/2021
Logo será dia 17 de março e Mané lembra que nesta data, há um ano, foi ao dentista e depois foi trabalhar. De metrô. Ao chegar ao escritório deu uma bronca na sua funcionária predileta, uma garota novinha que tem, ou tinha, o costume de lamber as pontas dos dedos para virar folhas: “pare de lamber os papéis, isso aí pode estar cheio de coronavírus e você fica espalhando a doença em todo o relatório”. Ela então perguntou porque ele tinha vindo, se Mané não sabia que tinha morrido uma pessoa de coronavírus e aconselhou-o a ir pra casa, já que ele é um idoso do grupo de risco. E emendou: “espera uma semana, dez dias, pra ver o que da, você trabalha de casa e nós ficamos por aqui”. Mané juntou algumas coisas, salvou uns arquivos num HD externo e, uma hora depois, às 12:30, chegou em casa. Mané só voltou ao escritório poucas vezes desde então, pra pegar uma ou outra coisa que precisou, nunca mais sentou na sua cadeira vermelha e o antivírus do seu computador de lá venceu, não foi renovado e, por falta de uso, não tem nenhuma perspectiva de ser. Lá tem apenas um plantão de gente jovem, tem as moças dos serviços gerais que continuam tirando o pó e tem um espaço vazio que foi deixado para trás da mesma forma que Mané deixou seu companheiro de caminhadas no Vila Lobos, seu amigo de meio século com quem foi para Israel, sua irmã, sobrinhos, família da Salma, pessoas essas com quem só falou por telefone, isso mantém os laços? O tratamento com o dentista só terminou oito meses depois e, dos colegas de trabalho, alguns ele nem lembra mais do rosto. Diante do quadro só resta a Mané uma pergunta: e agora, quem poderá nos socorrer?28/02/2021
De manhã foram Mané e Anuar até o bairro de Higienópolis para buscar uma encomenda. Da Vila Madalena até lá, há que se passar pelo Pacaembú mas o trânsito os impediu de seguir pelo caminho normal, de forma que deram a volta e foram parar no minhocão, vulgo elevado Presidente João Goulart. Antes o elevado se chamava Presidente Costa e Silva mas aí o João Goulart que tinha sido deposto pelo Castelo Branco, depôs o nome do Costa e Silva do elevado, enfim, tinha trânsito também embaixo do elevado, tudo pela mesma razão, a vacinação dos idosos 80+ com doses da Oxford não Coronavac, atenção! Na segunda dose, tá fácil, 87+, Coronavac. 80+, Oxford. Vamos derreter o cérebro dos velhinhos. Então Mané subiu a Angélica e estacionou na Rua Bahia, pegou a encomenda, deixou o carro aos cuidados do vigia do prédio e foi caminhar naquela aprazível vizinhança. Da Rua Bahia desceram pela Goiás até os altos do estádio do Pacaembú, de onde divisaram o caos patrocinado pelas autoridades. Desceram até a fila e ficaram conversando com os velhinhos que estavam todos muito felizes, apesar do trânsito e da fila miserável. Ali a maioria era de miseráveis ricos, só carrão, ar condicionado e etc mas, todos ali na fila, comportados, como se estivessem indo receber uma cesta básica que na verdade era uma picada básica. Depois Mané e Anuar subiram a rua Alagoas e foram até a Praça Villaboim onde sentaram num lugar vazio para Mané tomar um cafezinho e Anuar comer um cheesecake. E água sem gás. Logo voltaram à rua Bahia, subiram quatro quarteirões, pegaram o carro, voltaram para o trânsito parado na Dr. Arnaldo e dali pra casa onde Salma os esperava com um almoço constituído por restos requentados. Mané não reclamou e até elogiou o purê mas Salma ficou brava porque não era purê e sim, macarrão alho e óleo de anteontem. Enquanto aguardava a comida ficar quente Mané ouviu na TV que o programa do IRPF2021 já estava disponível e de mau humor foi até o computador e baixou essa coisa do inferno, como se não lhe faltasse mais nada.27/02/2021
Mané entrou na loja pra comprar um travesseiro e a vendedora perguntou, tudo bem com o senhor? E Mané respondeu, não está e com você? Ela disse, também não. E foram ao balcão para concluir o negócio, Mané pediu um desconto e a moça deu. Os dias estão assim, certa tensão no ar, Mané trabalha um pouco, faz uma festinha no Milu e depois sente vontade de deitar e deita, pega o travesseiro da Salma e põe sobre os olhos mas a cabeça não descansa. Ele tenta ignorar os barulhos que o WhatsApp faz, ignora uma ligação depois de checar quem era e lá fora começa a chover. Ele sabe que tem que levantar e ver se os vidros estão fechados, não tem ninguém em casa mas, o seu pensamento está embotado, uma dormência o acomete e a única coisa que consegue sentir são cócegas nas plantas dos pés, provocadas pelo vento que entra pela janela lateral do quarto de dormir. Mané consegue ouvir que Salma entra esbaforida praguejando pelos vidros abertos, pela molhadeira na sala e por Mané a estar ignorando mas nessa hora Mané não está aqui, só seu corpo estirado na cama, longe do espírito que sonha com uma brisa que lambe seus pés, um lugar onde não se usa máscara nem álcool e onde estar vivo ou morto não faz diferença. No fim do seu sonho Salma lhe diz: “não está ouvindo a porra do seu telefone? Levanta daí que a área de serviço alagou, me ajuda a secar, justo hoje que teve faxina, inferno! E Mané, recém desperto pergunta: tem jeito de passar um café?25/02/2021
