sexta-feira, 1 de janeiro de 2021
Uma garota ruiva - episódio 1/5
Na juventude, Mané fez parte de um movimento juvenil sionista que, além da sua função social, promovia a educação do jovem pelo jovem com ênfase nos laços com o Estado De Israel. Com atividades culturais semanais e acampamentos nas férias, uma atividade muito difundida neste meio era o “ataque à bandeira”. Não era lá aquelas coisas em termos pedagógicos, incitava competição e podia ser meio violento, mas era bom. Consistia na formação de dois grupos, sendo que um atacava e outro defendia e o objetivo era roubar/defender a bandeira de algum acampamento que estivesse ocorrendo e servia para fortalecer o companheirismo e a união, além de ser divertido. Poderiam ser dois grupos do mesmo acampamento ou um grupo externo que vinha “atacar” o local. Aos vencedores cabiam algumas regalias e depois tudo acabava em confraternização. Parece bastante emocionante, não? Toda essa introdução serve para contar que num mês de férias, num passado agora distante, Mané e mais quatro amigos zanzavam pela cidade sem ter o que fazer. Um deles teve então a brilhante idéia: "vamos atacar as cariocas em Teresópolis"? As cariocas em questão eram as meninas da sede do Rio, o sonho de consumo dos meninos de São Paulo. Todas lindas, pelo menos assim se achava, tinham feito amizade alhures num acampamento de férias de âmbito nacional. Decidiram rápido. O patrono da idéia era o único que tinha carta de motorista e, sendo assim, resolveram "roubar" o carro dos pais dele e encararam uma viajem de quase dez horas até Teresópolis. É claro que deu tudo errado, chegaram ao local de madrugada, todos dormiam e a bandeira jazia abandonada ao pé do mastro. Ao invés de roubar a bandeira, foram assaltar a despensa. Satisfeitos e mortos de sono, entraram nos dormitórios, procurando um lugar para dormir. Com todas as camas ocupadas, vagaram de quarto em quarto em busca das suas amigas. Ficaram surpresos de não encontrá-las e logo descobriram que tinham atacado o acampamento errado. Estavam, na verdade, na atividade de grupo pouco mais novo, pessoas que não conheciam direito. Não se deram por vencidos e escolheram, a esmo, um dos quartos que estava ocupado por cinco garotas. Entraram, disseram olá e, depois de esfarrapadas explicações e tentativas de identificação, perguntaram às apavoradas jovens se podam dormir ali. Acirradas argumentações tiveram curso na tentativa de convencê-las. Elas acabaram concordando oferecendo-lhes o chão empoeirado para deitar. O mês era julho, o local Teresópolis, o frio polar e o chão não parecia muito bom para dormir, na verdade parecia péssimo. Argüiram dizendo ser desumano deitar no chão, corriam o risco de pegar uma pneumonia, precisavam de camas para dormir, afinal de contas tinham viajado por dez horas seguidas, etc, etc. As donas de cinco pares de olhos que olhavam assustadas não pareciam comovidas com a peroração, no entanto, uma delas, uma ruiva com a pele muito branca, resolveu perguntar, então, qual seria a sugestão. Responderam que gostariam de dormir nas camas delas, um em cada, junto com elas, é claro que numa boa, no maior respeito, só para dormir. Ouviu-se um rebuliço no quarto, "nem pensar" foi a coisa mais agradável que disseram, mas, a ruiva, que achava ter reconhecido Mané, contemporizando, disse que concordariam, desde que dormissem totalmente vestidos, cada um dentro de seu sleeping, numa distancia que não provocasse roçadas indesejáveis durante a noite. Toparam de imediato, as meninas demoraram um pouco mais, mas o fato é que assim foi feito. Cruzando com o olhar esverdeado da ruiva, Mané se apressou a esticar o sleeping ao lado dela que já tinha escorregado para o canto oferecendo espaço. Com a cabeça ao lado dos seus pés, esticou-se no colchão, tentando fazer-se confortável. Depois da agitação que se seguiu enquanto todos se ajeitavam, cessaram os protestos e indignações e o quarto já ia mergulhando no silêncio, quando Mané sentiu vontade de fazer xixi. Perguntou onde ficava o banheiro e a ruiva, mal humorada, indicou o local no fim do corredor. Quando voltou, aliviado, já ia deitando quando ela diz que, se dormissem do avesso, ela corria o risco de levar chutes no rosto e sugeriu que Mané dormisse na mesma posição dela. Disfarçando a emoção, ele virou o sleeping e deitou acabrunhado ao seu lado, colocando os braços por trás da cabeça, para dormir virado de barriga para cima e o mais longe possível da moça. Minutos depois, Mané começou a escutar sua respiração compassada e, percebendo-a adormecida, relaxou e se ajeitou melhor, mesmo que com isso tenha sido obrigado a encostar uma coxa na sua, mas só um pouquinho. É claro que Mané demorou pra dormir, é claro que sua imaginação voou para distancias estelares, mas o suave ressonar da moça não deixava dúvidas sobre o que acontecia ali. Horas depois, quando conseguiu conciliar o sono, ela resolveu se virar e, nesse movimento, seu braço acabou agarrando o pescoço dele, mas, mesmo sufocado, tentou não se mexer para não acordá-la e, além do mais, aquele estranho abraço passava uma ótima sensação de intimidade. Quando acordou, o sol já ia alto. Lá fora dois membros do grupo de Mané tentavam dar explicações aos enfurecidos monitores. Depois da tensão inicial, risadas! No final, tudo acabou bem. A ruiva, que entrava no quarto neste momento, dirigiu-lhe um melodioso bom dia e acusou-o de roncar durante a noite. O dia passou agradável e, de tardezinha, pegaram a estrada de volta para São Paulo. Da sua aliada, com quem passara a noite, só teve notícias tempos depois. 28/12/2020
Uma garota ruiva - episódio 2/5
Dois anos e meio após os eventos em Teresópolis, Mané se encontrava numa excursão pelo deserto do Sinai. Estava indo para o Monte Sinai a comemorar a libertação dos judeus do Egito do jugo dos Faraós, no exato local da ocorrência dos fatos. Além do cunho espiritual, a viagem tinha também motivações terrenas. No caminho para o sítio onde foram entregues os Dez Mandamentos pululam balneários paradisíacos às margens do Mar Vermelho. Águas cristalinas e piscinas de coral rivalizam com o significado espiritual que têm os caminhos percorridos por Moisés e sua turma. Mané e sua própria turma, porém, além de dispor de menos do que 40 anos para o passeio, estavam mais interessados, nas praias de Dahab, Nueba e Sharm El Sheik, ninguém pensando muito em sarças ardentes ou Tábuas da Lei. Dentre os balneários citados, Nueba despertava maior curiosidade, não que fosse mais belo ou pitoresco, mas por se tratar de uma praia onde se praticava o nudismo. Não que fossem tarados, apenas adolescentes curiosos. Chegando à praia, os monitores os reuniram perto do ônibus para algumas instruções. O guia, um argentino, informou estarem numa praia de naturismo onde andar pelado era natural, que ficassem todos à vontade. Risos. Podia-se olhar as pessoas, porém isso não deveria ser feito de maneira acintosa ou ofensiva. Risinhos. Caso aparecesse uma mulher com tudo à mostra, deveríamos agir com naturalidade e respeito. Mais risinhos. Para as meninas, alertou para o fato de poderem se deparar com rapazes com “el pene" aparente, e isso não deveria ser motivo de espanto. Muitos risinhos e cochichos. Em pequenos grupos partiram a explorar o paraíso. Demorou algum tempo até que aparecesse alguém pelado. Os primeiros foram dois homens. Vinham na direção contrária, trajados de tênis e de mochila nas costas. Era possível ver os "penes", balançando ao sabor da caminhada. Reagiram com naturalidade aos poucos nudistas que passavam por eles e a verdade é que, em pouco tempo, a novidade quase perdeu a graça. Quase. Mané resolveu passear sozinho e se dirigiu para uma curva da praia que parecia deserta. Caminhava pela beira da água deixando as ondas lamber os pés quando, ao longe, viu duas pessoas deitadas na areia. Aproximou-se devagar tentando ver se eram conhecidas. Conforme chegava, pôde ver que uma delas possuía uma cabeleira ruiva. Eram duas mulheres, uma ruiva e outra morena, tomando sol. Peladas é claro! Imaginou reconhecer a ruiva, mas, depois, pensou que era impossível. No entanto, passando ao lado delas, deparou-se estupefato com a garota de Teresópolis. Fez-lhe sombra com o corpo e saudou-a animado. A primeira reação dela foi abrir os olhos. Colocou a mão na frente para tapar o sol e depois, numa fração de segundos, levantou-se de supetão, tentando cobrir o peito e a virilha. Completamente nua e sem graça, ela respondeu: "nossa, que coincidência!" Mané lhe ofereceu uma camiseta para que se cobrisse e saísse da posição contorcionista enquanto a morena ia se vestindo disfarçadamente. Voltando pelo caminho que ele tinha vindo pouco depois, ela contou que estava lá de férias e tinha dado uma fugida pro deserto. Juntou-se à excursão de Mané por aquele dia. À noite, debaixo das mesmas estrelas que guiaram o povo judeu rumo à Terra Prometida, deitou para dormir ao lado de Mané, sobre as areias do deserto. Atirada, sugeriu abrir os sleepings para que ambos deitassem sobre um deles e se cobrissem com o outro, praticamente uma cama de casal. Enquanto lucubravam sobre a estranheza desse encontro, tão ou mais estranho que o primeiro, ela se aninhou nos seus braços. Fazia frio. Aconchegados um no outro e tendo só o firmamento por testemunha, ela sussurrou que tinha percebido muito bem que Mané encostara-se à coxa dela, naquela noite em Teresópolis. Ele respondeu que só tinha encostado por ter percebido suas intenções ao pedir para dormir cara-a-cara e também por causa do forte abraço que lhe dera durante a noite. Riram um pouco e um clima romântico se instalou na escuridão quando ela lhe deu um beijo. Lutando contra o sono, Mané começou a falar sobre a magia do lugar, sobre o significado de reencontrá-la ali e sobre tudo aquilo que teve vontade de lhe dizer em Teresópolis, mas não tinha tido chance. Enquanto falava, julgou escutar aquele ressonar delicado, ao qual ele já estava se habituando e, olhando para se certificar, percebeu que a moça dormia. Tentou não se mexer para que ela não acordasse, nem mesmo uma pedra que lhe furava as costas tirou, para não incomodá-la. Sem pregar o olho, nem ligou que ela babava no seu ombro. Ao invés, considerou ser um sinal de confiança e entrega. No dia seguinte o grupo de Mané se aprofundou no deserto do Sinai enquanto ela voltou para o norte. Da sua companheira de deserto, só teve notícias tempos depois...
Continua...29/12/2020
Uma garota ruiva - episódio 3/5
Mané estava formado há um ano. Trabalhava num banco cuja sede era no Rio de Janeiro. Pelo menos uma vez por semana tinha que ir ao Rio para uma reunião, pois a matriz estava para ser transferida para São Paulo e ele fazia parte da equipe de transição. Apesar do ritmo puxado, as viagens eram prazerosas, Mané era solteiro e, às vezes, passava dois ou três dias por lá, sempre com bastante mordomia. Fazia cinco anos que tinha voltado de Israel e a ideologia, assim como as lembranças do que tinha vivido, estavam tão longe quanto o Oriente Médio. Numa dessas idas ao Rio liga uma amiga que tinha estado com ele naquele ano em Israel. Ela pergunta quando é que ele voltava para São Paulo. Mané responde que em dois dias pegaria uma ponte aérea no final da tarde. Ela pergunta se ele se importaria em cancelar o avião e voltar com ela, pois estaria indo para São Paulo levando um carro. Pensando bem, Mané achou que não fazia diferença, era uma amiga querida, seria até agradável pegar a estrada, colocar a conversa em dia. Ela vibrou, estava com medo de ir sozinha, agradeceu e disse que ligava depois para os detalhes. No dia marcado ela liga, dizendo que tinha havido um problema e que ela não poderia viajar. Inicialmente Mané ficou bravo, pois já tinha devolvido a passagem e não sabia direito o que fazer assim encima da hora, ao que ela fala para ele não se preocupar, pois ela não poderia ir, mas o carro não só poderia como deveria, e se Mané se importava em levá-lo. Cariocas, pensou, não se pode confiar neles! Sem opção passou na casa dela para pegar o carro e enfrentar a solitária viagem de volta. Ele a encontra feliz e sorridente dizendo que tinha resolvido tudo e que ele não mais viajaria sozinho. Tinha falado com uma amiga que, por acaso, estava indo a São Paulo e se dispôs a acompanhá-lo. "Mas eu nem a conheço", protestou. "Que é isso! Você vai amá-la, ela é sensacional e, além do mais, vocês vão ter seis horas para se tornarem íntimos". Enquanto fazia um lanche, Mané ficou remoendo a confusão em que se metera e, nesse entremeio, a tal amiga chegou. Pensava sobre o que poderiam conversar dois estranhos durante uma tão longa viagem e não logrou ter nenhuma idéia. Enquanto comia tentando se conformar, levantou a cabeça no momento em que elas entravam na cozinha e, para seu deleite, deparou-se com a garota ruiva do Sinai e Teresópolis. Ficou alguns segundos sem fala, sem perceber que estava com a boca aberta, deixando à mostra pedaços do pão semi mastigado. Depois de recobrados da coincidência, preparam-se para a viagem e mergulharam no transito em direção à Via Dutra. Matraquearam sem parar durante algum tempo, relembrando os dois encontros anteriores, da audácia de Mané em Teresópolis, sete anos e meio atrás e do arrojo dela no Sinai, cinco anos atrás. Ela reclamou que, no episódio de Teresópolis, tinha só 16 anos, que absurdo invadir a cama de jovens donzelas! Ao que eu respondi que no Sinai, no entanto, ela me parecera bastante crescida, apesar dos seus parcos 18 anos! Depois de um bom pedaço de estrada, o motor começou a falhar. Quando encostou no posto, Mané estava quase arrependido. Enquanto aguardavam um telefonema da seguradora, o bom humor dela em relação ao contratempo, fez com que Mané não se abatesse e ele quase nem se importou com o fato de que teriam que passar a noite por lá, pois a seguradora, informava que não havia socorro disponível no momento. Resolveram relaxar e, rindo da fria em que estavam, dirigiram-se para um motel de estrada que o frentista indicou. Foi estranho chegar a um motel a pé. Foi estranho entrar num quarto rosa, carpete vermelho e com espelhos no teto com uma pessoa quase desconhecida. Foi estranho tomar banho de espuma juntos e foi muito estranho deitar com ela num colchão de água redondo. Foi estranho, sem dúvida, mas foi um espetáculo! Pouco depois de jantar, alimentados e lavados de corpo e alma, recostaram-se no tal colchão e ligaram a TV. Mané tomou cuidado para não se fixar no canal onde passava um filme pornô, não queria forçar a barra nem parecer afoito. Ela, contudo, mostrou-se interessada e ficou prestando atenção às cenas de sexo. Sete anos e meio tinham passado desde a primeira vez que a vira. Mané acordou de manhã sentindo-se sugado pelo colchão de água. Ela dormia praticamente encima dele, se não fosse pela tonalidade da pele, ninguém conseguiria saber qual perna era de quem. Mané tentou desfazer o nó com cuidado para não acordá-la e pediu o café da manhã. Mais tarde seguiram viagem rebocados por um guincho. Esparramados no banco de trás do carro que ia sendo puxado, perguntaram-se se iriam, pelo menos uma vez na vida, encontrar-se de um jeito normal. Passando por Pindamonhagaba, ela adormeceu com a cabeça apoiada na barriga de Mané. Ressonava suavemente quando passaram por Jacareí. Pouco depois, em São Paulo, antes de ela descer do táxi, Mané ganhou um beijo na boca e uma recomendação: "Me liga"! Tarde demais percebeu que não tinha o telefone dela. Da caronista que trouxera para São Paulo, só teve notícias tempos depois...
Continua...30/12/2020
Uma garota ruiva- episódio 4/5
Mané acordou com pressa. É sempre trabalhoso sair para passeios de qualquer tipo com a família, que dirá para uma viagem ao Rio. Ele queria pegar a estrada logo para evitar o transito e chegar cedo. Mané foi ficando impaciente e reclamou da quantidade de roupas e trecos. Salma replicou que nesta época do ano a temperatura pode cair, então tínhamos que levar roupas para frio e para calor. Frio? No Rio de Janeiro? Para não discutir, Mané foi acordar Samira que não dava sinais de vida. Iam para o casamento tardio de um amigo. Achavam que ele não mais casaria, já habituados a ele como solteirão inveterado. No entanto, com mais de 40, tinha finalmente encontrado a sua outra metade. Ia casar com uma carioca e mudava-se de volta para o Brasil, depois de uma temporada nos Estados Unidos. A noiva tinha exigido que o casamento fosse no Rio. Mané viajou de carro, achou que podia ser agradável, afinal, iam ficar quatro dias por lá, seria bom estar motorizado.
Pelo meio da tarde estavam na Av. Brasil e seguiam as placas em direção às praias. O Rio de Janeiro continuava lindo! No Flat, depois de instalados, Mané perguntou se estavam a fim de pegar uma piscina ou ir à praia. Ficaram na piscina. No dia seguinte fizeram turismo: Pão de Açúcar, Cristo, calçadão, chopp e almoço. Depois de breve descanso, Salma começou os preparativos para o casamento que se daria à noite. Mané saiu com o noivo a fazer os últimos arranjos. Não parecia nervoso e dizia que essa era a única vantagem de casar depois de velho. Sobre a noiva, fazia mistério, disse que Mané iria gostar muito dela, e que ela estava casando pela terceira vez. Disse ainda que era bonita e inteligente, que tinham se conhecido num museu, onde ela trabalhava. Contou que era, claro, carioca, que tinha morado, além dos Estados Unidos, na Europa e também em Israel. Encantado, finalizou dizendo que tinha uma característica física que chamava muito a atenção: era ruiva! Mané ficou com a pulga atrás da orelha. Ruiva, carioca, Israel...Não, não, pensou consigo mesmo, era impossível. Seria uma trágica coincidência! Tentou não focar naquilo e voltou para o Flat em estado de atenção. Procurou pelos seus e os encontrou curtindo o final da tarde à beira da piscina que tinha vista para a Lagoa. Água de coco e a paisagem o fizeram quase esquecer do assunto. Um banho reparador e uma soneca completaram o serviço. O casamento se daria num clube e, para se chegar ao local da cerimônia, uma pequena ilha, os convidados tinham que pegar um barquinho. Muito charmoso! Quando chegaram, as pessoas se acotovelavam a espera da noiva. O noivo, suando em bicas, capitulara ao nervosismo. Quando iniciaram os acordes nupciais, Mané baixou os olhos para não ver. Devagar, foi levantando a cabeça, e viu uma silhueta da qual lembrava. Tinha a cabeleira ruiva enfeitada com flores e no rosto mais sardas mas o cabelo flamejante, continuava o mesmo. Mané não conseguiu acreditar no que via. Na passarela, a poucos metros do seu nariz, lá estava a garota com quem dividira a cama em Teresópolis, o sleeping no deserto do Sinai e um colchão de água num motel da Via Dutra. Mané entrou em transe. Fez malabarismos para fugir dos noivos e ninguém conseguia entender qual era o motivo da sua demora para cumprimentar o amigo. Pelas tantas, sem escapatória, foi cercado pelo casal e, finalmente, seus olhos cruzaram com os dela. Aquele sim foi um encontro muito, mas muito estranho! Eufórico, o amigo dizia que tinha certeza que eles iam se dar bem e, virando para a noiva: daqui pra frente, vocês também serão amigos! Entre sorrisos, Mané apresentou Salma à ruiva e falou algumas bobagens indo depressa se perder na multidão. Tarde da noite, com Samira capotada nos braços, despediu-se do casal que partiria em lua-de-mel. Inexorável e a vida seguiu seu curso. Os dois foram morar a algumas quadras de Mané e tiveram dois filhos. Às vezes Mané a encontra com as crianças na padaria, às vezes iam juntos ao clube e, num dia desses, acabaram por ficar a sós, os filhos bulindo por ali. Mané teve ímpetos de repisar o velho assunto e quase perguntou se podia considerar que a acidentada história deles tinha sido superada. Enquanto a observava afastar uma mecha do cabelo ruivo, percebeu que, depois de tantos anos de um relacionamento tão distante quanto intenso, eles estavam, finalmente, tendo apenas um encontro normal. Nesse momento ela se afastou para acudir um dos meninos e, diante daquela cena maternal, Mané resolveu que o melhor era ficar calado.
Continua...31/12/2020
Uma garota ruiva - episódio 5/5
Avesso a festas, Mané resistiu o quanto pôde à idéia de Samira que queria comemorar seu aniversário de 90 anos. Corria o ano de 2045, o mundo tinha finalmente se acalmado depois do terror causado pela serie de pandemias anos atrás. A China finalmente assumiu seu lugar de potência depois da queda do império americano. Israelenses e palestinos encontraram o caminho para a paz depois de 100 anos de luta encarniçada. Dois estados independentes floresciam lado a lado e, levando isso em conta, Mané achou que tinha motivos para comemorar. Ele nunca imaginou chegar a esta idade e, depois de chegar, era quase impossível acreditar que estava tão velho. Seu neto apareceu para algumas providências. Veio acompanhado de uma garota que, em tempos passados, Mané teria achado atraente. Apresentou sua namorada e chamou a atenção de Mané o fato dela ter os cabelos ruivos, condição que o fazia se lembrar de coisas agradáveis, mas ele não sabia o quê! Sua memória andava falhando e Mané ficava rabugento quando isso acontecia. Teve que explicar que não era nada com ela, a menina estranhou o silêncio e o olhar inquiridor que Mané lhe lançou depois das apresentações. Mané observou o quanto era bonita, a pele muito branca e pequenas sardas que emolduravam seus brilhantes olhos verdes. Lembrou-lhe uma garota que conheceu na juventude, aliás, depois de observá-la por um tempo, começou a achar que fosse ela mesma. Responsabilizou seus velhos neurônios pela confusão e decidiu tirar um cochilo enquanto os mais jovens trabalhavam. Na penumbra do quarto foi invadido por antigas recordações, vagas lembranças da época em que Mané se parecia muito com o neto que estava na sala, e do seu envolvimento com uma garota ruiva, igualzinha àquela. Lembrou de episódios estranhos em lugares do Brasil e do mundo. Nas suas memórias, a garota aparecia sempre dormindo, e ele quase podia escutar a sua respiração compassada, um leve ressonar e uma sensação de aconchego. Que diabos tinha acontecido entre eles? Num esforço, conseguiu lembrar que ela tinha se casado com um amigo e que, anos depois, tinham se mudado para Israel e tinham perdido contato. Imagens que misturavam cenas de uma festa de casamento, sleepings, colchões de água e vastidões desérticas invadiam a mente de Mané e ele só conseguia se perguntar se a moça que estava na sala não seria uma reencarnação da antiga garota ruiva que voltava para atormentar sua velhice. Completamente desperto, foi até a sala e a chamou para conversar. Rapidamente descobriu que ela tinha nascido em Israel. Isso justificava o sotaque carregado. Ela ainda explicou que tinha aprendido português com os avós brasileiros. Hmmmm! Mané pediu para que o neto fosse buscar o caixote de fotos. Ele foi, reclamando que não tinha tempo para isso agora, que deixasse para mostrar as fotos noutro dia. Mané procurou uma fotografia de um casamento no Rio de Janeiro. Na foto, ele posava com um sorriso amarelo, ao lado de Salma e Samira, além da garota ruiva e do marido, o amigo de Mané. “Tá bom vô, já sei que você foi jovem, que esta é a minha mãe quando bebê”! Mané mostrou a foto para a menina ruiva e perguntou se ela reconhecia as pessoas. Com cara de surpresa, exclamou: “mas esta foto é do casamento dos meus avós”!
Perdendo toda a urgência, o neto sentou para ouvir, já que a moça começou a fazer perguntas. De muita coisa Mané não lembrava, aliás, acabou percebendo que nem tinha muito para contar, já que a história com a garota ruiva tinha sido curta, apesar de longa no tempo. Aliás, longa e intensa, já que mais um episódio tinha acabado de acontecer. Depois de Mané contar tudo que lembrava, decidiu não perguntar sobre a avó dela, com medo de ouvir qual teria sido o seu destino. De qualquer forma, pouco importava o que tinha acontecido, mas sim, o que tinha deixado de acontecer! Foi bonita a festa. Vieram parentes e vizinhos, já que amigos ele não tinha mais. Não conversou muito com as pessoas. Resolveu parecer aéreo como os velhos e ficar apenas seguindo a nova garota ruiva com o olhar e imaginando por quais desígnios ela tinha se aproximado do neto e dele agora no fim da vida, além de se deleitar com aquele presente do destino, a garota ruiva jovem e bela em todo seu esplendor ali, ao alcance dos olhos. Depois de cortar o bolo, enquanto recebia cumprimentos das pessoas, escutou o neto perguntar para a namorada: “mas será que o meu avô comeu mesmo a tua avó num motel da Via Dutra? Que bafão, mas essa sua avó, hein?" Ao que a garota ruiva respondeu: “minha avó? E o seu avô, invadindo o quarto de garotinhas? Bafão vai ser daqui a pouco quando eu falar pro seu avô que a vovó chega amanhã”! FIM
Aqui na casa de Mané, que é um lar híbrido, reza-se para todas as crenças e não se reza para nenhuma. De comum, Salma e Mané têm a origem árabe, alem disso, nada. Só o amor que os uniu apesar de certas resistências familiares. Em Rosh Hashaná eles comemoram junto à família de Mané. No natal agregam-se à de Salma. Esse ano nem uma coisa nem outra. Por isso é que estão com esse cadáver na geladeira. Vai sair um chester do forno de Mané, coisa inédita na vida desta família e Mané e Salma vão levar marmitas para as mães, o que também é inédito. Mané resolveu escrever em latim porque essa, ao lado do aramaico, era a língua dominante à época dos fatos que se comemora, mas a tradução saiu tão ridícula que Mané desistiu. Mané não achou o tradutor para aramaico.