No princípio Deus criou o céu e a terra. Assim começa a história do mundo segundo o velho testamento. O Gênesis de Mané começou quando criou uma pasta chamada “Trabalho” onde passou a armazenar todos os e-mails enviados e recebidos referentes à empresa, após o advento do home Office. Já são quase três mil mensagens com Movimentos bancários, contas, planilhas, devaneios e tudo aquilo que era feito ao vivo, deixou de ser e passou a ser feito ao morto. Está tudo arquivado na nuvem e quando vem o Sargento Garcia da saúde dizer que não precisa reservar a segunda dose de vacina porque há perspectiva de produção de vacinas, Mané olha para seu braço esquerdo sem nenhuma picada e sem perspectiva de receber alguma e se pergunta se terá valido a pena todo esse sacrifício diante da estultícia das nossas autoridades. Em termos de lavar louça, tarefa que Mané assumiu no despertar da pandemia, nos próximos dias deverá ser completada a 1000a lavagem, ou talvez não porque a titular de serviços gerais, que antes vinha todo dia, a partir de julho passou a vir duas vezes por semana então façam as contas vocês mesmos. Mané conversa com Salma e se pergunta como é que vão ficar aqueles relacionamentos familiares tênues com pessoas que você encontrava toda semana em jantares de shabat ou almoços de domingo? O filho do sobrinho de Mané, por exemplo, levou uma mordida de um cachorro e mandaram uma foto no grupo. Mané quase não o reconheceu, não pela mordida que foi feia mas, porque o garoto cresceu e virou outra pessoa. Safira, a cunhada de Mané, irmã de Salma, que antes Mané encontrava todo domingo, o que foi feito dela? Como passou esse período de afastamento? Quais aflições vivenciou? Mistério! E aqueles amigos da escola cujo relacionamento frívolo dependia de encontros semanais para um café? E o amigo íntimo, que de íntimo agora só se sabe a voz? O sujeito com quem Mané se arrastava no Vila Lobos três vezes por semana, terá engordado, continuou fazendo exercícios? Enfim, três mil e-mails, mil louças, centenas de telefonemas e WhatsApp, nenhuma vacina mas, de verdade, o que será emergirá de nós depois e se isso acabar? Em que será nós estamos nos transformando?20/02/2021
Quando Mané fez 60 anos, já lá se vão cinco anos, ele que não é de comemorações, resolveu fazer uma festona de aniversário. As amigas de Salma, animadas, ofereceram-se para ajudar e acabou sendo preparado um evento memorável. Decoraram o salão de festa do prédio com bexigas, papel crépon e muitas fitas brilhantes, selecionaram uma playlist de rock an roll e mpb, teve um carrinho de crepe e outro de pipoca, sanduíche de metro, salgadinhos, brigadeiro, bem casados e um enorme bolo de parabéns. Mané convidou toda sua família, a família de Salma e agregados, convidou também seus colegas de trabalho, atuais e antigos, amigos de todas as suas fases da vida, os que ainda frequenta e os que não e, claro, muitas amigas de Salma. Todo mundo veio e o resultado disso foi uma festa com quase 100 pessoas, parecia festa de criança mas tinha gente com idade de quase zero a oitenta e tantos anos. Na porta, abaixo de uma placa de boas vindas em diversas línguas da vida de Mané, tinha um sacão de pano para as pessoas colocarem os presentes e, ao lado, um caderno para quem quisesse deixar algo escrito pela efeméride. Foi uma festa de arromba que durou horas e teve revezamento de convidados, uns chegavam, outros iam embora. Teve velho que passou mal e teve que ser abanado, teve criança que vomitou e outras que tiveram que trocar fralda. O sobrinho de Mané que era solteiro ficou de olho na sobrinha da Salma mas ele avisou que, apesar do porte, a menina ainda era uma criança, se quisesse alguma coisa o melhor era entrar com pedido de adoção. Na hora do parabéns fizeram um vídeo, Mané agradeceu e chamou pelo nome todos os que estavam em volta da mesa, teve muita gente que bocejou. No fim da festa, alguns dos convidados ajudaram a levar as sobras e os presentes para cima, Milu estava pra lá de doido com a movimentação e corria pelo prédio desenfreado. Mané levou duas semanas para abrir todos os presentes, veio muito livro e até dólares. No dia seguinte o zelador tocou a campainha para devolver o livro de presença que tinha sido esquecido. Mané pegou o volume e percebeu que as páginas estavam na sua maioria preenchidas de recados. Colocou o caderno na parte de baixo do criado mudo e esqueceu dele até ontem durante a quinquagésima nona arrumação da pandemia, quando se deparou com o tal caderno e começou a ler o que tinham escrito. Na primeira página, Salma, Samira, Anuar e Milu deixaram recado. Em seguida topou com um bilhete que seria banal mas como era de uma pessoa que já está morta, aquilo o deixou em choque. Diante do ocorrido fechou o caderno e colocou-o de volta no lugar onde estava sem ler o resto. Algumas páginas já estão ficando amareladas e Mané lembrou da morta, do aniversário obscuro de 65 em novembro passado e deprimiu.19/02/2021
Certa vez, na escola, a professora propôs aos alunos um exercício que consistia em designar uma cor para cada dia da semana e depois discutir em grupo a razão pela qual cada cor havia sido dada, enfim, Mané não lembra qual era o objetivo do exercício. Os alunos concentrados demoraram algum tempo na tarefa e Mané, sem ideia do que fazer, começou a fazer ilações à esmo, pintou a quinta feira de vermelho porque era o dia em que comiam macarrão à bolonhesa, terça ficou amarelo porque a mãe servia salada de batata e por aí foi. Quando chegou no domingo Mané estacou em dúvida. Domingo sempre foi um dia em que não se fazia nada, no máximo um passeio até o clube com os tios. Imigrantes e pobres, no almoço a família tinha que dividir um garrafa de Coca Cola família, 750 ml, menos de um copo pra cada e Mané chegava ao fim do dia sempre achando que faltava alguma coisa. Mané odiava os domingos e não teve dúvida, pintou o domingo de preto. Terminado o trabalho, levantou-se e foi colocar a folha na mesa da professora que cochilava e quando voltava para sua carteira ela o chamou de volta: Mané, o que significa isso? A professora devolveu o papel e disse pra ele mudar a coloração do domingo que nenhum dia era preto, que preto era cor de luto e que não deveríamos pintar um dia de forma tão tenebrosa. Mané não entendeu nada mas se recusou a trocar a cor e, por conta disso, ganhou uma advertência por escrito onde foi taxado de turrão e rebelde e a professora pedia a ciência de sua mãe para o dia seguinte. Nos debates que se seguiram verificou-se que apenas mais uma aluna tinha pintado o domingo de preto e Mané, que se apaixonou imediatamente procurou-a com o olhar mas ela mirava tristenente para seus cadernos e não percebeu. A mãe de Mané, que morria de medo de se indispor com a escola por causa da bolsa, tentou convencer Mané a pintar o domingo de uma cor mais alegre mas a tertúlia não resultou em nada. Depois de lhe dar umas palmadas e ameaçá-lo com uma surra, obrigou Mané a refazer o trabalho e lhe deu um lápis cinza para pintar o domingo, com o que Mané concordou, e escreveu para a professora que tinha tido uma longa conversa com o filho e que tinham chegado a um acordo de mudar a cor do domingo para cinza e pedia para a professora relevar pois considerava ser aquela uma cor aceitável e até adequada para os domingos. 15/01/2021