Mane hic est a domo quae est in domum suam hybrid, ora pro omnibus fidei, et non aliqua. Communiter ortus tantum et Arabes Mane primo praeterea nihil. Tantum amor, ut eas non obstante aliqua familia non resistentis fortiter. Lucius Magri, qui de genere est ipse iubam celebramus. Instante uero Natiuitate de quo ortus est familiaris additae sunt. Nee anno altero. Cur id quod in corpore amet. A Cestrensis de mane venit in clibanum mittitur, quod antea numquam fuerant in domo hac vita mane et tollet de quo lunchboxes matres eorum, quæ est etiam inusitati consili relinquebat. Mane latine scribere decrevi, quod hoc latere quia hebraea lingua fuit dominans in tempore facta esse, quod celebratur cum tamen, in translatione non est ita ridiculum, quod dabat in mane. Mane non invenies locum hebraice interpres. 24/12/2020
Mané está se trocando para ir ao parque quando chega Anuar, que a noite tinha desistido, dizendo que ia junto. Madrugaram no parque deliciosamente frio, quente e vazio podendo inclusive tirar a máscara em longos trechos. Deram uma alongada no início do percurso e iniciaram a volta em sentido contrário ao de costume. Aplicados, percorreram toda a extensão da pista em menos de 45 minutos, ritmo acelerado. Pararam para tirar uma selfie ao lado do viaduto que caiu e mandaram a foto no grupo da família. Na volta, pararam na padaria para comprar pão fresco e croissants para Salma. Ao chegar em casa Mané lembrou que Salma iria reclamar do croissant engordativo e escondeu o pacote num canto. Pegaram Milu e desceram para que ele fizesse suas necessidades, tarefa que cumpriu com louvor. À mesa, Salma reclamou da falta de croissants e Mané, presto, desencavou o pacote o que a deixou muito feliz. Desta vez ela não reclamou que engordava mas de que a massa não estava suficientemente folhada e Mané preferiu ficar calado, imerso em seus tediosos pensamentos, outra segunda, outra semana, outro mês, outro ano, outra reclamação sobre croissants. Mané entende perfeitamente o impulso dos suicidas. Como hoje vem a titular de serviços gerais, Mané levantou da mesa, saiu da cozinha sem lavar a louça e seguiu para o quarto não sem antes escutar Salma comentar com Anuar sobre a selfie do dia: “nossa, as pessoas ficam bem mais bonitas de máscara, não é? De óculos escuro e máscara, então, todos ficam esplêndidos, um espetáculo”! 21/12/2020
Mané foi com Anuar até o sacolão com a listinha de Salma. Experientes no assunto rapidamente fizeram as compras depois de besuntar o carrinho com meio litro de álcool, desviando-se das pessoas evitando encontrões e aglomerações. Ao passar pelo caixa Mané pagou a conta de 299 reais, achando que tinha saído mais em conta que na semana passada. Já ia indo quando lembrou que não tinha levado as uvas verdes sem semente que Salma adora. Voltou pra dentro do mercado e pegou quatro pacotinhos de meio quilo daquela uva docinha, tudo por 40 reais. No caminho deparou-se com uma banca de lichias, que Salma também adora e resolveu levar um quilinho, o que saiu por 25 reais. Quase de saída tropeçou com um enorme balaio cheio de cerejas e Mané sentiu vontade de comer cerejas o que somou mais 60 reais à conta o qual somado às outras delicatéssen e à conta da semana totalizou 424 reais e Mané que tinha achado a primeira conta barata, ficou meio achando que tinha alguma coisa errada. Em casa informou a Salma que tinha trazido suas uvas e lichias de brinde. E isso, perguntou Salma. Cerejas, disse Mané baixinho? Cervejas? Não, cerejas. Ai que delícia, e logo se pos a lavar as frutinhas. Mané foi se lavar e quando voltou viu Salma devorando uma cereja após a outra e Mané disse que as uvas e as lichias é que eram pra ela. Ela, sem se abalar, obrigado meu lindo, adoro as uvas e as lichias então, são um espetáculo mas essas cerejas estão divinas. Quanto vc já comeu? Eu trouxe um quilo, disse Mané, vamos deixar um pouco pra depois? E Salma, pondo mais um bocado na boca, levantou e disse, vou lavar umas lichias pra você. 20/12/2020
As 6:15 Mané cutucou Anuar: vc vai comigo ao parque? Em três minutos Anuar levantou, ambos fizeram suas abluções e chegaram ao Vila Lobos a tempo de ajudar o guarda a abrir os portões. Sol de rachar, apesar do ar fresquinho da manhã já fazia calor e eles deram preferência para os caminhos sombreados que ali são raros. No caminho cruzaram com pelotões de corredores e patinadores que passavam zunindo por eles. A maioria sem máscara. Mané e Anuar se embrenhavam na mata para deixá-los passar longe. Fizeram o percurso em pouco menos de uma hora, pararam num quiosque pra uma garrafinha de água e a sensação de bem estar era tão boa que resolveram tirar uma selfie. E mandaram a foto para o grupo da família. Depois pegaram o carro, pararam na padaria perto do Vera Cruz pra comprar pão fresco e Mané levou croissants para Salma que sempre reclama que “isso engorda”, quando acaba de comer. À mesa, findo o pequeno almoço, Salma olha a foto que tinha sido enviada e pergunta pra Anuar: quem é este senhor grisalho que posou com você? 19/12/2020
As mulheres juram que não há dor maior que a dor de parto. Ainda dizem que o homem que tiver que passar por tal situação, com certeza não levará o parto à termo. Os representantes do sexo forte são fracos quando se fala em aguentar dores. Mas isso depende da dor. Martelada no dedo dói. Também dói torcer o calcanhar ao tropeçar, dói ralar o joelho, prender a mão na porta, levar um chute na canela e também doem os músculos quando ainda faltam quarenta minutos para terminar o tempo da esteira e só se passaram dez. O cansaço dói! As mulheres falam da dor do parto porque nunca levaram um chute no saco. Ou nunca fizeram vasectomia. Um amigo disse que a dor da vasectomia é equivalente a levar um chute no saco a cada dois minutos durante uma semana. Quando se dorme mais da conta pode se acordar com dor de cabeça. Infindáveis são as dores de cabeça, latejantes, permanentes ou pontiagudas. O trânsito, o dia cheio, funcionários que faltam, a falta de dinheiro, o calor fora de hora, a pressão alta e a batalha contra a gordura fazem a cabeça doer. Forçar a vista também. Tem aquelas que atacam ao acordar, outras que aparecem ao longo do dia, mas as piores são aquelas que só começam na hora de dormir! O casal se estica na cama, os pés se enroscam e como resposta vem à tona a famosa dor de cabeça. Dor de cabeça que se confunde com as dores da alma. Entre os infinitos tipos de dores existe a dor do amor. Esta é uma dor pungente, aflitiva, profundamente dolorida e lancinante que leva muito tempo para passar e, diferentemente de outras dores, deixa sequelas permanentes. As mulheres devem sentir muitas dores nos pés a bordo daqueles sapatos de salto alto. Ou das sandálias que deixam os dedos à mostra. Uma pisada nos pés femininos, normalmente tão delicados, deve dar uma dor de trespassar a alma. A avó contava que tinha sentido dor quando teve o enfarte. Assim, como se fosse uma punhalada. Como resposta o neto perguntou se ela já tinha levado uma punhalada e ela disse que sim. Tinha levado muitas, algumas frontais e outras pelas costas. Disse ainda que ficar velha doía. No corpo e na alma. Existe também a dor das separações e para esta não existem palavras consoladoras. Mortes, desenlaces matrimoniais, perda de empregos. Todo tipo de perda provoca um vácuo que é só preenchido pelo tempo. Às vezes nem o tempo resolve. É uma dor que, mesmo calada, pode doer a vida inteira. É uma dor silenciosa e nem precisa dizer nada, mas, no íntimo, grita pela falta o tempo todo. Abandono dói! Solidão dói! Pode-se fazer uma lista de todas as dores. Em ordem alfabética ou por intensidade da dor. Pode-se enumerar os efeitos de cada dor nas pessoas, mas, a dor se manifesta de forma diferente em cada um. Dependendo da razão, pode ser diferente. Numa pessoa pode ser maior, noutra menor. Pessoas reagem de forma diversa: algumas choram, outras agridem ou ficam com raiva. Algumas, às vezes se calam, morrem interiormente e depois, quase sempre, vão ressuscitando devagar. Aos poucos. E a dor de dente? Pior que a dor de dente é a dor que sentimos no dentista. A dor começa a doer quando sentamos na sala de espera. Começa quando aquele aparelhinho é ligado, mesmo que para ser aplicado na boca dos outros. Precisa-se de anestesia antes de abrir a boca. Imaginar aquilo que o dentista vai fazer já dói. É uma dor que se prolonga por um tempo interminável e atinge profundidades abissais dentro do seu âmago. E depois vem a dor da conta. Quando terminamos o tratamento e pagamos o débito. Pagar médico dói! Hospital dói mais! Arrancar casquinhas de feridas dói. Falar das fraquezas dói. Encarar os próprios erros dói. Tomar decisões erradas dói. Dormir em colchão que não é seu dói. Levar uma flechada dói. Ou um tiro. Ou uma cusparada. Tem uma infinita lista de dores sobre as quais poderia falar. Ver o filho triste dói. Cortar a mão com uma folha de papel também. Traição dói. Unha encravada. As aftas ardem e doem. Preconceito, intolerância, fome, humilhação, exame de próstata, pedra no rim. Isso dói! Ficar enumerando as dores não dói, ao contrário, dá prazer. Desde que você não esteja sentindo nenhuma. O prazer também pode causar dor.