A Dona Muna: como assim, vamos? Pra onde se eu nem tenho saído de casa? Tomar vacina? Mas a Salminha não me avisou de nada, ainda estou de penhoar. Mané, não te vejo há meses e agora você quer que eu fique pronta em 20 minutos? Você está muito exigente pra um genro. Tá bom então, ainda bem que já tinha tomado banho. Isso, na garagem do segundo andar. Você veio com o carro da Salma? Ah, o seu está de rodízio, mas, cadê sua mãe? Foram de manhã? Ah, mas porque não me avisaram? Minha filha disse que eu não consigo sair cedo? Salma não pode ter falado isso! Se me avisasse antes eu teria ido, queria tanto ver sua mãe, acho que a última vez que a vi foi no seu aniversário de 60! Quantos anos, 5, já? Ah, mas você está parecendo tão jovem, não te dou nem 50, tá lindo, meu genro. Onde estamos indo? Estádio do Pacaembú? Nunca fui no Pacaembú mas lá não é onde tem jogo? Mas vacina no campo de futebol? Olha, o cemitério onde está minha mãe. O Giovanni nunca me levou ao Pacaembú, nossa vida sempre foi na Vila Mariana e depois aqui nos Jardins. Mas olha que lugar bonito, essas casaronas, aqui vão dar vacinas? Nossa, você escolheu um lindo lugar, Mané, vc não acha Anuar? Como não foi você que escolheu, se você está me levando foi você que escolheu, lindo aqui, nem parece São Paulo. Mas a gente vai entrando assim de carro? Você não está furando fila? O CPF eu sei de cór. É Muna, não Nuna! Ah, eu sei que você se enganou, você é muito simpática, sabe, moça, que eu nunca estive no Pacaembú? Dentro do campo? Mas como? É aqui que joga o Palmeiras? Era o time do Giovanni. Ué, mas já? Não senti nada. Nossa, cada mansão linda, foi um dos melhores passeios que fiz ultimamente, cansei de andar na Paulista, com aquele monte de andrajosos. Vocês vão subir pra um café, tem um sorvetinho pro Anuar, só quinze minutinhos, Mané! 14/01/2021
O Mané: Mãe, to saindo agora de casa em 20 minutos chego aí. Vai se arrumando que quando estiver perto te ligo pra você descer. Fazer o que? Tomar vacina, ué? Como assim, não quer? Oi? Estão injetando soro em vez de vacina, quem falou? Facebook? Mãe, deve ser algum bolsonarista, já te falei pra não acreditar nisso! Foi quem? A vizinha do 11o? Do 113? Se não for bolsonarista é petista, não acredita! Olha, vou ficar vigiando a moça dar a picada, não se preocupa. Você já está vestida? Tá, bom, quando eu estiver perto, aviso. Na garagem de cima? Oi? Que reações? Não tem reação, a Salma já tomou e além daquelas escamas verdes nada mais aconteceu? Não, brincadeira, mãe, é brincadeira, mãe, se você não vier por bem vou te levar à força. Sim, como você fazia quando eu era criança. Também não dá alergia, tô chegando, mãe, pode descer. Não tem fila. E se tiver é dentro do carro. Leva os documentos, uma garrafa de água e, o que? Tô levando os pastéis de Belém, guaraná e as ameixas secas. Funcionou? Ah, bom, você guarda na geladeira. Pãozinho também, mãe, tô entrando na garagem, desce logo. 13/02/2021
Mané viu um filme onde uma família jovem e linda é surpreendida por uma avalanche e na confusão o pai vê uma chance de se salvar, resolve fugir e abandona a família à própria sorte. Horrível, né? Todos se salvam e no fim ocorre uma catarse onde a mãe confronta o pai, the end. Mané se identificou com aquele pai e lembrou de um episódio ocorrido há pelo menos 45 anos, ele estava em casa com a avó e eis que começam a ouvir gritos de fogo, fogo. Mané vai até a janela e vê que da rua fazem sinais para que desçam. Com o prédio em chamas, Mané foi chamar a avó e esta, com dificuldade de locomoção, tenta se levantar da cama vagarosamente, a passo de cágado, enquanto a fumaça tomava conta dos ambientes. Mané quase carrega a avó pelas escadas mas depois de descerem um andar ele começa a achar que vão virar churrasco. Em desespero enquanto outros moradores passam por eles zunindo, Mané percebe que o elevador ainda está ligado e num rompante, abre a porta, coloca a avó dentro da cabine, aperta o térreo e fecha a porta dizendo: te pego lá embaixo, vó! Em desabalada carreira desce as escadas, imaginando que tinha condenado a avó à morte mas, quando chega lá embaixo, Rachel já estava sendo amparada por um bombeiro. Mané esperou para ver se estava tudo bem e pegou a avó para sentarem num canto enquanto esperavam o desfecho da quase tragédia que no fim teve muito mais fumaça que fogo. Duas horas depois, com a normalidade restabelecida, Mané passou pelo bombeiro que os tinha atendido e este, sorrindo, disse: "isso, leva a vovozinha pra descansar do susto, depois você veja quem foi o idiota que a colocou no elevador"! Nos dias que se seguiram, Rachel contou a todos que Mané tinha lhe salvo a vida enquanto ele escutava olhando pra baixo, o que foi interpretado como modéstia. 12/01/2021
Mané está parado num farol no meio do domingo modorrento, sol e temperatura amena, vidro fechado pra fugir do assédio dos miseráveis. O farol demora então Mané fica olhando o Facebook e não se dá conta que o farol ficou verde e o carro da frente não se mexeu e o farol fechou de novo. No cruzamento estão apenas Mané e o carro da frente e o dois aguardam por uma eternidade e Anuar reclama da demora e, súbito, ele diz, pai o farol abriu. Mas o carro da frente não se mexe e Mané se esquece de buzinar e eis que o farol fecha de novo e Mané se prepara para manobrar e sair de trás do carro que não se mexe quando o motorista da frente abre a porta, desce do carro, vai até Mané e pede pra ele abrir a janela. Mané fica incomodado, põe a máscara, desce o vidro e escuta o cara lhe dizer, obrigado, meu caro. E Mané pergunta porque e ele diz: por não ter buzinado. Mané fica olhando sem entender e cara diz: vamos embora, então? O farol fica verde e eles saem, o sujeito ainda acena, Mané o perdeu de vista depois de ultrapassá-lo e virar à esquerda. O que aconteceu, pai, perguntou Anuar. Não sei, disse Mané, fizemos um amigo, acho. 7/2/2021
Samira e Mané são parecidos, para o bem e para o mal. É difícil pra Mané ver Samira reagir de um jeito que o desagrada e pouco depois perceber que aquela foi uma reação típica dele. Na segunda quando jantam sem Salma eles as vezes conversam e hoje, ficaram elencando detalhes em comum e, num determinado momento, ela disse: "ah, mas isso, eu certamente peguei de você". Bom, na verdade, Samira, tudo que você tem, você pegou de mim e agora, nem eu, nem você, podemos chorar sobre o leite condensado. Eles deram uma risadinha melancólica, os tempos estão difíceis. Depois de um lapso, Samira falou: peguei um monte de coisas suas, detalhes físicos, de caráter, defeitos [e virtudes] mas, o que eu queria mesmo você não me deu. Ah, defendeu-se Mané, mas é claro que isso foi culpa da sua mãe e pior, ela tinha o azinho pra te passar e deliberadamente te passou o azão. É mesmo, pai, vô Giovanni tinha olhos claros. Exatamente, disseram ao mesmo tempo, tudo culpa da mãe. 01/02/2021
Anuar e Mané saíram pelo meio da manhã para cumprir algumas tarefas e fazer uma caminhada. Ao ar livre foram esmagados por um calor, praticamente três sóis pra cada e Mané percebeu que a caminhada ficaria pras calendas. Foram até o correio despachar alguns livros vendidos pelo Sebo da Salma e, a caminho da Paulista, fizeram a entrega de um último volume em mãos. Estacionaram o carro no Conjunto Nacional e rumaram para a Alameda Santos, senda que honra o nome, circunvalada de álamos que produzem uma sombra que poderia amenizar o calor mas logo no primeiro quarteirão Mané se viu cercado por uma sucia de moradores de rua que, tratando-o por doutor, impediram-no de continuar o exercício físico e foi quando Mané se refugiou na Quinta do Marquês e de lá saiu com diversas sacolas carregadas de pernil assado com molho, meia dúzia de pastéis de Belém, uma garrafa de vinho verde Casal Garcia rosé, pão francês clarinho, uma caixa de Amandita, meia dúzia de mini coxinhas creme e um sorvete Kibon Mega branco que Anuar comeu com avidez. Com pressa, a caminho do carro, prometeram um ao outro fazer exercício no fim da tarde, um pouco antes do sol se pôr. Ao chegarem em casa com o butim Salma perguntou onde tinham ido e Mané respondeu, "à caça"! 30/01/2021
Aos três anos de casados Salma e Mané resolveram que queriam ter um filho. Passaram um ano inteiro tentando com afinco e nada sucedeu. Faziam contas, ignoravam contas e tentavam todo dia, duas, às vezes três e nada. Não desanimaram e nas férias daquele ano, resolveram viajar e, pra não ter erro, comprometeram-se transar todos os dias. Foram as férias mais estafantes que eles tiveram mas voltaram esperançosos, não tinha como falhar. Na noite em que voltaram de viagem, antes de dormir, Salma perguntou se podiam considerar que ainda era férias mas Mané não respondeu porque já dormia a sono solto. Dias depois, para desgosto do casal, vieram as regras de Salma, como diria a avó dele, e aflitos, voltaram ao médico que reafirmou a boa saúde de ambos, tudo certo para a procriação, disse o doutor, «vocês tem tentado com abundância»? Mané ia responder mas o médico disse que já conhecia a piada e que nada mais tinha a se fazer a não ser continuar tentando pelo método tradicional, «afinal, a não ser o útero retrovertido que, a princípio, não é impeditivo de nada, tudo em vocês está dentro dos parâmetros da normalidade». O casal já ia se retirando com a lição de casa quando o médico os chamou de volta: “ahamm, só uma coisinha, nada assim muito científico mas sabe como é, com útero retrovertido, a entrada do, da, do, bem, o que deveria ficar na frente, acaba ficando atrás e vocês sabem, estão tentando há tanto tempo, já tentaram assim, quer dizer, já tentaram alguma, como direi, alguma posição alternativa”? Salma ficou olhando pra baixo e Mané perguntou: alternativa? Tipo de outro jeito, outra posição que não papai e mamãe? O rosto do médico se iluminou enquanto Salma roía as unhas: “isso, isso, isso, sabe como quando tem na rua dois cachorrinhos”. Claro que já tentamos, disse Mané, enquanto levava uma cotovelada de Salma, muitas vezes. E o médico retrucou, «bem, tentem com abundância, quer dizer, muitas vezes, mais vezes»! Nove meses depois Samira nasceu. 25/01/2021
Quando estudante Mané trabalhou como estagiário e teve um chefe polonês. Era um sujeito meio doido, Mané caiu nas suas graças. Gostavam de trabalhar juntos, discutiam os projetos e saiam pra beber ao final do expediente, isto é, o chefe bebia e Mané disfarçava. Não raro Mané tinha que levá-lo em casa e sua esposa, uma moça bonita que tinha nome de flor, agradecia pela deferência. Os anos passaram, Mané se formou e mudou de emprego tendo mantido um contato distante com o antigo chefe. Certo dia, Mané estaciona o carro perto do prédio de Salma, indo busca-la para um cinema. Num boteco do outro lado da rua Mané vê o sogro sentado com uns amigos tendo ao redor diversas garrafas vazias de cerveja. Ele acena e então Mané vai até ali cumprimentá-lo. São quatro pessoas, todas bebadas, ou quase, e, para sua surpresa de, além do futuro sogro, lá estava o ex chefe polonês de Mané. Tome um copo conosco, diz ele, somos amigos há anos, vc namora a filha dele? E Mané, sem alternativa, sentou-se à bordo de um copo de cerveja que mal tocou. O polonês: Giovanni, sua filha ganhou a sorte grande, esse é um menino de ouro, inteligente, trabalhador, educado, não bebe.