Existe ainda uma dor especial. Uma dor que é muito enjoada e atinge a muitos e não somente a aquele que a sente. Ao contrário de outros tipos de dor, esta, quando é detectada, pode fazer doer mais nas outras pessoas do que naquela que foi atingida. Quem a sente destila sua dor em pessoas próximas que, por uma ou outra razão, fizeram-na aparecer. A principio, essa dor não tem cura. É progressiva, à medida que fatores exteriores a fazem mais evidente. Falo da inveja, da dor de cotovelo, da cobiça. Do desgosto, ódio ou pesar pela prosperidade ou alegria de outrem. Para esta dor não existe cura. Talvez um ramo de arruda. Para as outras dores, sim, existe solução. Um bálsamo, um curativo, um beijinho da mamãe, o tempo ou um comprimido, tudo isso pode ajudar. 17/12/2020
Fim do café da manhã. Antes de lavar a louça Mané fuça o telefone porque são 9:15 e o dia útil já começou. Ele lê com atenção um WhatsApp e depois vai pro Facebook. Ele ri e Salma pergunta o que foi. “Uma moça escreveu uma coisa aqui”. Que moça? “Uma moça do Facebook”. Eu conheço? Mané diz o nome da moça e Salma pergunta se essa não é uma ex namorada. Mané diz que sim e diz ainda que ela já sabe que ele tem todas as ex namoradas no face. Todas as oito. Seriam nove mas uma, como ela já sabe, morreu ainda jovem. Sabia que você mantém um laço erótico com todas essas mulheres? Mané fica ruminando de cabeça baixa pensando no que está por vir mas ao olhar para Salma, vê um olhar límpido e pacífico. Sim, ela continua, sempre que temos um relacionamento afetivo que acabou bem, sem brigas ou ódio, a gente mantém com essa pessoa um laço erótico que pode ser reavivado a qualquer momento, basta uma centelha. Mané visualizou as ex namoradas, duas delas com quase 70, será? Eu também tenho laços eróticos com ex namorados, disse Salma sorrindo enquanto colocava a louça na pia. Mané que estava gostando dessa conversa de laço erótico, disse também sorrindo para Salma: “fale-me mais sobre isso”! 16/12/2020
A galinha chegava batendo as asas, pendurada pelas pernas. A avó a deixava dentro da pia, os pés amarrados, enquanto, calmamente, afiava um facão. Depois de testar o fio, dirigia-se para a vítima, arrancava a penugem do pescoço e cortava a garganta da coitada, que ficava se debatendo, espargindo sangue até morrer. Quando o corpo finalmente ficava inerte, era a hora de depenar o bicho, queimar o que restava das penas, e já estava dado um grande passo para a preparação do jantar de shabat. Não que fosse a melhor atividade para um garoto, mas Mané se lembra ter assistido esse ritual por anos, pelo menos uma vez por semana. Durante as tardes da sua infância, depois da escola, ele fazia companhia para a sua avó. E ela para ele. Depois do almoço eles se sentavam no sofá quando ela costumava tomar uma xícara de café e fumar. Pegava o maço de Minister e escolhia um cigarro, acendendo-o metodicamente, em seguida, dava uma grande baforada, o que parecia lhe proporcionar muito prazer e olhava para Mané sorridente recomendando-lhe nunca fumar. Dizia que fazia mal. Habitualmente saíam para um pequeno passeio pelas redondezas para comprar alguma coisa que estivesse faltando. Numa vendinha que tinha lá perto, o atendente português sempre perguntava como estávamos, mas, a avó respondia apenas com um aceno porque não conseguia entender o sotaque enviesado. O dono da venda tratava-o como sendo o "neto da senhora francesa" e, para dar sustento a esta mentira, sempre que passavam ali, enquanto o esperavam embrulhar uma bengala, uma meia dúzia de ovos ou um tubo de margarina, Mané disparava a falar francês com sua avó, que achava engraçado e perguntava em árabe se ele queria uma bala paulistinha. Sem cerimônia, enfiava a mão no pote que se encontrava em cima do balcão enchendo-a e em seguida as depositava na mão de Mané. O passeio continuava com uma ida à farmácia porque, depois do enfarte, passou a ter que tomar remédios diariamente. Mané achava que era uma mulher importante por ter voltado pra casa de ambulância e, quando chegou, foi levada para cima em uma maca, todos os filhos presentes, além de um médico e uma enfermeira. Na recuperação costumavam dar pequenos passeios lá na Praça Princesa Isabel, em volta do Duque de Caxias, porque ela precisava andar. Era uma caminhada vagarosa e, no começo, quando ainda se sentia insegura, segurava forte a mão de Mané que adorava ampara-la, apesar de duvidar que pudesse suportar seu peso em caso de necessidade. Era, naqueles tempos, uma mulher forte e gorda. E ele, por ironia, um menino mirrado. Nas tertúlias vespertinas ele assistia à avó produzir diversas variedades de comida. Menenas, sambuceks, repolhos e abobrinhas recheadas, kibes, esfihas, moloheia e muitas outras comidas árabes, cujos odores e sabores permanecem grudados na memória. Ainda durante a tarde, depois do passeio, ela deitava na cama por alguns minutos e ficava lendo uma revista em francês chamada "Confidences", que trazia reportagens femininas, fotonovelas e quadrinhos, que Mané tentava ler sem sucesso. Depois da sesta, ela costumava tomar banho e, nessa hora, para não se sentir muito abandonado, Mané ficava sentado na porta do banheiro escutando a água cair. Saía embrulhada num roupão, corria para dar uma olhada numa torta que estivesse assando no forno, e ralhava por ele ter ficado sentado no chão. A nona, como ele a chamava, tinha algumas esquisitices. Uma delas, que nunca ficou bem explicada, era o fato de que era proibido apontar o dedo para a lua. Quando isso acontecia ela pegava a mão de Mané e lhe aplicava uma cusparada. Era para evitar o nascimento de verrugas, dizia. Apontar o dedo para a lua faz crescer verrugas na mão. Cuspir nela previne. Mané ficava com nojo e corria para lavar a mão, mas nunca perdia a oportunidade de apontar para a lua quando estava perto dela. Só para provocar. Ela o deixava assistir filmes de terror e depois lhe contava histórias para que se esquecesse do medo. Consolou-o inúmeras vezes das surras que levava da mãe e protegeu-o de levar outras tantas e certo dia, deixou-o dar uma baforada num cigarro só para que visse como era ruim. Tudo isso Mané lembrou há tempos quando ela faria 117 anos. 14/12/2020
A galinha chegava batendo as asas, pendurada pelas pernas. A avó a deixava dentro da pia, os pés amarrados, enquanto, calmamente, afiava um facão. Depois de testar o fio, dirigia-se para a vítima, arrancava a penugem do pescoço e cortava a garganta da coitada, que ficava se debatendo, espargindo sangue até morrer. Quando o corpo finalmente ficava inerte, era a hora de depenar o bicho, queimar o que restava das penas, e já estava dado um grande passo para a preparação do jantar de shabat. Não que fosse a melhor atividade para um garoto, mas Mané se lembra ter assistido esse ritual por anos, pelo menos uma vez por semana. Durante as tardes da sua infância, depois da escola, ele fazia companhia para a sua avó. E ela para ele. Depois do almoço eles se sentavam no sofá quando ela costumava tomar uma xícara de café e fumar. Pegava o maço de Minister e escolhia um cigarro, acendendo-o metodicamente, em seguida, dava uma grande baforada, o que parecia lhe proporcionar muito prazer e olhava para Mané sorridente recomendando-lhe nunca fumar. Dizia que fazia mal. Habitualmente saíam para um pequeno passeio pelas redondezas para comprar alguma coisa que estivesse faltando. Numa vendinha que tinha lá perto, o atendente português sempre perguntava como estávamos, mas, a avó respondia apenas com um aceno porque não conseguia entender o sotaque enviesado. O dono da venda tratava-o como sendo o "neto da senhora francesa" e, para dar sustento a esta mentira, sempre que passavam ali, enquanto o esperavam embrulhar uma bengala, uma meia dúzia de ovos ou um tubo de margarina, Mané disparava a falar francês com sua avó, que achava engraçado e perguntava em árabe se ele queria uma bala paulistinha. Sem cerimônia, enfiava a mão no pote que se encontrava em cima do balcão enchendo-a e em seguida as depositava na mão de Mané. O passeio continuava com uma ida à farmácia porque, depois do enfarte, passou a ter que tomar remédios diariamente. Mané achava que era uma mulher importante por ter voltado pra casa de ambulância e, quando chegou, foi levada para cima em uma maca, todos os filhos presentes, além de um médico e uma enfermeira. Na recuperação costumavam dar pequenos passeios lá na Praça Princesa Isabel, em volta do Duque de Caxias, porque ela precisava andar. Era uma caminhada vagarosa e, no começo, quando ainda se sentia insegura, segurava forte a mão de Mané que adorava ampara-la, apesar de duvidar que pudesse suportar seu peso em caso de necessidade. Era, naqueles tempos, uma mulher forte e gorda. E ele, por ironia, um menino mirrado. Nas tertúlias vespertinas ele assistia à avó produzir diversas variedades de comida. Menenas, sambuceks, repolhos e abobrinhas recheadas, kibes, esfihas, moloheia e muitas outras comidas árabes, cujos odores e sabores permanecem grudados na memória. Ainda durante a tarde, depois do passeio, ela deitava na cama por alguns minutos e ficava lendo uma revista em francês chamada "Confidences", que trazia reportagens femininas, fotonovelas e quadrinhos, que Mané tentava ler sem sucesso. Depois da sesta, ela costumava tomar banho e, nessa hora, para não se sentir muito abandonado, Mané ficava sentado na porta do banheiro escutando a água cair. Saía embrulhada num roupão, corria para dar uma olhada numa torta que estivesse assando no forno, e ralhava por ele ter ficado sentado no chão. A nona, como ele a chamava, tinha algumas esquisitices. Uma delas, que nunca ficou bem explicada, era o fato de que era proibido apontar o dedo para a lua. Quando isso acontecia ela pegava a mão de Mané e lhe aplicava uma cusparada. Era para evitar o nascimento de verrugas, dizia. Apontar o dedo para a lua faz crescer verrugas na mão. Cuspir nela previne. Mané ficava com nojo e corria para lavar a mão, mas nunca perdia a oportunidade de apontar para a lua quando estava perto dela. Só para provocar. Ela o deixava assistir filmes de terror e depois lhe contava histórias para que se esquecesse do medo. Consolou-o inúmeras vezes das surras que levava da mãe e protegeu-o de levar outras tantas e certo dia, deixou-o dar uma baforada num cigarro só para que visse como era ruim. Tudo isso Mané lembrou há tempos quando ela faria 117 anos. 14/12/2020
Mané espera sua condução. No meio daquele recinto cinzento, uma mulher sorria. Não uma qualquer. Tinha a pele suavemente dourada pelo sol. Olhos verdes com grossas sobrancelhas que os emolduravam. Lábios carnudos e um narizinho que não se consegue definir. Uma deusa. Da testa lisa, emergia uma cabeleira negra, parcialmente presa por um rabo de cavalo. De tempos em tempos escorria uma mecha pelos lados que ela delicadamente afastava. A perfeição em forma de mulher olhava e sorria para Mané enquanto ele, espantado, tentava controlar o tremor que ameaçava tomar conta de si. Nunca uma mulher lhe sorriu daquele jeito. Sobem no coletivo e sentam em extremidades opostas. Para onde vai uma beldade dessas? Mané tenta olhar sem ser visto e percebe que ela continua sorrindo. Ela lhe sopra um beijo e faz um aceno. A viagem já está pela metade e o ônibus para numa cidadezinha. Algumas pessoas descem e Mané a perde de vista. Seu coração dispara e ele entra em pânico por tê-la perdido. Quando percebe já chegou ao fim da linha e o motorista olha nervoso esperando que ele saia do transe e desça. À noite, sem vontade de comer, deita com a sua frustração e adormece agitado. Quando amanhece sai para o trabalho. Ele volta todas as tardes para rodoviária a ver se a encontra de novo. Tem taquicardia desde aquele dia. O oxigênio lhe falta. Fala com as pessoas, trabalha, mexe com papeis, faz reuniões. Em tudo a vê. Sente o amor fluir pelo seu corpo, e isso dói! Vai procurá-la todo dia na estação com renovada esperança. Fica lá postado durante horas, até o último ônibus. Nem sinal dela. Já decorou o caminho, cada poste lhe é familiar, cada calçada parece uma velha conhecida. Três semanas consecutivas nesse desatino e nada! Além da esperança perde a confiança em si, passa a duvidar da sua sanidade mental, enlouqueceu por causa de um olhar! O tempo se torna seu aliado e inimigo! Meses depois, só se lembrava da deusa para rir de si mesmo quando, um dia, lá estava ele de novo na tal estação. Entra no ônibus e, então, uma batida na janela. Tenta abrir o vidro e quando consegue, meses de autocontrole saem pelo vão que se abriu. Ela estava do lado de fora e acenava. Linda! Lembra vagamente de sair do veículo e se vê, uma hora depois, sentado na plataforma olhando cada rosto e fazendo perguntas idiotas para os passantes. Alguns olham como se fosse lunático, outros tentam ajudar. Refaz o caminho por onde a viu sair, dez, vinte vezes. Nenhum rastro, nem um cheiro! Mané estava obsessivamente apaixonado. Naquela noite sonhou que eram amantes. Ela lhe ofereceu todos os lábios. Mornos. Macios. Suculentos. Os corpos se colavam, vibravam e suavam. Ela estremecia em seus braços e entregava-se aos seus caprichos, obediente. Parou de viver. Davam-lhe conselhos. Seja sensato! Você alucinou, esquece! Foi grosseiro com quem tentou ajudar: “Não estou interessado em conselhos. Procuro uma mulher linda, como jamais vi. Ela tentou me seduzir e depois desapareceu. Sumiu na neblina. Preciso saber um nome, um telefone ou endereço. Esvaziado e dependente daquela mulher, outros meses passaram. Noite destas, Mané estava sentado numa lanchonete, com dois amigos, de costas para a entrada. De repente, uma inquietação, um sobressalto, um frio na espinha. O sanduíche forma uma bola que se recusa a descer pela garganta, a bebida lhe sai pelo nariz. O coração dispara e Mané começa a suar frio. Por trás, duas mãos macias e cheirosas lhe cobrem os olhos. Ele escuta uma voz doce e cálida: “Adivinha quem é?” Mané tomou suas mãos entre as dele e tentou, com sofreguidão, beijá-las. Mané virou a cabeça para olhá-la e era ela, a deusa, em carne, osso, em toda sua divindade. Difícil repetir aqui as palavras saídas de sua boca, faladas tão de perto precedidas pelo seu hálito morno e perfumado. Enquanto fixava os seus verdes olhos assustados nos de Mané, ela disse: “Meu deus, me desculpe! Nossa, que vexame, me perdoa, por favor. Pelo amor de deus, pensei que fosse o Jamal”!12/12/2020
Que Mané trabalhou por muitos anos num grande banco, cujo prédio ficava na Praça do Patriarca, no centro velho de São Paulo, isso todos já sabem. Era o começo dos anos 80, ele estava em início de carreira e não lhe causava espécie o fato de ter que freqüentar todo dia aquele pedaço deteriorado da cidade. Da sua janela privilegiada no 18º andar assistiu às grandes e pequenas coisas que movimentaram a vida dos paulistanos naqueles anos. Lá do alto viu, por exemplo, o coronel Erasmo Dias reprimir passeatas de estudantes com cassetetes, bombas de gás e brucutus, foi testemunha de um grande quebra-quebra ocorrido na Rua Direita e imediações, e também espectador privilegiado das grandes passeatas e dos comícios em prol das diretas-já no Vale do Anhangabaú. Até tentativas de suicídio presenciou. No verão, todo final de tarde testemunhava aquele aguaceiro que interrompia trânsito e fechava uma passagem de carros que tinha entre o final da Nove de Julho e o início da Tiradentes, conhecida como "O Buraco do Adhemar", depois substituído por um túnel, mas que ainda transborda a cada chuva. Alguns destes acontecimentos passaram para a história e outros, por serem de somenos, ficaram para as calendas. Certo dia, da privilegiada janela, onde observava um pôr do sol glorioso, que se dava no distante Pico do Jaraguá, detectou um ajuntamento de pessoas na esquina da Praça do Patriarca com a Rua São Bento. Havia um homem agachado que parecia procurar alguma coisa, os outros, inclusive uma dupla de policiais, observavam e conversavam entre si. Como a pequena multidão não se dispersava, Mané desceu para conferir o que se passava. Um senhor idoso, suado e nervoso, tinha levantado do chão e tentava espanar o pó das calças. Passava a mão pelos cabelos brancos e, a cada segundo, punha a mão no bolso a verificar se faltava alguma coisa. Perguntei para um dos que assistiam se tinha havido um assalto, e este me respondeu que não, que o homem vinha andando pela rua em direção da Praça da Sé. Como sabem, essas ruas são muito cheias, de forma que as pessoas andam nelas em mãos de direção, como se fossem carros, e é muito difícil passar de uma mão para outra o que, devido ao movimento intenso, pode até ser perigoso. Se você está à esquerda e quer entrar num prédio que fica à direita, tem que pensar na estratégia com antecedência sob pena de não conseguir efetuar a manobra. Pois o tal senhor idoso, percebeu tardiamente que perderia a entrada do local onde pretendia ir e, num gesto brusco, tentou atravessar a corrente humana que vinha em sentido contrário e acabou levando uma trombada de uma senhora gorda. Tendo sido acertado na boca do estômago, curvou-se de dor ao mesmo tempo em que abria a boca para tentar respirar e nesse movimento, acabou deixando cair sua dentadura, que foi ao chão. Ele dizia ao policial que, da última vez que tinha visto a dentadura, ela estava sendo chutada por um cavalheiro bem vestido. Que ele tinha certeza que fora sem querer e que os dentes tinham sido chutados na direção da Praça da Sé. O guarda perguntou se a dentadura tinha alguma marca ou identificação que facilitasse o reconhecimento, pois ele precisava do maior número de detalhes para que fosse tudo esclarecido no BO. A vítima, com as bochechas chupadas, respondeu que além do fato dela ser de acrílico e ter a cor de dentes amarelados e gengivas, não possuía nenhuma marca particular e o guarda desanimado respondeu que assim não dava que ele tinha que descrever melhor os fatos para que a polícia pudesse ajudar. Já abatido e sem esperança de reaver a sua dentadura, com a mão na boca para evitar perdigotos e a vergonha de estar sem dentes na boca, o senhor tentava de toda maneira encerrar o episódio. A senhora gorda que tinha atropelado o homem, disse que aquele que chutara a dentadura tinha sido visto entrando no Metro da Estação São Bento e um boy jurava que uma dentadura quebrada tinha sido achada bem pertinho do Pátio do Colégio e que uns moleques tinham-na entregue ao pároco da Catedral da Sé. O guarda, que não conseguiu lavrar o BO, ainda tentou ser conciliador e fez menção de avisar o pessoal da limpeza pública que podia achar o artefato na varrição diária que faziam. Enquanto se afastava, Mané ainda ouviu o homem dizer que não fazia mal, a dentadura estava frouxa mesmo senão não tinha caído. Voltou à sua janela para terminar o que fazia trancar as gavetas, pois, como disse anteriormente, este acontecimento não teve a menor importância. 10/12/2020
Quando trabalhava no banco Mané foi assíduo freqüentador da Ponte Aérea e um dia, na fila para o embarque do Rio para São Paulo, estava lá nos seus devaneios quando levou um encontrão. Olhou de soslaio e viu uma moça com uma maleta que parecia pesada. Ignorou o fato e de posse do cartão, seguiu para o embarque. Apenas tinha dado uns passos quando virou para trás e viu a mesma moça, que naquela hora lhe pareceu familiar, arrastando a tal maleta pelo saguão. Muita gente olhava para ela e para a dificuldade, mas ninguém fazia nada. Mané, muito cavalheiro foi em sua direção para ajudar e quando chegou perto percebeu de que se tratava de uma famosa da TV e paralisou. Hesitou em oferecer ajuda, achou que poderia pensar que era uma artimanha para se aproximar dela e aproveitar-se de sua fama para sei lá o quê! Estava lá parado quando ela, que tinha se acercado dele e pediu para ajudá-la. Mané demorou uns segundos para ter certeza que era com ele, achou-a mais feia que na TV, e petrificado, abaixou e pegou uma alça e assim, sem trocar palavra e como se fossem amigos, entraram na sala de embarque. Mané ficou com a impressão que todos olhavam quando colocou com um tremendo esforço a maleta sobre uma cadeira enquanto ela sentava e lhe pedia um cigarro. Mané disse que não fumava e ela disse tudo bem, que nem queria fumar de verdade e, conforme ia ficando mais bonita, perguntou se ele podia ajudá-la a levar a maleta para o avião e com um olhar que pareceu uma convocação, instou-o a sentar. Mané achou que todos no salão notaram quando sentou ao seu lado, como quem não quer nada, seus ombros a se tocar e entabularam uma conversa enquanto aguardavam a chamada para voar. Ela perguntou seu nome e o que fazia da vida e Mané foi respondendo de uma forma meio travada, quase burocrática. Ela contou que vivia na Ponte Aérea e ele alegremente disse que também, talvez um pouco menos do que ela, e achou que aquilo os colocava em igualdade de condições, o que o deixou mais à vontade e lhe deu coragem para perguntar qual era o seu nome e o que fazia, como se já não soubesse. Claro que depois, no avião, enquanto ela ressonava suavemente no assento ao lado, Mané se censurou por ter feito aquela e outras perguntas idiotas, enquanto tentava parecer natural. Ele não acredita ter conseguido, mas ela teve um comportamento exemplar e não deixou transparecer nenhum abalo pela estultice de Mané. Chegando a Congonhas, ajudou-a até a fila do taxi e depois de ter colocado a pesada maleta no banco traseiro, ela, antes de entrar no carro, lhe estalou um beijo na bochecha e agradeceu por tudo enquanto batia a porta. O segundo da fila certamente percebeu o rubor que lhe tomou a face. Mané ainda queria perguntar o que havia de tão pesado na maleta mas o táxi arrancou e aquela foi a última vez que a viu ao vivo.09/12/2020
Da janela da sala de aula se podia enxergar a cidade velha, o sol brilhando no domo dourado da mesquita de El Aksa. Sem dar na vista, Mané e um amigo saíram de fininho e tomaram um ônibus que os levaria até a Porta de Jaffa. Depois de ultrapassar as grossas muralhas, por dentro daquela entrada em L à prova de arietes, o ambiente mudava por completo, uma viagem ao passado. Passearam pelo shuk, pechincharam com os mercadores, comeram algumas podres delícias e viram-se no meio do bairro árabe. As advertências sobre segurança vieram à mente, mas ninguém falou nada. Do outro lado da pracinha divisaram uma porta verde, a entrada para a planície das mesquitas. Resolveram ser uma boa ideia visitar o lugar e se dirigiram para um guarda trajado num deselegante uniforme azul. De pele mais escura, bigodinho, os dentes da frente separados, o guarda pareceu um sujeito simpático. Mané conversa com o guarda usando seus parcos conhecimentos de árabe e pergunta se poderiam visitar a mesquita. Quando ele ia começar a falar escutam alguém gritar: Oliveira! Oliveira! O guarda se vira, pede para esperarem um pouco e vai atender ao chamado. Quando volta Mané pergunta ainda em árabe: você chama Oliveira? Ele responde que sim. E de repente falaram junto: mas então você é brasileiro!
Na frente deles estava José Oliveira, nascido em Porto Seguro - Bahia, filho de João Oliveira e Fatma. De um modo singelo ele conta que sua mãe tinha vindo ao Brasil com seus pais, fugindo da guerra de 1948. Tempos depois, já casada com o brasileiro e com filhos, resolvem voltar, por insistência dos parentes de Fatma. Estabeleceram-se em Jerusalém oriental, então sob governo da Jordânia. Pouco depois eclode a Guerra dos Seis Dias e nas palavras dele “acabamos vindo morar em Israel”. Depois disso pergunta para confirmar: são judeus? Mané diz que sim e pergunta se isso representava problema. Acho que não, ele falou, é pena que meu pai já tenha morrido, pois ele ia adorar conversar com vocês, ele morreu sem voltar para o Brasil e isso sempre foi a grande mágoa dele. Passaram a tarde conversando com o Oliveira, escutando um inusitado sotaque bahiano misturado com árabe, entre uma ou outra palavra em hebraico. No final do seu turno, nos levou para dentro das mesquitas onde fizeram uma visita diferente, levados pelo árabe muçulmano e brasileiro, que fez questão de contar toda a história de Muhamad Ali. Ninguém falou do Templo de Salomão. Na saída, tão animado estava que os convidou para uma visita à sua casa. Disse que tinha muitos irmãos brasileiros, outros jordanianos, filhos e sobrinhos e que todos iam ficar extasiados com a visita de dois falantes de português. Numa rápida conferência, curiosos por visitar uma casa árabe, mas também receosos, resolveram aceitar o convite. Imprudência ou não, eles foram, e naquele dia conheceram Fatma já anciã, que lacrimejou ao escutar português. Conheceram também Aziz, Mahmud, Soraya, Anuar, Pedro, Nagib, Antônio, Laila, Lahanda, Kamal, Assad, Ablan, Fuad, Uaji, Raimundo, Yasmine, Ahmed, Zanuba, Zobaida, Nur, Alice, Samira, Muna, Nadia, Amina, Ismail, Hussein, Abdul e outros. Uma grande e animada família, os Oliveira de Jerusalém. Na maior hospitalidade lhes deram de comer e beber e eles retribuíram respondendo a diversas perguntas sobre o Brasil e deram as notícias que tinham sobre a Bahia. Na hora de ir embora, José e Pedro, acompanhados do pequeno Hussein, de Anuar e de Samira, os levaram em segurança até os limites do bairro árabe. Trocaram beijos e em segredo José disse a Mané que tinha percebido que ele não era brasileiro, onde é que tinha aprendido árabe?, mas que não tinha falado nada para não decepcionar o grupo. Samira e Anuar, disseram que tinham adorado o encontro e que se quiséssemos voltar, a casa estava aberta. Salam Aleikhoum, gritaram em uníssono, UAleikhoum el Salam, respondeu Mané que nunca mais soube dos Oliveiras.08/12/2020
Para trabalhar em casa, Mané montou uma parafernália com computadores, notebook, iPad e telefones. Além disso implantou um sistema de arquivos na nuvem para preservar documentos pessoais e da empresa, coisas que possam ser exigidas pelas autoridades fiscais e também comprovantes de pagamento. Mané já passou e guardou por meio eletrônico 3398 emails com aproximadamente 6800 documentos desde o dia 17/03, quando entrou em prisão domiciliar. Seu e-mail seleciona o nome das pessoas após a digitação da primeira letra e no outro dia, um dia aziago, Mané achou ter pago um boleto sem que isso tivesse acontecido. Fez todos os procedimentos estabelecidos e enviou o boleto e o suposto comprovante para o contador, cujo nome começa com a letra M, depois deitou pra ler e dar uma pestana. No dia seguinte ao abrir o e-mail encontrou uma mensagem de um conhecido, cujo nome também começa com a letra M, com o comprovante de pagamento daquele boleto pago pelo sujeito. Mané alarmou-se e ligou pro cara que respondeu: ué, vc me mandou o boleto, achei que a ONG estava precisando então paguei. Como assim pagou? Já estava pago! Tava não, eu chequei! Se eu fico assim pagando boleto dos outros? Ah, sei lá, tava com a cabeça cheia, pensei em ligar mas esqueci, bom, tá pago! O que? Eram 5 mil reais? Meu, nem percebi. Se estou bem? Claro que não, né? Bom, se vc puder devolver...ah, quer saber? Devolve só a metade...bom, faça como quiser, ah, sei, o gesto pra você já basta, tenho certeza que você faria o mesmo. Faria, não? Anota aí minha chave pix. 05/12/2020
Mané já fumou, ele confessa, algumas vezes, um baseado de maconha. Tratava-se dos anos 70, não tinha como escapar, mas ele não é nenhum viciado. Talvez o assunto drogas fosse menos pesado que hoje, nem se falava “droga”, digamos que fosse uma peraltice juvenil, uma maneira de mostrar como eram rebeldes.
Um conhecido dele, agrônomo, resolveu certa feita, plantar alguns pés da Canabis no sítio onde moravam seus pais. Sob os cuidados da mãe zelosa, as mudas floresceram e como ela dizia docemente, “essas plantinhas são danadas de bonitas, dá gosto de ver como crescem e que cheirinho delicioso que elas têm”. Tempos depois, na hora da colheita, o agrônomo comentou nunca ter visto tanta maconha junta que, depois de processada, tinha resultado em uns 30 tijolos.
Desesperado para se livrar do produto, ofereceu a todos que conhecia uma generosa quantidade. Era só passar no sítio e pegar os pacotes com a sua inocente mãe. Agradecido e excitado, Mané foi com um amigo até lá, onde já os esperava a mãe com uma sacola de supermercado que continha 3 tijolos. A quantidade assustou, mas fizeram a viajem de volta sem sobressaltos apesar do pavor de serem parados na estrada. Num belo dia decidiram começar a consumir a coisa.
Na casa do amigo, numa dessas tardes sem nada para fazer, eram cinco pessoas a enrolar cuidadosamente os baseados enchendo-os generosamente com as folhas prensadas.