E Giovanni: ele também tirou, minha filha é tudo isso e muito mais. Então vamos brindar a isso, e todos tomaram mais uma rodada. Mané estava ali sorrindo amarelo quando o polonês passa um braço pelo seu ombro e o outro pelo ombro de Giovanni e diz baixinho com a voz empastada em tom de segredo: mas você sabe que tem um problema, não sabe, Giovanni? E qual o problema, ô polaco? Você não faz ideia ô italianinho? Mané tentou sair do abraço mas foi retido e o seu ex chefe falou: o garoto deve andar comendo a sua filha! Fez-se silêncio no boteco. Giovanni entornou a cerveja que Mané não tinha tocado e olhando para o copo vazio disse: é verdade isso? E Mané, suando em bicas, respondeu: É! Giovanni pensativo, pediu uma outra cerveja, encheu os copos de todos e disse: bom, ela deve estar comendo ele também, vamos brindar a isso. 24/01/2021
Leve um casaquinho, disse Sara ao adolescente Mané, que se preparava para sair numa noite de verão durante as férias na praia. Pirou, mãe?, respondeu Mané, está fazendo um calor senegalesco, to saindo, tchau! Naquela noite o tempo virou, veio uma frente fria, caiu muito a temperatura, Mané que estava suado passou frio e resfriou-se e Sara que cuidou do resfriado, não parou de reclamar: não avisei, da próxima vez escuta sua mãe! Anos depois, depois de ter repetido de ano, a família discutia sobre os rumos da vida de Mané. Ele, emburrado, estava estatelado no sofá enquanto o pai dizia que ele deveria prestar vestibular para direito. A avó, que se metia em tudo, revidava: o menino não gosta de estudar, é melhor ele ser vendedor, tio Salomão foi vendedor e deixou milhões para a família. Sara, insistia, Mané você é inteligente, só meio preguiçoso, se você se esforçar pode até ser um médico, já pensou? Estude medicina. Jovens, obedeçam suas mães, se Mané tivesse obedecido, a essa altura já teria tomado a primeira dose de Coronavac. 20/01/2021
Momento do ódio. Mané odeia que pessoas se dirijam genericamente aos outros colocando adjetivos do tipo, “queridos”, “amados”, “adorados”. Mané odeia comentários vazios tais quais, “família linda”, quando comentam fotos no Facebook, ou “arrasou gata”, para uma menina que aparece chupando um sorvete. Só Mané acha isso hipocrisia? Mané recebe e-mails, quando endereçados a grupos, começando com Prezados ou Prezados(as) mas recentemente começou a receber também Prezad(x)s, a tal linguagem neutra e politicamente correta que teoricamente não é exclusiva e combate a tirania masculina na linguagem. Mané está ficando velho e tem dificuldade de entender e aceitar novidades e mudanças. O mundo está hostil, deve ser culpa dessas redes que permitem que se fale qualquer coisa sem que haja nenhuma consequência. Que exaustão! 18/01/2021
Em dias como o de hoje, depois de uma caminhada de 5km com Anuar, depois de comer espaguete alho e óleo, depois de lavar a louça, limpar o cantinho do Milu, encher as garrafas de água, os bebedouros do cachorro e passar um pano na cozinha, Mané gosta de deitar e ler mais um pouco do livro da vez. Logo vai dando uma zoeira, um peso no olhos, as letras começam a ficar embaralhadas e é nessa hora que Mané joga o livro e os óculos de leitura pro lado, fecha os olhos e se abandona à mercê do sono. Ocorre que num dia ensolarado como esse em que o sol bate no prédio branco da frente, da janela lateral do quarto de dormir, entra uma luz incandescente que penetra na retinas de Mané causando um incômodo que o impede de atingir o ápice da soneca. É quando Mané pega ao lado o travesseiro de Salma e o coloca na cara cobrindo os olhos e o nariz sendo imediatamente invadido por aquela repousante escuridão aliada ao doce e reconfortante cheiro de Salma que vem impregnado no travesseiro. Não tem preço. 16/01/2021
Já não sabendo mais onde caminhar, Mané e Anuar resolveram ir à Av.Paulista. A ideia era estacionar no Conjunto Nacional e ir andando e direção ao Paraiso. Ir em direção ao paraíso da uma sensação de bem estar. Assim fizeram, Mané deixou o carro numa vaga de idoso, colocou o cartão vencido no painel e saiu para a rua. Logo de cara se depararam com uma fila na frente do consulado italiano que dava a pinta de estar fechado, o que será esta fila? Mané e Anuar tiveram que andar pelas bordas das calçadas para fugir da grande quantidade de gente que perambulava no sentido contrário e a favor também. Famílias passeando com cachorros, funcionários dos Ching Ling entregando cartões: «vai trocar a película hoje dôtô»? Fila na frente do quiosque do Meki, fila na frente do banco mas o que mais impressionou Mané foi a enorme, a monstruosa, a enorme quantidade de miseráveis, noias e pedintes acampados na mais paulista das avenidas de São Paulo. Compra um balinha pra me ajudar, faz três dias que não como, me paga um café, ou simplesmente aquele olhar baço de aflição. Na altura da Fundação Japão, Mané resolveu atravessar a avenida e voltar pelo outro lado. Resolveu também parar de atender aos pedidos dos esmoleres senão amanhã ele próprio teria que voltar a avenida como pedinte para cobrir o rombo, Mané gastou um bom dinheiro com os miseráveis. Do outro lado da rua a coisa parecia mais tranquila, só que não. Em adição à aquela fauna, muitos vendedores com mercadorias espalhadas pela calçada atrapalhavam a circulação dos pedestres. Encerraram a caminhada em silêncio. Mané e Anuar entraram no carro amuados e assim ficaram até chegar em casa, no pacato rincão da Vila Madalena. Mané veio pensando no dia em que os miseráveis, quais zumbis, começarão a atacar os passantes, invadir seus carros e vidas, arrancarão seus pertences à força ao invés de pedir com cara de choro. Mané, sentindo-se culpado sem saber porque, cumprimentou com uma buzinada o vendedor de brigadeiro que fica na esquina de sua casa. Encostou ao lado dele e comprou 50 reais de brigadeiros. «Que beleza seu Mané, vou pra casa mais cedo!» E Mané, olhando para aquele lote de brigadeiros, disse: «antes de ir pra casa, vai andando pela rua e entrega dois brigadeiros para cada porteiro do quarteirão e se encontrar mendigos, entrega três para cada um». Mané entrou na garagem com a cabeça fervendo, Anuar reclamou que poderiam ter ficado com alguns brigadeiros para comer e Mané disse que amanhã compraria mais, «vamos distribuir brigadeiros na Av.Paulista». 15/01/2021