Janela fechada para os vizinhos não sentirem o cheiro, em ½ hora, já estavam envolvidos numa densa e cheirosa neblina, estava difícil enxergar a cara da pessoa do lado e quando começou o primeiro ataque de riso, resolveram mudar de ambiente. Com aquelas caras de bobos, sentaram à frente da TV e lá tentaram definir o que sentiam, desde a sensação do corpo mais leve, até achar graça de tudo. Logo depois de uma tentativa frustrada de beijar a irmã do dono da casa, Mané começou a sentir muita sede e uma vontade de comer doce. Depois de tomar um monte de água direto da torneira, voltou para a sala com uma caixa de “alfajores” argentinos encontrada numa despensa.
Enquanto devoravam os alfajores escutaram a porta abrindo e alguém dando um “olá tem alguém em casa?”. Paralisados, ninguém acreditava que acabava de entrar em casa a dona da casa. Depois de engolir mais um alfajor, Mané olhou em volta e deu com o olhar pasmado de todos e, nos filhos da mãe, uma máscara de pavor.
Escutamos os passos dela a ir para a cozinha. “Quem deixou a torneira aberta? Porque a despensa está aberta? Que cheiro de queimado é esse? Que fumaceira é essa no quarto? Porque não abrem a janela?” Silêncio.....Passos...”Que cheiro estranho! Onde é que vocês estão?” A mãe deles para na porta da saleta sacudindo um saquinho cheio de maconha. “Alguém pode me dizer o que isso significa?” Grande silêncio...Depois de uma eternidade, Mané corajosamente fala: É maconha! Todos olham em surpreso desespero. A mãe o encara estupefata. Depois, indecisa, lança um olhar incrédulo e, súbito, virando-se de forma teatral, larga o saquinho no chão e diz: “Como maconha? Que maconha? E dá meia volta pisando firme: “tsc tsc, essas crianças” 03/12/2020
Não era a primeira namorada. Já tinham acontecido, além dos beijos na boca, algumas carícias nos seios, mão na bunda, mão naquilo e aquilo na mão. Mas faltava na visão de Mané, o principal. Faltava aquilo naquilo, ou seja, tudo.
Certo dia conseguiu levá-la pra casa. Mas os seus pais estão viajando, ela se defendeu. Mas é por isso mesmo que quero leva-la, pensou Mané. Falou pra ela não se preocupar que ele saberia respeitar o limite dos seus 15 anos. Ele só não sabia se conseguiria lidar com a falta de seus próprios limites que, aos 17 anos, ainda era virgem.
Em casa, script completo, em dez minutos ela já estava sem a parte de cima e aquela esfregação. Quando Mané achou que ia rolar, olha pra garota que tinha começado a chorar. “Minha mãe bem que me avisou para não ficar sozinha com você”. Mas você está pensando na sua mãe? Ela diz: eu ouvi um amigo do meu pai dizer que jovens de 17 anos estão sempre de pau duro. Então minha mãe combinou comigo que eu nunca ficaria sozinha com você fechada em algum lugar. Não rolou. O namoro foi em frente, mas se Mané com calças arriadas, ela com o zíper fechado. Ela com calças no chão, ele aprisionado. Nunca mais os aquilos se encontraram ao ar livre. Dois dias depois do seu aniversário de 16 anos, ela resolveu que era chegada a hora de se tornar mulher. O namorado de plantão, este Mané, estava lá para ajudá-la a trilhar este caminho novo que se abria para os dois. E quem disse que eles sabiam o caminho? Tudo combinado, num bonito fim de tarde de sábado, dirigiram-se circunspectos para a casa dela. Os pais dela? Viajando, é claro. Pais que viajam, abram o olho. Foi fácil chegar à temperatura exata. No meio da sala, se viam os dois pares de sapato, duas calças jeans, camisetas, meias, um soutien, uma cueca e, gloriosa, bem pertinho da mão de Mané, a calcinha dela. Estavam já em direção à Lua, e ele se perguntava qual seria o momento certo de fazer a invasão final. Aliás, ele se perguntava enfim, como é que se faz essa invasão final? Enquanto se colocava essas dúvidas, Mané ouviu um grito: Aqui não! No meio da sala dos meus pais, tem fotos da família, não vou poder. Eles então correm pro quarto. Depois de jogá-la na cama da irmã numa rápida geral, afasta os bichinhos de pelúcia e vira de costas algumas fotos de familiares que estão ali. Depois de tudo vai em sua direção que o espera encolhida na cama. Ele tenta relaxá-la um pouco, enquanto ele mesmo continua teso. A coisa não se mostra tão difícil assim. Aquilo consegue achar o caminho daquilo e encontra, num átimo, aquele ambiente, morno, úmido e acolhedor. Enquanto isso ele a escuta sussurrar no seu ouvido: vai, vai, é isso mesmo, vai, continua, aí mesmo, continua.........Vai? Vai? Vai onde se ele já tinha ido? Mas ele só tem 17 anos e deve voltar em poucos minutos. Como testemunhas, só os bichinhos de pelúcia.02/12/2020
A primeira viagem internacional de Mané, quando tinha 1 ano, foi de navio na rota Alexandria-Genova-Santos, quando Mané, Italiano por adoção, constava do passaporte de sua mãe, junto com a irmã. Sua segunda viagem internacional, aos 18 anos, foi nas asas da Alitalia, na rota Campinas-Roma-TelAviv, quando foi passar um ano em Israel. Sendo italiano, só que não, Mané foi ao Consulado na Av.Higienopolis conseguir o passaporte pra viagem. Às dificuldades normais que enfrenta o cidadão comum em repartições públicas de qualquer nacionalidade foi adicionada uma que dizia respeito ao fato de que faria uma escala em Fiumiccino, no aeroporto Leonardo da Vinci onde, em função de sua idade e por não ter se alistado no serviço militar, Mané seria preso. Mané voltou pra casa e contou tudo pra mamãe que determinou: então não viaje! Mané voltou ao Consulado escoltado por sua mãe e descobriu que para evitar essa hecatombe, seria necessário comparecer em data a ser marcada para fazer juramento ao pavilhão tricolor e se alistar ao exército italiano e Mané assim fez e, numa cerimônia que durou 10 minutos, Mané passou a integrar as forças armadas da bota e logo depois teve baixa e se transformou num carabinieri da reserva. Sob os protestos de sua avó que repetia: "mais que compte-t-il faire en Palestine"?, Mané foi para Israel e na escala em Roma foi recebido com animação pelo guarda da alfândega: "ma che bello, un passaporto italiano in mezzo a un mare di brasiliani". Mané, que estava de mau humor, respondeu: i dont speak italiano! O guarda arregalou os olhos e: "ma come fai a non parlare italiano? un italiano che non parla italiano?". Mané foi posto de lado, muitos agentes vieram interroga-lo e ele teve que correr quando o liberaram para não perder o voo para TelAviv onde chegou exausto e quase teve um xilique quando na alfândega israelense a simpática soldada exclamou enquanto examinava o passaporte de Mané: 30/אמרו לי שזו קבוצה של ברזילאים ועכשיו אני רואה איטלקי שנולד במצרים/11/2020
Mané foi a uma dermatologista tão nova que poderia ser sua filha. Tinha uma penca de perebas e logo a moça mandou-o tirar a camiseta e deitar na maca. Ela ficou um tempo olhando pra pele de Mané com uma lupa, emitindo sons e gorjeios de quando em vez. Pediu pra ele virar, suspendeu o short, puxou o elástico e depois, olhou com ar professoral e disse: então o senhor maltrata seu corpo de todas as formas e quer ficar impune? Esse calo aqui, e apontou para uma protuberância no dedão de Mané, é a pele dizendo, peraí, você me morde e me arranca pedaços e não quer que eu reaja? Tá aqui um calo pra me defender. Essas perebas todas pelo corpo são a sua pele a gritar: estou com sede, hidrate-me! Agora tem umas quatro ou cinco aqui que vou ter que queimar e analisar no retorno, é a sua pele apontando o dedo acusatório, tomou sol por anos sem cuidado, agora toma. E depois, sorrindo ela disse, vamos sentar. Pegou um ácido, queimou alguns pontos e escreveu furiosamente no bloco de receitas. Passe esse hidratante nas mãos, esse outro nos braços e pernas. Esse terceiro no rosto. Não mexa nas feridinhas que queimei e volte daqui a um mês e sadicamente acrescentou: pode ser que tenhamos que cortar umas coisinhas fora...se anime, você está bem, mas dá uma melhorada nessa postura.29/11/2020
Mané olha o telefone com preocupação e da as últimas bicadas na comida preparando-se para uma reunião. Salma detesta que ele consulte o WhatsApp à mesa e lhe diz que se está com pressa pode levantar. A titular dos serviços gerais já aprontou os quartos e os banheiros e está na sala de forma que Mané pega o notebook, o iPad e o token, vai para seu quarto e coloca tudo encima da cama. Volta pra sala esbarrando no aspirador e pega uma caneta, os óculos de perto e os de meia distância. Antes de ligar o computador entra no banheiro, passa fio dental, escova os dentes, faz xixi e lava as mãos e percebe tardiamente que ainda não há nenhuma toalha ali, então pragueja e esfrega as mãos na camiseta e depois na colcha da cama onde ajeita os travesseiros e almofadas e encosta, quase deita para começar a reunião. Enquanto vê a tela rodando ele consulta novamente o WhatsApp e da uma olhada no Facebook. Nisso aparecem os outros participantes, Mané escuta as vozes entrecortadas e os vê mas ninguém o vê.. Ele aperta o botão da camerazinha e há um clamor de :”agora sim”! Há certa dificuldade em começar a conversa, algumas bocas se mexem silenciosas, outros falam que seus microfones estão desligados e que os fulanos estão com a imagem congelada. Mané começa a sentir tédio e sono, desconfia que vai adormecer se continuar deitado então levanta, pega os travesseiros de Salma, monta um trono e fica numa posição sentado enquanto um dos participantes mostra gráficos em forma de pizza, o que faz Mané pensar que gostaria de pedir pizza no jantar e com o microfone desligado grita: “vocês querem pedir pizza”? Salma diz que está virando uma baleia, Anuar diz que sim, Mané pergunta por Samira mas ela almoçou e foi embora, está de plantão. Alguém pega Mané de surpresa e diz pra ele que não estão ouvindo o que ele está falando, que o microfone está desligado. Ele liga o microfone e diz que não tem importância mas mesmo assim faz uma pergunta que gera olhares de estranhamento. Alguém lhe diz que iam tratar disso no próximo tópico e nesse momento Mané vê um pernilongo pousado na parede. Ele então desliga a câmera e o microfone e vai até a sala pegar a raquetinha de matar mosquito. Volta com Milu em seus calcanhares e caça o pernilongo que, ao ser pego, faz aquele barulho de choque que deixa Milu siderado e que logo se põe a latir. Mané volta à reunião depois de ter abatido dois insetos mas já não consegue entender o que se passa ali. Ele fica no modo mudo e de vez em quando balança a cabeça, até que uma moça diz que então está bem, que ia mandar um e-mail com aquilo que foi combinado e pergunta pra Mané se pra ele está bom e ele diz que sim, ela pede que todos lhe enviem as “coisas” até terça e Mané espera que a ata clarifique o que são as tais “coisas”. Depois todos se despedem, Mané fecha a tampa do notebook, coloca todo o aparato no lado de Salma, ajeita de novo os travesseiros e deita. Tem uma reunião importante daqui a uma hora e precisa estar preparado. Milu deita no tapetinho ao seu lado e Mané lhe faz uns cafunés. Mais ele não lembra.27/11/2020
Era um final de ano de trinta e tantos anos atrás, quando Mané trabalhava num banco no centro da cidade. Através do janelão de vidro ele observava o movimento da cidade, protegido pelo frescor do ar condicionado. Lá embaixo, no Viaduto do Chá, os ônibus arrastavam-se de um lado para o outro enquanto a multidão zanzava resfolegante, suando ao sol do verão paulistano. Na escrivaninha, papéis esperavam para ser preenchidos e maquinas ansiavam por ter suas teclas apertadas enquanto ele, em devaneios, sonhava com as férias próximas, imaginando uma estrada que o levasse para uma praia onde valesse a pena sentir calor.
Súbito, um clamor vindo das ruas. Uma multidão, postada na Praça do Patriarca, gesticula e acena todos voltados para o prédio da esquina onde funcionava o Othon Hotel. Mané vê no parapeito de uma das janelas um homem que ameaça se jogar lá do alto. A cidade parou. Um casal de namorados que se beijava interrompe aquele momento de prazer para prestar atenção à desgraça que se avizinha. O rapaz que comia uma coxinha no bar da esquina ficou de boca cheia, olhando para cima. O motoboy que passava apressado encostou a moto na Rua Libero Badaró e, ainda montado, esperou para assistir ao desfecho. Compromissos foram adiados, reuniões interrompidas. Os colegas de trabalho foram chegando e se acotovelando na janela privilegiada de Mané para não perder os lances do drama que se desenrolava a poucos metros dos seus narizes.