O chefe de Aslan não era mais o Mr. Pullford mas por conta do emprego do pai, a família de Mané sempre teve grande ligação com a Ford. Quando criança Mané participou de visitas guiadas à fábrica, de muitas festas de Natal onde papai Noël descia de helicóptero no estádio de São Bernardo do Campo, da festa de lançamento do Corcel em 1969 e de um almoço comemorativo dos 10 anos do pai no emprego, quando almoçaram no restaurante da diretoria em grande estilo. Naquele dia serviram camarão à grega e o pai de Mané pediu que ele não comesse porque não era kasher. Diante da ameaça de Mané transformar o almoço num furdunço por não poder comer o camarão, Aslan autorizou baixinho dizendo, “só hoje”, e pediu pra ele não contar pra ninguém mas, Mané contou! Como funcionário da Ford, Aslan podia comprar um carro zero de tempos em tempos, por um preço consideravelmente menor que o de mercado. A família inteira de Mané comprou inúmeros Gordinis, Corcéis e Escort (Galaxy, não, porque era carro de rico), por conta disso. No entanto quando Mané chegou à idade de dirigir, os carros da Ford já não eram aquelas coisas então ele optou por veículos da Volkswagen e, quando casou, ele possuía uma Parati. Por acaso, Salma tinha trazido como dote, um Corcel branco 1.4, cujo apelido era frigobar, por causa da cor e também por conta da potência lamentável do motor. Em subidas, na estrada, se o carro estivesse carregado, os passageiros tinham que sair e andar ao lado dele até chegar ao topo. Era um vexame mas, nas descidas ele ia bem. O Corcel era velho e quebrava o tempo todo e Mané, temendo que sua linda e jovem mulher Salma sofresse algum apuro com uma eventual pane, entregou-lhe a chave da Parati e passou ele próprio a rodar com a geladeira pela cidade. Mané não suportou a sofrencia e um dia, num rompante, parou numa revenda Ford, deu o velho de entrada e comprou um Corcel 2 azul, zerinho, pois ele queria sua Parati de volta. Para melhorar a surpresa, pôs o carro na garagem com um laço de fita. Quando viu o presente, o rosto de Salma se iluminou mas, generosa, disse que preferia continuar com a Parati, “fica voce com o carro zero, ele é tão lindo, prefiro que fique pra você”. Com esse final inesperado, Mané rodou alguns anos com a Jabiraca azul e, depois disso, nunca mais comprou um carro da Ford. 14/01/2021
Um belo dia Mr. Pullford chamou o pai de Mané à sua sala e, constrangido, falou: Mr. Aslan, I believe you already know what I wanted to say. For government order, I have to dismiss any non-Egyptian, foreign and Jewish employees, and for that reason, I regret to inform that you are fired. Aslan, egípcio de segunda geração, casado, dois filhos, lançou um olhar triste para o Sr. Pullford e respondeu: yes I know, but I never thought that day would come. Nas tratativas para o desligamento, Pullford perguntou para o pai de Mané para onde iriam, já que estavam sendo expulsos. Aslan, acariciando o seu laissez passer de apátrida, disse que não sabia, Itália, talvez América do Sul. Argentina?, perguntou Pullford. Não, São Paulo disse Aslan, acho que Brasil. Pullford perguntou então se Aslan preferia receber sua indenização no local de chegada pois o governo egípcio provavelmente ficaria com qualquer dinheiro que houvesse em nome de judeus. Aslan concordou e assim foi feito, recebeu uma parte na Itália e outra no Brasil. Foi um dos poucos imigrantes que chegou aqui com grana, dinheiro esse que ele quis usar para comprar um apartamento mas Sara, mandona e impositiva, o convenceu a abrir um negócio com os irmãos dela. Abriram uma distribuidora de papel, estavam indo bem mas Sara tinha irmãos tão difíceis quanto ela. Um deles, aquele com quem poderia dar certo, desistiu logo no início e foi trabalhar numa indústria de embalagens. O outro, com quem Mané era comparado quando aprontava, entrou no negócio que faliu meses depois. No hard feelings. Depois disso o pai de Mané foi trabalhar na Willys Overland do Brasil e comprou um Renault Gordini. Pouco depois a Willys se transformou na Ford, essa mesma que está fechando as portas. 13/01/2021
Mané sempre se auto-critica por ser um homem de poucos vícios. Não toma porre, não fuma nem cheira e nunca participou de orgias. Sem graça, né? No entanto Mané é viciado em livros. Esse aí é o sexto volume da série que o autor teve a infeliz ideia de batizar de Minha Luta. Mané, a contragosto, leu o primeiro volume e gostou, claro que o livro não tem nada a ver com apologia ao nazismo. Todos os volumes são gordos, 700 páginas na média, e Mané leu todos os cinco com gosto, e ficou esperando pelo sexto, que saiu esses dias. Na vida anterior, que vigorou até março 19, ele o teria comprado sem nenhuma hesitação. São 1000 páginas, 160 reais. Ele teria comprado rapidinho. No entanto agora, à espera do dia D e da hora H, ele leva 10 dias pra ler um livro de 200 páginas e por isso ficou na livraria olhando pro volumão cheio de dúvida e saiu de lá com as mãos abanando. Disse pro vendedor que o observava com avidez, que estava a pé, o que era verdade, e que voltaria depois de carro, o que pode ser mentira. Diante da dúvida, Salma lhe sugeriu comprar o tijolo na Amazon e Mané olhou pra ela e respondeu: “vamos esperar um pouquinho”. Na pandemia, como sequela extra do Corona, Mané tem estado desconcentrado, tem bebido mais e sentido vontade de comprar drogas fungáveis, fumáveis ou injetáveis e até pensou em organizar uma orgia mas o distanciamento social e Salma o impedem. Ele tem medo de passar dois meses com esse livro no nariz, ficar achando que é pesado, difícil de manusear e pior, já pensou se esse último volume for ruim e ele tiver que larga-lo largo no meio, quebrando todo o encanto já obtido com a série? Nunca antes na vida Mané teve pensamentos desse teor e Mané está com medo de que “num domingo qualquer, qualquer hora, com ventanias em qualquer direção”, nada volte a ser como antes quando, apesar de tudo que tinha de ruim, era bom.12/01/2021
Ibrahim e Farida casaram-se em algum momento do ano de 1921, nove meses depois nasceu Aslan, o pai de Mané, e seis meses depois, Farida morreu. Alguns dizem que foi a mãe que pediu mas não se sabe direito, Aslan, órfão de mãe, foi criado por tias e tios que acabaram se tornando sua família. Aslan conviveu com seus meio irmãos, já que Ibrahim logo casou-se e montou outra família, mas nunca morou novamente com o pai. A vida de Aslan sempre foi um mistério para Mané, sabia-se alguma coisa aqui, outra ali, mas, a referência de família para Mané, tios, tias, primos e avós, sempre foi materna. Compreensivelmente, Aslan foi um cara retraído, na dele, não era raro ele se retirar do recinto quando quebrava o pau em casa, por exemplo e, depois da contenda com a mãe, Mané sempre o encontrava lendo num canto quando perguntava para o Manézinho furioso: “resolveu o problema com a mamãe? Não vale a pena brigar pois ela ganha sempre”! Depois de adulto Mané conheceu parte da família do pai nos USA e em Israel, havia um laço ali, é claro, mas a verdade é que são pessoas desconhecidas. Depois do AVC Mané teve mais chance se sentar com o pai para conversar e descobriu como foi difícil morar um tempo em cada lugar, ele dizia: “claro que sempre fui muito bem tratado, eles são meu referencial de afeto, mas enfim, não era minha casa, entende”? Aos 20 anos ele se mudou para Alexandria para morar com outro tio. À tarde ele o ajudava na loja, uma Deli que vendia entre outras coisas, falafel. A gordinha Sara, mãe de Mané, aos 8 anos, saia de casa à tarde com um dinheirinho e ia até a loja do tio de Aslan, na mesma calçada, para fazer um lanchinho. Aslan gostava daquela garotinha e a ajudava a comer o falafel que é um sanduíche que emporcalha as pessoas, e depois a limpava antes de a menina pegar o caminho de volta. Sara não lembra nada disso mas, anos depois, quando lhes arranjaram o casamento, Aslan, 28, ficou feliz de reconhecer a menininha e Sara, aos 16, talvez quisesse aproveitar mais um pouco como solteira. Casaram-se, como já sabem, montaram uma família funcional apesar das esquisitices de Aslan e da personalidade tsunâmica de Sara. Uma das coisas que Aslan confidenciou a Mané no pós AVC, foi que ele achava que o casamento com Sara, para ela, acabou sendo um bom negócio, poucas pessoas suportariam um temperamento daqueles. Já no meu caso, disse Aslan, ela praticamente salvou minha vida!11/01/2021
Aslan, o pai de Mané, foi trabalhar de manhã no dia em que teve um AVC, aos 83 anos. Depois da hospitalização voltou pra casa e viveu até os 90. Nesses sete anos foram inúmeros os sobressaltos, Aslan ficou com a mobilidade prejudicada e quem arcou com esse fardo foi Sara, a mãe de Mané, que cuidou dele com ajuda de cuidadores. Farida e Mané deram apoio logístico e moral, além de comprar livros e guloseimas para o pai. Aslan não andava direito e a mão direita não funcionava mas, até o último dia, ficou lúcido e com a cabeça operante, para nossa sorte e talvez para azar dele que assistiu a tudo que perdeu. Ao longo desses anos de doença ele e Sara tiveram muitas discussões, algumas bem sérias. Aslan que sempre foi um cara pacífico, tornou-se turrão e exigente e isso se chocou com a personalidade explosiva de Sara. Um dia, Sara liga pra Mané e lhe diz: venha já pra cá ficar com seu pai porque eu vou embora. Era folga do cuidador, Mané foi. O clima estava ruim e assim que Mané entrou, Sara saiu. "O que houve pai"? E ficaram lá conversando até que Mané descobriu que a discussão era por conta da substituição de um cuidador, Aslan queria uma mulher e Sara um homem pelo fato de ser mais forte, as vezes era preciso levantar e ajeitar o pai e as mulheres sofriam mais. Mané achava que Sara tinha razão, tentou contemporizar com o pai que, olhando para os lados para ver se ninguém ouvia, falou: "vc sabe que não faço quase nada sozinho a não ser ler, certo? Sabe que precisam me dar banho e me limpar, certo? Então? Você gostaria que um homem ficasse passando a mão na sua bunda, no seu saco e sabe onde mais? Quero uma mulher, se for gordinha melhor, fica tudo mais aconchegante"! Mané convenceu Sara e, até o último dia de vida, Aslan teve duas cuidadoras, uma delas bem gordinha.10/01/2021
Nesses tempos de pandemia, Mané e Anuar andaram pelas ruas da cidade de São Paulo por volta de 4km por dia e numa conta grossa poder-se-ia dizer que percorreram aproximadamente 1.200 km no total, o que equivaleria ao caminho de ida e volta a Belo Horizonte ou só de ida a Porto Alegre. No entanto Mané não sente vontade de ir e voltar de Belô, muito menos de ir para Porto, caso em que levaria mais 300 dias pra voltar. Anuar também não, e por essa razão, encontram-se ancorados aqui em São Paulo à espera de um milagre.09/01/2021