A secretária baixinha logo começou a chorar. A assistente chefe, uma moça peituda e bonita, falou com ar solene: "aquele homem vai cair". Pareciam todos mesmerizados pelo espetáculo, poder-se-ia dizer que até gostavam daquela agitação que interrompeu o trabalho, os caminhos e até a própria vida. Para não perder o hábito, da sua cadeira Mané ficou observando os prédios vizinhos que, de repente, tinham ganhado vida. Não se conseguia enxergar nenhum rosto definido, mas, entre sombras, podia se enxergar o desespero e a aflição. Carros paravam no meio da faixa de rolamento, motoristas saíam dos veículos. Ninguém buzinava, todos olhavam para cima à espera de algo. Na esquina da Rua São Bento alguns moleques, animados com o agito, faziam apostas tentando adivinhar onde cairia o corpo. Alguns mais sádicos gritavam: "pula, pula, pula". Nesse momento chegaram os bombeiros fazendo barulho com as suas sirenes e espalhando luzes vermelhas pelo ar. Abrindo espaço à força foram se chegando para o sopé do edifício, tratando de armar uma daquelas redes de contenção. Os meninos da São Bento passaram a gritar para que o sujeito pulasse para o outro lado: "ô super homem, voa pra cá, abre as tuas asas”. Precavidos, os bombeiros estenderam a rede por toda a margem do prédio, tentando adivinhar onde se estatelaria o corpo. Lá na sua marquise o suicida observava a tudo impassível. Parecia calmo e tranqüilo, talvez nem imaginasse quão poderoso era, tinha paralisado a cidade. Nesse entremeio Mané foi chamado ao telefone por sua mãe que, aflita, assistia a tudo pela televisão. Depois de se certificar que ele estava em segurança, desligou às pressas justo na hora em que aparecia na janela, ao lado do candidato a Ícaro, um soldado da guarnição dos bombeiros. O suicida, assustado, recuou um passo se postando mais ainda à beirada. O bombeiro fala algo para o homem. O homem responde. O bombeiro estende a mão. O homem olha para baixo. Os meninos gritam: "pula, pula". A secretária baixinha começa a passar mal, mas ninguém liga pra ela Iprovisam um leque para lhe proporcionar mais ar, enquanto não despregam o olho da cena. Nesse momento, para alívio de uns e decepção de outros, a mão do bombeiro segura a mão do homem. O bombeiro puxa o homem para dentro e no segundo seguinte não se vê mais nada, apenas escuta-se um "óóóóóó´h", que ecoa pelas ruas do centro de São Paulo. Ainda na janela, Mané vê o motoboy dar a partida e sair com um ronco alto. Pouco a pouco os motoristas voltam para seus carros e, devagar, a cidade se põe de novo em movimento. No escritório, finalmente deram socorro para a moça que estrebuchava. Pelo meio da tarde, na hora do café, o assunto já estava esquecido e as férias voltaram a povoar os pensamentos de Mané. 26/11/2020
Milu é um cachorro domesticado. Uma das coisas que aprendeu foi fazer xixi no jornal, nos intervalos entre passeios ou nos dias que a chuva os impede de sair. Agora quando vai de visita a Samira, ela põe um jornalzinho e ele vai e se alivia nas folhas, esteja onde estiver. Em casa o jornal fica num quadradinho na área de serviço, de vez em quando o cão atravessa a casa com pressa e poucos minutos depois volta com cara de satisfeito, se fosse humano estaria dando aquelas três balançadinhas no bilau. Ocorre que na casa de Mané, só Mané sabe colocar o jornal no lugar certinho e bem enquadrado. Samira coloca o jornal onde cai o olhar, no outro dia deixou uma folha perto da máquina de lavar e o que sucedeu? Milu levantou a perninha e despejou a urina no pé da máquina. Salma atira os jornais a esmo e resulta que as vezes o cachorro faz xixi quase na cozinha. Isso é motivo de atrito familiar porque depois de quase treze anos pondo jornais, Mané acha que elas já deviam ter aprendido e elas mangam dele chamando-o de controlador, neurótico, mandão e outras coisas que não vale a pena citar. Anuar, que tem amor ao pai e à vida, só observa. Hoje pela manhã ao ir trocar os jornais da noite, Mané foi seguido por Salma que filmou a tarefa e quando Mané perguntou o que estava fazendo ela respondeu: “um tutorial”! Por um segundo Mané achou que Salma tinha aquiescido e queria finalmente aprender mas depois, vendo o cinismo e a hipocrisia estampados no seu rosto, pensou consigo mesmo que há coisas que devem ficar como estão. Às vésperas de completar 36 anos de casados e 13 anos de cachorro, nada mais há o que mudar.21/11/2020
Magro, Mané só foi quando criança, sua mãe, com medo que definhasse, o cevava todo dia. No fim da infância, início da adolescência começou a ficar mais encorpado, chegou a fazer algumas dietas mas não era uma coisa assim, terrível. Passou toda a juventude pouco acima do peso, nunca teve problemas por isso, não tinha vergonha de tirar a roupa e nem dificuldades para namorar, por exemplo. Antes de casar fez uma dieta e ficou como um varapau, o pai de Salma, Giovanni, achou que Mané estava doente e ia morrer. Depois das bodas engordou um pouco e, no domingo, quando ia almoçar na sogra, reclamava com Muna, a mãe de Salma, sobre a comida em excesso e ela dizia: “se preocupar pra que, já casou mesmo”! Quando engravidaram de Samira, Salma e Mané engordaram 20kg cada um. Salma, em 3 meses, voltou ao peso de antes. Mané ficou com os 20kg. Com Anuar a história se repetiu, 15kg para Salma, mais 20 pra Mané. Seis meses depois, Salma zerava o excesso e Mané, vcs já sabem. Anos depois, já entrado em idade, Mané está na frente do médico que lhe diz: “135kg não da pra pesar, vc tem que emagrecer!” Mané que estava com indicadores clínicos razoáveis quer saber porque, “vou cair morto com um AVC ou enfarte?, por mim tudo bem, já emagreci e engordei 280kg ao longo da vida, odeio dieta, estou bem assim, quero ficar assim”! E o médico: “se vc tiver sorte vai cair morto, mas alguém vai te levar pro hospital e aí vc vai viver como um vegetal para o resto da vida”. Sete anos atrás, Mané fez uma cirurgia bariátrica, emagreceu 45kg e saiu do hospital com pressão e diabetes controladas, sem problemas estomacais, nunca mais teve dor de cabeça e de lá pra cá, faz exercícios [quase] todo dia. Engordou 5kg mas isso era esperado e tinham dito a ele, no auge do emagrecimento, que ele parecia um zumbi de tão encovado então, ok não parece mais. 13/11/2020
Fauze é amigo de Mané há quase 50 anos. Juntos já viveram bons e maus bocados, aventuras, bodes, muita diversão e o contrário também. Juntos aprenderam a dirigir, roubavam o carro dos pais, entraram na faculdade, leram livros, fumaram maconha, passearam no deserto e andaram de bicicleta. Juntos também arranjaram namoradas, juntos levaram pés na bunda e às vezes, também se apaixonavam um pela namorada do outro. Certa feita foram à praia em grupo, Mané com uma namorada assim assim e Fauze avulso. De noite na cama, Mané se estranhou com a namorada, cada um virou pra um lado e dormiu. Madrugada alta Mané acorda, da pela falta da garota, levanta e vai até a sala onde encontra Fauze e a menina deitados no sofá, completamente embolados, ele de cueca e ela de calcinha, camisola atirada ao lado. Mané observa a cena que por alguma razão o excita e nesse momento Fauze abre o olho. Mané o fuzila com o olhar e diz: “vai dizer que não é nada disso que estou pensando”? Fauze sustenta o olhar e responde: “não, não vou dizer, ao invés disso te digo que é exatamente o que você está pensando, sim”! Mané estacou diante do inusitado e os dois caíram numa sonora gargalhada. Quem não entendeu nada foi a garota que, aliviada, riu também. Nessa pandemia, Fauze e Mané agiram de forma diversa. Fauze, que é médico, teve uma atitude mais relaxada e, por vezes, criticava o extremismo cuidadoso de Mané. Sexta passada, Fauze e Bolissa, sua mulher, convidaram Salma e Mané pra jantar. Mané recusou-se taxativo, na sua casa não vou! Fauze o chamou de bundão, cagão, bunda mole, mariquinhas, mas Mané se manteve estático. Na segunda Fauze liga cabisbaixo pra Mané, passamos mal no fim de semana, dor no corpo, sem paladar, canseira, fizemos exame, “estamos todos com covid”. Mané está monitorando a família por telefone, todos passam bem e em quarentena por mais dez dias. Antes de desligar Fauze falou: “valeu pela preocupação, bundão”! E caíram na gargalhada. 10/11/2020
Salma chega à livraria, pega um livro na estante, lê as orelhas e a contracapa, da uma folheada e decide levar pro Mané com a certeza de que ele vai gostar. Ela chega em casa, entrega o livro e diz que ele vai gostar, mesmo diante da incredulidade deste. Mané põe o livro na fila, dois dias depois começa a lê-lo e mais dois dias depois o termina com o coração em festa porque gostou do livro e porque, quem tem uma mulher como esta que escolhe e determina o que você vai ler e você lê e gosta, não precisa de mais nada na vida. Nada mesmo, ela não precisa saber cozinhar, muito menos pregar um botão e, em todo caso, a louça já é por conta de Mané.09/11/2020
Aqui 1976, Parque Nacional de Ein Avdat, Deserto do Neguev, Israel, localidade 13 minutos distante do Kibutz Sde Boker, moradia deste Mané naquele ano. No Parque, além de um oásis, tem um conjunto de ruínas da época romana. O palestrante (ex membro de um grupo terrorista que participou do atentado ao Hotel King David, Jerusalém, em 1946, quando os judeus também faziam terrorismo, num episódio em que foi morta metade da liderança inglesa na então Palestina, fato determinante para o fim do Mandato Britânico em 1948), estava nos contando sobre a descoberta dessas ruínas e de como elas foram sendo escavadas com pinceizinhos e com assoprões para não danificar as pedras antigas. Mané e o outro rapaz, um carioca cabeludo chamado Tituba, sentados provavelmente nos restos de uma sala de banho romana, não estavam muito interessados ao que parece. Naquele 1976, as preocupações eram bem outras, se Orna estaria disponível a noite, se iam jogar War ou outra coisa, o que será que ia ter de almoço, se iria voltar ao Brasil e aquela dor no calcanhar que estava se abrindo em rachaduras depois de meses andando por aí com aquela sandália horrível. (Copyrights foto Nício). 6/11/2020
Mané trabalha há décadas na área financeira e talvez por isso tem o hábito de fazer contas, por incrível que pareça, dado o seu histórico escolar desastroso do ginásio até o colegial, mormente na área de exatas. Ele gosta de fazer estatísticas e descobriu que nos últimos 12 anos, desde que começou a anotar, leu 810 livros, todos juntos somando 237 mil páginas, o que representa na média, livros com mais ou menos trezentas páginas. Também descobriu que leu uma média de 67,5 livros por ano ou 5,6 por mês, média atrapalhada pelos anos de 2011 e 2012, período que jogava Farmville. Eliminada essa vergonha sua média sobe para 76,9 livros por ano, 6,4 por mês, o que denota que o jogo atrapalhou, pero no mucho, então será que terá valido a pena jogar aquilo? Outra observação relevante é que nos dez primeiros meses de 2020, oito deles com pandemia, leu 5,5 livros por mês, o que é espantoso, porque nunca teve tanto tempo pra ler mas isso se explica pelo advento das séries, coisa que não fazia antes. Depois de terminadas as contas, contou a novidade para Salma que o olhou com um olhar de: “Bem, e o que se faz com uma informação dessa”? Mané não sabe, quem souber que o diga. Talvez o interessante seja a origem de tudo: Mané tem a lista gravada em Excel, se é que isso importa e, em tempo, se Mané tivesse comprado todos esses livros, muitos foram ganhos, emprestados, etc, teria tido um custo mensal de R$ 320,00, mais de R$ 46 mil ao longo de 12 anos, um volume considerável e não declarado à receita federal, mas, se comparado com o que pagou de plano se saúde no mesmo período, torna-se apenas um trocado. 3/11/2020
Lá no fundo da área de serviço tem um quadrado onde Milu faz suas necessidades quando, por alguma razão, ficou impossível de fazer algum dos três passeios que faz ao dia. Lá no quadradinho o chão é forrado com jornais e, essa é uma preocupação constante de Mané, arranjar jornais velhos para o banheiro de Milu. Salma sempre o crítica, “já tem jornais demais”, mas Mané persiste na sua infatigável busca, o banheiro do Milu tem que ser limpo e desinfetado a cada duas horas e olhe lá, o cachorro é uma máquina de produzir dejetos. Nessa atividade Mané já se divertiu muito em oferecer rostos para Milu emporcalhar, sim, rostos ou matérias que apararem no jornal, dependendo do humor de Mané, Milu já fez xixi sobre Lula e Bolsonaro. José Serra e José Dirceu foram alvos constantes mas hoje andam meio sumidos. Boulos, Dilma, Temer e Russomano já conheceram as intimidades do cachorro, assim como Doria, Trump e Putin. Líderes palestinos também já puderam averiguar os resíduos da alimentação de Mané, sem esquecer, é claro, de Bashar al Assad, Hassan Nassrala e aquele turco Erdogan. Milu também aprecia líderes europeus mas estes aparecem pouco nos jornais daqui, quem se interessa por eles? Política nacional e internacional é um prato cheio pro Milu mas Mané já ofereceu com gosto a Milu articulistas insuportáveis como Lia Luft por exemplo. Teria também exemplos de outras pessoas que aparecem em jornal como artistas e repórteres, Juliana Paes seria uma candidata mas quase não a vemos em jornal impresso e é quando chegamos ao ponto, está cada vez mais difícil arranjar jornal velho, as pessoas estão abandonando esse veículo. No prédio de Mané antes chegavam duas grandes pilhas para serem entregues aos moradores, hoje chegam apenas seis, o de Mané incluso. Hoje cedo quando foi ajeitar o canto do Milu, abriu um caterno e foi colocando as folhas no chão quando se deparou com a foto de Sean Connery e parou imediatamente. Ao invés de colocá-lo no chão, dobrou e guardou a folha. A Milu, que observava o trabalho, Mané disse: “nesse você não caga, ele tem licença para matar, faça aqui nesta análise sobre a situação do Corinthians no campeonato”! 2/11/2020
Amanheceu um dia molhado e carrancudo. Olhando a cidade pela janela Mané pensou novamente que gostaria de comer a torta de ricota da D. Fani. Ia ser um longo dia, precisava arranjar uma torta de ricota da D.Fani, sogra da sua irmã que faleceu há uns anos e fazia uma torta de ricota imbatível. Às vezes, nos jantares de shabat ela trazia a famosa torta e Mané a consumia em êxtase. Tinha a torta de ricota e o rocambole de goiaba, mas a torta era a campeã. Sabedora do crush de Mané pela torta ela trazia num Tupperware alguns pedaços separados para ele levar de marmita já que raramente sobrava alguma migalha do acepipe depois de posta à mesa daqueles Hunos. Mané passou uma mensagem para a irmã implorando pra ela fazer uma torta da D.Fani mas ela disse que era muito difícil e limitou-se a enviar a receita. Mané lembra que D.Fani se fazia de rogada com a torta: “faça uma inteira pra mim, D.Fani” e ela, debochando dizia: “ah, meu jovem você nem calcula a complicação que é fazer essa torta, nem pros meus filhos faço mais”! Mané então decidiu encarar o desafio, foi às compras pela manhã, trouxe pra casa os ingredientes e produziu uma torta de ricota supostamente igual. A bem da verdade ele achou até simples demais, o que o deixou com a pulga atrás da orelha. Os que experimentaram disseram que estava boa. Muito, muito boa disse a mãe de Mané, mas está diferente, um pouco mais cremosa talvez? Salma que comeu um pedaço atrás de outro e não é muito fã de ricota falou, “tá uma delícia mas não é a torta da D.Fani.” Mais à noite Mané comeu um pedaço já resfriado e, bem...era uma boa torta mas, não era a da D.Fani. E porque será que Mané achou que conseguiria fazer igual?