De volta ao Brasil depois de um ano em Israel, Mané acordou para o primeiro dia de aula na PUC. Sentia-se estranho e deslocado e quando entrou na sala foi ofuscado por uma luz intensa. Não conhecia ninguém e ninguém o conhecia, então foi sentar ao lado da fonte dessa luz, uma garota que parecia tão deslocada quanto ele, dona de dois olhos verdes que irradiavam aquela luz. Ela tinha um nome estranho que combinava com seu rosto perfeito. Tinha no queixo uma manchinha marrom de nascença, Mané todo dia sentia vontade de morder o queixo dela. Claro que Mané ficou afim, andava atrás dela nos intervalos, cuidava para estar no mesmo grupo de trabalho mas a coisa parecia estacionada para ela mas não pra Mané que ficava bolando planos sobre como chegar junto e ela, linda como só, sempre sorria pra ele, gargalhava de tudo que ele falava, andava pra cima e pra baixo com ele, mas a porta permanecia só semi aberta. Por uma razão que lhe foge, certo dia Mané foi buscá-la pra ir à faculdade. Chegou à casa da família logo cedo estranhando o cheiro de comida que pairava no ar. Quando entrou, Mané se deparou com toda família, pai, mãe, irmã e irmão, sentados à mesa do café da manhã, comendo bife acebolado, arroz, ovos mexidos, batatas assadas e um tanto de carne de panela, sobra de ontem, disse a mãe, ao mesmo tempo que convidava Mané a se juntar a eles à mesa. Mané, mal disfarçando o enjoo pelo cheiro de carne e cebola frita assim pela manhã, declinou do convite dizendo que já tinha desjejuado e contentou-se com uma xícara de café mas sentia um gostinho de bife a cada gole. Já no carro a caminho da faculdade ele perguntou se eles comiam isso todo dia no café e ela respondeu naturalmente que: “sim, você achou estranho? Ontem, por exemplo, teve lombo de porco ao forno com batatas coradas e brócolis com muito alho". Ficaram colegas, ela é uma dessas garotas que vão pairar pra sempre na mente de Mané daquele jeito quando algo não acontece e não se sabe direito porque. De vez em quando conversam e a dieta matutina pesada parece não tê-la afetado, seus olhos ainda têm luz própria e ela continua linda.08/01/2021
No segundo ano da faculdade Mané engrenou um romance com uma garota que tinha descendência na nobreza italiana. Era uma garota bonita, alta, magra e ostentava um robusto par de peitões, os mais lindos que Mané já viu na vida. Ela deu bola pra Mané quando este lhe mostrou o RNE onde consta: nacionalidade italiana, vai entender. Durante as farras que faziam a pretexto de estudar ou fazer trabalhos da faculdade Mané insistia: vc esta sabendo que eu sou um italiano fake, não está? Que nasci no Egito e tudo mais...e ela, tirando de um só golpe a blusa e o sutiã, respondia: mas esses aqui não são fake, "sono un vero prodotto italiano". Costumavam namorar à noite na casa dela mas a mãe implicava muito com isso, talvez sabedora da vira-latice de Mané, lá pelas tantas ia até o topo da escada e falava: Cosa fate voi due? E ela respondia: parliamo mamma! E a mãe: ma que tanto parlam? Mané a reencontrou no Facebook recentemente. A foto de capa dela mostra uma senhora alta e bonita posando num iate ancorado no mar Adriático, ela contou quando conversaram. Ela casou com um ricaço italiano, mora em Milão e autorizou Mané a contar essa história desde que omitisse o nome dela, Mané cumpriu a promessa e manobrou para tentar saber como iam os peitões mas ela fez melhor, mandou uma foto que apenas serviu para deixá-lo em dúvida. Legami erotici!07/01/2021
Mané tinha um laço erótico com batida de abacaxi com vinho. Ele explica. Na juventude, quando frequentava o movimento juvenil, por ocasião dos acampamentos no sítio da instituição em São Roque, tinha um boteco na estrada que servia a tal bebida e não tinha muita importância qual a idade da pessoa que se candidatava a tomar. Enquanto os pais pensavam que os filhos estavam adquirindo cultura e amor pelo Estado de Israel, os jovens fugiam à noite para encher a cara de batida de abacaxi com vinho. No 278o dia de pandemia, Mané passava pelo Itaim Bibi quando se deparou com o Mestre das Batidas e levou pra casa uma garrafada de batida de abacaxi com vinho. Todos gostaram mas não acharam assim tão delicioso quanto Mané proclamava. Samira disse que batida de côco com vodca era muito melhor. No 300o dia de pandemia, de novo no Itaim Bibi, Mané adquiriu uma garrafada de batida de côco com vodca e, cá entre nós, achou mais gostosa que a outra. Samira jactou-se mas no fundo no fundo, Mané ficou triste pela destruição de um ícone da sua juventude, no fim, a batida de abacaxi com vinho significava mais do que o gosto de batida de abacaxi com vinho. Se é que me entendem.06/01/2021
Na mesa, Mané está de mau humor. Milu está sentado ao seu lado no chão, olhando fixamente. Mané até agora não deu nenhum pedacinho de nada e ele não está entendendo. De tempos em tempos o cão da uma ganida e Salma quer saber a razão do mau humor de Mané que retruca se ela quer em ordem alfabética ou por prioridade. A conversa não se desenrola e Mané levanta bufando para lavar a louça. Enquanto esfrega os copos pela oitincentesima vez desde março diz para Salma que tem que pagar uma fortuna de IPVA neste mês. Quanto, ela quer saber. Ele diz R$ X.XXX,XX, para os dois carros. É por isso que está agastado, ela pergunta. Também, ele responde, e vai para o computador onde os problemas do trabalho esperam. Pelo meio do dia, Salma chega sorridente e pergunta se ele viu a conta do banco. Ele pergunta porque e ela responde: depositei na sua conta os X.XXX,XX dos IPVAs, vai ficar mais feliz? Mané saiu do recinto zangado, pisando firme e depois voltou, ficou de frente pra Salma que estava boquiaberta e disse: e depois disso vai começar a abrir você mesma os potes de palmito. 05/01/2021
Hoje foi um dia de modorra total. Nem frio nem calor, Mané só saiu de casa pra andar e pra passear o cachorro. Milu está ficando velhinho e rabugento. Resiste a sair e só fica animado quando o soltamos da guia e o deixamos andar livre para fazer o que ele gosta, cheirar os xixi dos outros cães e fuçar por aí. Como podem ver, Milu está cagando montes.02/01/2021
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