Segue a receita:
Massa
1 copo de açúcar
1 copo e 1/2de farinha
1/2 copo de maizena
1 gema
150 gr manteiga sem sal
Recheio
500 gr de ricota fresca da marca Roni (atenção: se não for da marca Roni nem tente fazer. A razão ninguém sabe mas essa é uma instrução da própria D.Fani, portanto obedeçam).
100 gr de açúcar
100gr uva passa branca (nesse ponto Samira teve tremores)
4 ovos
raspa de 1 limão siciliano
1 colher de sopa de fermento em pó royal
canela em pó sem exageros senão vira brownie.
Preparo
Massa - Misturar todos os ingredientes até não colar na mão e abrir numa forma redonda que sai o fundo. Reservar um pouco da massa para fazer rolinhos para enfeitar a parte de cima.
Recheio - Deixar a uva passa de molho por 1/2 hora e passá-la na farinha (mais um chilique de Samira)
Amassar a ricota com a mão, acrescentando todos os ingredientes um a um.
Colocar o recheio sobre a massa e cobri-la com rolinhos da massa firmando um quadriculado.
Forno a 180 graus por 45/50 minutos
Estará pronto quando enfiar um palito e este sair seco.
Uma polêmica: Mané pos a maizena na massa, conforme indicado pela irmã mas sua mãe acha que é no recheio. Talvez por isso tenha ficado mais cremosa mas, tanto faz, façam como quiserem, não conseguirão uma torta igual à da D.Fani. 1/11/2020
Milu começou há uns tempos com um bafo de onça, de longe se sentia, nunca tinha sido muito bom mas parecia que tinha engolido cadáveres de rato com peste. Logo Mané o levou ao veterinário que prescreveu uma limpeza de dentes com anestesia geral. Mané que sofre, segundo Salma, de transferência de sofrimento, tem zero resistência aos males que acometem Milu, começou a passar mal uma semana antes do procedimento. Não dormiu, alimentou-se mal, abraçava o cachorro pedindo desculpas e, no dia, ficou seis horas de jejum junto com o cão, tenso e com taquicardia. Salma se preocupa e dá pequenas broncas, “o cachorro não tá sentindo, nem vai sentir nada, é pra prevenir um mal maior, bocas infectadas podem afetar outros órgãos, coração, não vai me ter um treco por causa disso”. Enfim, Mané foi lá com Samira, ficaram ao lado do bichinho até ele capotar. 32 minutos depois devolveram-no com a língua de fora, zonzo e uma cara de “o que foi que fizeram comigo” (mas Salma disse que isso, quem estava sentindo era o próprio Mané) e com os dentes branquinhos como os de um filhote. Mais tarde, Milu já circulando pela casa e pedindo comida, Samira e Mané tomaram um copo de cerveja com groselha para relaxar e, por conta dos chiliques pré-limpeza de dentes e pela bebida cor de rosa que tomou, Mané ficou se sentindo maranhense, meio boiola.31/10/2020
Mané chegou ao Brasil com um ano e meio. Foi um refugiado privilegiado, viajou no colo da mãe, trocou de fraldas regularmente, comeu papinhas nutritivas, recebeu denguinhos e foi mimado por tios e avós.
Para ele a expulsão se passou em brancas nuvens, nenhum trauma, não perdeu amigos, instrução ou trabalho. Então digam porque suas lembranças mais afetivas são sonhadas em árabe e porque ele sente saudade da vida no Egito todo dia? 30/10/2020
De manhã cedo Salma recebe um uatsap de um número estranho porém com uma foto da lindinha Samira. Mãe registra aí esse número que o outro vou usar pra trabalho. Ué? Já acordou? Acordei, tenho umas coisas pra resolver. Salma conta pra Mané do número novo que acha estranho, isso é golpe, vaticina. Quando Mané pega o aparelho de Salma está chegando mais uma mensagem do “novo número”: aliás, enquanto resolvo meus problemas, será que você poderia depositar um dinheiro na minha conta, te mando os dados, logo mais eu devolvo porque agora estou muito atrapalhada. Mané então sem pensar digita: *va tomar no cy*. Depois vê que o corretor errou e manda outra mensagem: cú! Imediatamente o meliante apagou a foto dela e desapareceu. Depois Mané liga pra Samira que não atende, pois ela é da geração que não usa o telefone pra falar e, claro, estava dormindo. Mas ela acordou para um dia ruim, uma sensação de ter sido roubada, invadida, o uatsap não foi clonado mas como pegaram a foto dela, como descobriram que Salma é “mãe”, se no contato está escrito Salma? Muitos palpites chegaram, formata o celular, faz BO, apaga o app. O suporte deles mandou uma mensagem com uma lista burocrática de ações, formas de denunciar e/ou se defender de agressores. Debalde. Samira vai ter que lidar com esse lixo da vida nos próximos dias, semanas, sabe-se lá, o uatsap foi apagado, o telefone desligado, e Mané, se pudesse, torceria o pescoço do maldito mas cadê? Ao invés, deu um copo de cerveja com groselha pra menina na janta e amanhã vai lhe comprar um potinho de queijo cottage que ela gosta e ainda caçou um pernilongo que estava a molesta-la. 28/10/2020
Dia desse Mané foi até a casa de seu primo Dib, companheiro de tudo que se pode imaginar da infância até a fase adulta. Ficaram conversando no quintal quando Mané bateu o olho num bordado que estava na parede da sala, dois veados à beira de um rio. Mané falou, "meu já teve um quadro desse na minha casa". Dib olhou desconfiado e disse: é? Mané disse que sim, tinha certeza, será que esse quadro seu pai não pegou da casa da nona? Ele retrucou, de jeito nenhum, lembro de minha mãe bordando isso aí quando eu era criança. Mané ficou ressabiado e a partir desse dia ficou atormentando a mãe: mãe, esse quadro estava na sua casa ou na casa da vovó? Será que o tio levou quando a vó morreu? A mãe, que não estava muito afim de nada, desconversou, disse que lembrava vagamente, enfim. Hoje, na visita da terça, Mané insistiu: mãe, vc deu esse quadro pra minha irmã, será que está na casa dela? Farida não confirmou a doação e Mané continuou com esse tormento na cabeça até quando chegaram em casa e Anuar comentou: pai, depois do banho eu vou olhar mas acho que talvez eu tenha um quadro parecido aqui no meu armário. E Mané: oi? Depois do banho Anuar foi até o quarto e voltou com o bordado, que a avó tinha lhe dado anos atrás, dois veadinhos tomando água à beira do rio, mesma temática, imagens diferentes. Aliviado, Mané sentou na poltrona e avisou Dib e a família, a paz reina.27/10/2020
Mané chega à farmácia de manipulação veterinária. Boa tarde poderia manipular esse remédio pra mim? Aqui é uma farmácia veterinária. Sim, o remédio é pra mim, pro meu cachorro. Para o senhor ou para seu cachorro? Pro cachorro. Ah, ok! Só 30 cápsulas? Isso! Se fizer 180 sai mais barato. Mas eu não sei se essa será a dose definitiva, só 30! Ah, ok! Sai 80 reais, se fizer 180 fica 240. Mané conta até 30 e diz, quero só 30! Ah, tá bom, deixa eu ver, fica pronto na quinta, vai retirar ou mando entregar? Tem jeito de adiantar a entrega? Precisava um pouco mais rápido. Ah, ta, deixa eu ver. Ela fala com alguém pelo telefone. Posso entregar na quarta no fim da tarde se o senhor vier retirar. Milu precisa do remédio hoje, o anterior acabou, então ele arrisca: será que posso ficar aqui esperando, vcs fariam o remédio agora? Mas, agora? Sim, agora, pode ser? Ela levanta e vai pra dentro. Depois de dois minutos ela volta e diz que o sr. pode retirar o remédio no fim da tarde. Mané olhou a hora e viu que faltavam duas horas para o fim da tarde então agradeceu e disse que voltava no fim da tarde. Saiu da farmácia no Pacaembú com Anuar e foi até a av. Paulista onde tomaram sorvete na Baccio di Late e compraram cabos novos para carregar os telefones e, uma hora depois, começaram a voltar para a manipuladora. Anuar perguntou se já era fim da tarde e Mané respondeu que isso era relativo. Olá, será que ficou pronto meu remédio? Seu ou do seu cachorro? Hahaha, riu Mané, Rsrsrsr riu Anuar, Kkkkkk riu a atendente. Está pronto há meia hora. Meia hora? E aquela história de quinta feira? Ah, mas aí e o padrão, né? Quanto é? É 40 reais! Ué, mas não era 80? É que eu contei o caso pra farmacêutica e ela disse que se o sr. prometer repetir quando tiver a dosagem certa e fizer 180, eu podia franquear o desconto! Eu prometo, mas, porque 180 é mais barato que 30? Ah, bom, daí é com a farmacêutica, quer que eu a chame, tá tranquilo aqui hoje! Não precisa, fica pra próxima,.... como é seu nome? Meu nome é Noor, com dois ós. Noor, sabe o que quer dizer nur em árabe? Já me falaram mas eu esqueci. Ok, na próxima te conto.26/10/2020
Há quinze anos Mané reencontrou seu colegas do ginásio. Houve uma grande festa e toda aquela agitação que resulta quando se reencontra o passado. A sabedoria do cérebro humano de obliterar as coisas ruins faz com que tudo se torne prazeiroso. Não totalmente. Desse “vale a pena ver de novo”, resultaram pequenos encontros aos sábados quando os mais resilientes sentavam para um café e jogar conversa fora. E assim foi, todo sábado, até que surgiu o Corona. As conversas presenciais transformaram-se em conversas pelo zoom e no começo até que a coisa funcionou, ficavam conectados por 80 minutos e pode-se até dizer que passaram bons momentos. De um tempo pra cá, as conversas foram se esvaziando, passaram a durar só os 40 minutos iniciais, alguns começaram a faltar, até que os mais atirados conjecturararam a retomada dos encontros presenciais. Alguns falaram que sim, outros que talvez, outros que sim mas não iam nem tomar café para não tirar a máscara. Mané disse que não. No outro dia entrou numa padaria chic pra comprar uma baguete com fermentação natural para Salma e assustou-se ao ver o local pequeno lotado, cheio de gente amontoada e sem máscara que dirá sentar-se numa doceria em Higienópolis, sábado a tarde com gente saindo pelo ladrão, todos cuspindo coronavirus um no outro. Ninguém falou claramente mas Mané está sendo taxado de bundão e nessa altura do campeonato ele teme que o Corona consiga fazer o que nem o tempo, nem as desavenças escolares conseguiram.25/10/2020
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